Condições sociais e estilo de vida tornam a população negra no Brasil mais vulnerável ao Alzheimer; acesso ao diagnóstico e ao tratamento ainda é desigual. Entenda.
Lembrar algumas palavras fica mais difícil, ir e voltar da padaria é o suficiente para se perder, fazer empréstimos bancários incomuns parece cada vez mais plausível… Esses são alguns dos vários sintomas da doença de Alzheimer, que afeta em especial os idosos e é frequentemente confundida com o envelhecimento.
“O Alzheimer é causado pelo depósito de uma proteína no cérebro. O principal fator de risco é, definitivamente, a idade. Mas outras questões – como baixa escolaridade, problemas de saúde mental, prevalência de doenças como hipertensão, diabetes e tabagismo, e estilo de vida sedentário – também predispõem ao seu surgimento”, explica a dra. Thais Ferreira, neurologista pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ainda que o envelhecimento da população brasileira seja a principal razão para o aumento de diagnósticos de Alzheimer no país – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existam quase 2 milhões de pessoas com demência, sendo que sete em cada dez têm Alzheimer –, é possível perceber quais desses idosos ficam para trás.
Boa parte da população negra possui um ou mais fatores de risco citados pela médica, sem contar a dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Em um país onde a quantidade de novos casos deve triplicar até 2050, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), conseguir o diagnóstico e a orientação adequada ainda é um grande desafio.
Negros, baixa escolaridade e Alzheimer
De acordo com uma análise de 2020 da Todos pela Educação, a escolaridade média das populações preta e parda entre 18 e 29 anos fica na faixa dos 11 anos, quantidade 1,3 ano menor do que a da população branca.
“Quanto mais a gente mantém o cérebro ativo, com atividades intelectuais complexas, mais forte ele fica. É como ir para a academia. Mais anos de estudo significam um maior fortalecimento do cérebro. Isso fornece uma espécie de reserva de neurônios capaz de compensar os efeitos do Alzheimer”, compara a dra. Thais.
Porém, no cenário brasileiro, a disparidade começa desde a Educação Infantil. Mesmo que nos últimos anos tenha ocorrido um aumento no número de crianças pretas e pardas nas creches do país, as brancas ainda são maioria.
Na Educação Fundamental, a dificuldade está na aprendizagem, tendo em vista que os negros têm acesso a escolas com piores infraestruturas e vêm de famílias mais vulneráveis. Já nessa fase, sofrem com altas taxas de reprovação, as quais, muitas vezes, levam ao abandono escolar.
Os resultados são vistos na conclusão do Ensino Médio: em 2019, considerando jovens de até 19 anos, apenas 58,3% dos pretos e 59,7% dos pardos chegaram ao final do curso, contra 75% dos brancos. Nessa etapa, é comum que os adolescentes negros larguem a escola para trabalhar e ajudar a família – em geral, ocupando cargos pouco estimulantes para o cérebro.
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Doenças que mais atingem os negros são as mesmas que predispõem ao Alzheimer
Outra questão está relacionada às condições preexistentes dos pacientes de Alzheimer. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da australiana University of Queensland mostrou que pessoas diagnosticadas com a doença têm mais chances de também serem diagnosticadas com diabetes, depressão, doença de Parkinson e acidente vascular cerebral (AVC). Hipertensão, obesidade, tabagismo e sedentarismo entram na lista, predispondo a este tipo de demência.
Muitas dessas doenças já fazem parte do dia a dia da população negra. O diabetes, por exemplo, atinge 9% a mais os homens negros do que os homens brancos. No caso das mulheres, as negras correm 50% mais risco do que as brancas. A hipertensão também é mais frequente e não raramente mais grave nesse grupo.
“Sabemos que essa parcela da população é economicamente menos favorecida e, como consequência, tem menos acesso a bons hospitais, tornando-se ainda mais vulnerável”, destaca a neurologista.
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Problemas na saúde mental também são fatores de risco
Além da maior suscetibilidade a doenças físicas, os negros também estão mais sujeitos a transtornos psicológicos. Dados do Ministério da Saúde mostram que a chance de um jovem negro morrer por suicídio é 45% maior do que a de um jovem branco.
Durante a pandemia, a situação só se agravou. Os negros foram os mais expostos à contaminação pela covid-19, enfrentando a doença em meio ao acesso precário de saneamento básico, desemprego, subemprego, moradias com pouca ou nenhuma infraestrutura, violência urbana, isolamento social e racismo.
Nesse contexto, é de se esperar que essa população seja a mais afetada por problemas como depressão e estresse crônico. “As doenças psiquiátricas também são um fator de risco para as demências, incluindo o Alzheimer”, lembra a dra. Thais.
Aliás, essa é uma das hipóteses dos autores da pesquisa da UFPel, UFRGS e University of Queensland. A análise também mostrou que, entre 2019 e 2020, o número de pacientes negros que vieram a óbito por demências aumentou 65%, enquanto a taxa subiu apenas 9% para os brancos.
Os próprios organizadores do estudo acreditam na relação da deterioração da saúde mental durante a pandemia com o aumento da mortalidade, bem como a dificuldade de acesso aos sistemas de saúde em meio à crise da covid-19.
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Diagnóstico difícil e tratamento burocrático
Os obstáculos de acesso, por si só, já atrasam o diagnóstico do Alzheimer no que diz respeito às populações menos favorecidas. A relutância do paciente em reconhecer os sinais e a confusão dos familiares diante dos sintomas, que muito se assemelham aos do próprio envelhecimento, também contribuem para a demora em chegar ao especialista.
Quando o diagnóstico finalmente acontece, o tratamento envolve a etapa medicamentosa, que faz com que o Alzheimer avance mais lentamente; e a não medicamentosa, que envolve terapias de estímulo à memória, palavras cruzadas, quebra-cabeças, acompanhamento psicológico, entre outras.
“No setor público, eu percebo que os pacientes já chegam em um estado muito avançado do Alzheimer, quando já não há resposta à medicação. É muito diferente do setor privado, em que a maioria dos pacientes são brancos e possuem uma condição financeira mais favorecida. Eles têm acesso ao atendimento ainda nas fases iniciais da doença e conseguem respostas mais satisfatórias ao tratamento”, afirma dra. Thais, que possui experiência nas duas áreas desde 2014.
Em 2018, o Sistema Único de Saúde (SUS) ampliou os medicamentos utilizados no combate ao Alzheimer, fornecendo a rivastigmina em formato de adesivo para os pacientes. No entanto, a aquisição das medicações ainda é um entrave. De acordo com a neurologista, existe uma grande burocracia no SUS, o que pode levar à desistência do paciente no meio do tratamento.
“Outro empecilho é a escassez de profissionais no sistema público, os quais se concentram em grandes centros urbanos e não conseguem dar conta da grande demanda”, lembra a dra. Thais. Para se ter uma ideia, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), 60% dos geriatras no Brasil se concentram na região Sudeste. É um especialista para cada 15,4 mil idosos, quando o recomendado seria um para cada mil.
Para a neurologista, o Brasil ainda precisa avançar na questão dos centros de referência, oferecendo atendimento multiprofissional e acesso aos medicamentos e às terapias em comunidades menos favorecidas.
“É difícil para o idoso com Alzheimer, que já tem dificuldade cognitiva e de locomoção, ter todo o processo de deslocamento entre os profissionais. O centro de referência seria interessante, pois concentraria todas as atividades em uma região”, sugere.
Conteúdo desenvolvido em parceria com a AfroSaúde https://afrosaude.com.br/
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