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Neurocovid: conheça os efeitos psiquiátricos e cognitivos da covid longa

O desenvolvimento de transtornos de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático é maior entre hospitalizados, mas especialistas alertam que alterações neurológicas também atingem aqueles que tiveram sintomas leves da doença.
Publicado em 25/05/2022
Revisado em 25/05/2022

O desenvolvimento de transtornos de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático é maior entre hospitalizados, mas especialistas alertam que alterações neurológicas também atingem aqueles que tiveram sintomas leves da doença.

 

Não dá para negar que a pandemia da covid-19 afetou a saúde mental de todos. Desemprego, isolamento social, medo de adoecer e de perder pessoas queridas. Mas não foram apenas os fatores externos que impactaram a saúde psíquica das pessoas. 

Um estudo da Universidade de Oxford, publicado na revista “The Lancet Psychiatry”, mostrou que 34% dos pacientes recuperados da covid-19 foram diagnosticados com problemas psiquiátricos ou neurológicos, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, insônia, dificuldade de concentração, esquecimento, cansaço e névoa mental. 

No Brasil, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) avaliaram 425 pacientes acometidos pelas formas moderada e grave da covid-19, e constataram alta prevalência de transtornos mentais e déficit cognitivo nesse grupo. Transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de estresse pós-traumático e depressão foram os que apresentaram aumento em sua incidência.

Mas qual é a relação entre as alterações no cérebro provocadas pela covid-19 e o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos e neurológicos?

 

Síndrome da resposta inflamatória

No início, os médicos acreditavam que as alterações neurológicas eram apenas consequência da manifestação clínica da doença, e estariam associadas a quadros respiratórios, como pneumonia viral ou insuficiência respiratória grave. Mas hoje se sabe que o vírus pode ultrapassar a barreira sangue-cérebro (responsável por dificultar a passagem de substâncias do sangue para o sistema nervoso central), o que provoca uma resposta inflamatória. 

O dr. Marcelo Valadares, neurocirurgião, médico do Hospital Israelita Albert Einstein (SP) e pesquisador da disciplina de Neurocirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica o que essa ação viral provoca. 

“As principais consequências da ação viral seriam a inflamação com o aumento de citocinas inflamatórias e modificação de células da glia, que têm papel na defesa do tecido nervoso. Essas células se transformam para um estado de resposta à inflamação.” 

Em outras palavras, a inflamação do tecido nervoso provocaria uma resposta imunológica exagerada, causando prejuízo ao cérebro. 

Além disso, um estudo publicado na revista “Nature” revelou que foram observadas micro-hemorragias e lesão neuronal com morte de neurônios em diversas regiões do encéfalo. Esses dois fenômenos também costumam ser vistos em várias doenças neurodegenerativas, e ainda, segundo o dr. Marcelo, explicariam os sintomas da chamada “covid longa” desenvolvida por alguns pacientes. 

Veja também: Efeitos da covid-19 no organismo: o que se sabe até agora?

Transtornos psiquiátricos

Há ainda outros fatores que podem estar associados ao desenvolvimento de transtornos psiquiátricos por aqueles que tiveram covid-19, como destaca a dra. Luciana Oliva, psiquiatra e especialista em Atenção Básica à Saúde. 

“Outros mecanismos fisiopatológicos podem ser fatores de desenvolvimento de transtornos mentais, como a consequência do uso de fármacos instituídos no tratamento (como os corticosteroides, que podem desencadear transtornos de humor), e de iatrogenias, com o emprego de terapias não apropriadas ao tratamento da doença.”

Além do próprio desenvolvimento de novos transtornos psiquiátricos, é possível observar que pessoas que já tinham algum diagnóstico apresentaram sintomas mais graves.  

Foi o que aconteceu com a estudante Luiza Simões, 22. Ela conta que já havia sido diagnosticada com ansiedade e depressão desde os 13 anos, mas notou uma piora significativa depois de ter um quadro leve da covid.

“Eu cheguei ao limite quando comecei a ter crises de ansiedade. No pós-covid senti minha depressão piorar, a ponto de começar a ter ideações suicidas. Decidi ir atrás de psiquiatra e comecei o tratamento.”

Hoje, um ano e meio após testar positivo, ela conta que ainda precisa lidar com os resquícios emocionais da doença. “Ultimamente venho tendo mais cautela no meu dia a dia, pois coisas simples se tornam gatilhos, principalmente para minhas crises de ansiedade.” 

 

Brain fog

“Brain fog” ou “névoa cerebral” é um termo utilizado para descrever uma série de sintomas relatados por pessoas que tiveram covid-19. Sensação de lentidão, cansaço mental, dificuldade de se concentrar ou de aprender novas tarefas, alterações na memória, entre outros. Especula-se que as modificações ligadas ao desenvolvimento de transtornos mentais e ao brain fog sejam as mesmas, mas com uma diferença. 

“No caso do brain fog, essas alterações podem estar relacionadas a um agravo causado pela própria síndrome respiratória aguda, causando redução do suprimento de oxigênio às áreas específicas cerebrais relacionadas à cognição. Entretanto, entendemos que é necessária a realização de estudos científicos que possam esclarecer essa correlação”, afirma a dra. Luciana. 

A jornalista Adriana de Oliveira, 48, é uma das milhares que identificou uma piora cognitiva após a infecção pelo Sars-Cov-2. Seus sintomas foram moderados, e ela chegou a duvidar do diagnóstico de covid-19 no início, uma vez que não apresentou tosse ou febre. Mas, quando perdeu o olfato e o paladar, teve certeza: precisava fazer um teste. O resultado infelizmente foi positivo. 

“Não conseguia andar da sala até a cozinha sem sentir um cansaço absurdo. Os calafrios vinham de repente, e sentia uma dor de cabeça fortíssima, que nunca havia tido na vida, que não passava nem com vários analgésicos. Fiquei de cama 12 dias”, relembra Adriana. 

Ao final da recuperação, ela notou que alguns sintomas não haviam ido embora. 

“O cansaço persiste até hoje, e tenho muitas crises de pânico, que antes eu não tinha. Virei uma pessoa esquecida, tenho muitos lapsos de memória que me deixam nervosa, pois esqueço desde coisas simples até acontecimentos importantes da minha vida”, desabafa. 

Veja também: Ciclo de evolução da covid-19 | Animação #33

 

Quem pode desenvolver sintomas neurológicos da covid-19?

O estudo da “Nature” também confirmou uma suspeita que já existia: as alterações neurológicas não atingem apenas os indivíduos que tiveram o quadro grave da doença e passaram por internação médica, mas também aqueles que tiveram apenas sintomas leves. Ainda assim, de acordo com estudo publicado no “Jama”, pessoas que passaram por hospitalização têm maior probabilidade de desenvolver problemas de atenção, memória e funções executivas. 

“Sabemos que pacientes idosos que são internados, principalmente internações prolongadas, têm alterações nos seus testes cognitivos, o que frequentemente independe da causa que os levou a internação. Mas chama a atenção na covid-19 a frequência com que isso acontece em qualquer faixa etária, mesmo em pacientes jovens e previamente saudáveis”, completa o dr. Marcelo Valadares. 

 

Tratamento neurológico

Ao identificar sintomas cognitivos, o ideal é procurar um neurologista para investigar a causa dos sinais e entender se é necessário realizar algum tipo de tratamento. O dr. Wanderley Cerqueira de Lima, neurocirurgião no hospital Albert Einstein e diretor do WCL Neurocirurgia, fala sobre o processo de diagnóstico. É nessa etapa que é analisado pelo profissional se os sintomas têm relação com o vírus da covid-19. 

“O diagnóstico inicialmente passa pelo conhecimento do médico da resposta inflamatória sistêmica e também cerebral. A anamnese é importante: o paciente teve manifestações da mucosa oronasal, da nasofaringe, ou manifestações pulmonares? Precisou ser entubado ou de internação hospitalar? Teve danos renais ou cardiológicos? Quais as manifestações neurológicas e psiquiátricas que apresentou?”, exemplifica o médico. 

Testes padronizados das capacidades executivas, de fala, motoras e de memória podem ser aplicados para complementação. O resultado é mensurado e comparado com o que é esperado para faixa etária e escolaridade do paciente. Caso o profissional sinta a necessidade, ele também pode pedir exames neurológicos e de imagem para excluir outras condições que possam causar sintomas parecidos.

Identificado o problema, é hora de discutir o tratamento, que costuma ser guiado pela natureza e grau dos sintomas, explica o dr. Marcelo Valadares.

“O tratamento é indicado principalmente para pacientes com déficits moderados a graves, sejam eles cognitivos, sensitivos ou motores. Pode ser necessário medicar pacientes com quadros de dores crônicas, alterações de sono, alterações psiquiátricas ou outras alterações neurológicas motoras ou sensitivas.”

O próprio neurologista pode indicar a necessidade de uma abordagem multidisciplinar. Isso inclui terapias de reabilitação motora, psicoterapia, fonoterapia e acompanhamento com psicólogo e/ou psiquiatra.

Veja também: Como é a vida após a intubação por covid-19 | Cabine do paciente

 

Aumento na busca por serviços de saúde mental

Os dados sobre o panorama geral do impacto da pandemia na saúde mental da população brasileira ainda são escassos, mas psicólogos e psiquiatras ressaltam o aumento na busca pelos serviços. “Percebemos esse aumento na nossa prática clínica, tanto nas demandas de consultório quanto nas emergências psiquiátricas, mesmo naqueles indivíduos que nunca haviam manifestado qualquer sintoma. Também é notável o aumento dos casos de transtornos do sono e do abuso de substâncias (principalmente o álcool), a piora de sintomas demenciais, de transtornos alimentares, dentre outros”, diz dra. Luciana. 

Nesses últimos dois anos, falamos como nunca sobre a importância da saúde integral, que visa cuidar igualmente da saúde física e mental. A discussão parece estar dando resultados, e já é possível notar pequenas mudanças no perfil daqueles que buscam atendimento terapêutico. É o que diz Ellen Aragão, psicóloga, mestre em Ciências e coordenadora da equipe de Psicologia Hospitalar do Hospital Adventista Silvestre. 

“A assistência psicológica passou a ser tema de reportagens. Isso ampliou a compreensão da população sobre como este recurso é importante no enfrentamento de diversos problemas da vida, não apenas nos casos em que existe um transtorno mental. Observo que os homens e as pessoas idosas, grupos que apresentam mais dificuldade em buscar o suporte psicológico, passaram a buscá-lo mais frequentemente.”

Além disso, serviços de saúde mental ainda não fazem parte da realidade financeira de muita gente, o que impacta na hora de procurar auxílio. 

“Um problema enfrentado na pandemia é a mudança do status social, com desemprego e prejuízos financeiros; sendo assim, uma parte dessas pessoas não terá condições de buscar pelo atendimento, o que não significa que o crescimento dos transtornos não esteja acontecendo”, analisa a dra. Ellen Aragão.

Consultas com psicólogos e psiquiatras estão disponíveis no SUS, embora a demanda ainda seja maior do que o número de profissionais. Nesse caso, é necessário passar pelo seu médico generalista e explicar o que está acontecendo para que ele possa realizar o encaminhamento aos especialistas. 

 

Reconhecendo o próprio sofrimento

É importante lembrar que o atendimento terapêutico não vale apenas para quem tem ou suspeita de algum transtorno mental, mas também para lidar com as dificuldades da vida em geral. 

“Eu costumo dizer que todos nós precisamos confiar em nossos desconfortos. Quando nós desconfiamos que alguma coisa dentro de nós não está funcionando bem, geralmente isso realmente está acontecendo. Além disso, alterações do humor, muita irritabilidade, falta de interesse em realizar atividades que antes eram prazerosas, isolamento, alterações do sono, apetite e funcionalidade, entre outros, são sinais de alerta que demonstram necessidade de buscar ajuda profissional”, finaliza a dra. Ellen.

Veja também: Pandemia não aumentou casos de transtornos mentais e suicídios em 2020

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