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Psiquiatria

Geração sem perspectiva: os efeitos do isolamento social na adolescência

Muito tempo longe das escolas, dificuldade em criar vínculos fora do espaço virtual e prejuízos à saúde mental são algumas das razões para que parte dos jovens deixem de acreditar no próprio futuro.
Publicado em 01/09/2021
Revisado em 15/09/2021

Muito tempo longe das escolas, dificuldade em criar vínculos fora do espaço virtual e prejuízos à saúde mental são algumas das razões para que parte dos jovens deixem de acreditar no próprio futuro.

 

A adolescência é um período de transformação. Dos 12 aos 18 anos, os jovens começam a questionar a autoridade dos pais (ou da família mais próxima) e construir uma nova imagem de si mesmos. Nessa fase, eles têm um vácuo momentâneo de referência, já que buscam maior independência de seus responsáveis, enquanto experimentam diferentes identidades e grupos sociais. 

“Na falta da autoridade familiar, é muito importante que outra instituição ocupe esse posto. Daí a importância da escola. É lá que os adolescentes, para além de suas formações acadêmicas, têm os primeiros encontros sociais, amorosos e afetivos, bem como as primeiras angústias e conflitos”, explica Daniela Viola, doutora em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora do livro “O saber à flor da pele: três ensaios psicanalíticos sobre a adolescência”.

Durante a pandemia, porém, essa “metamorfose” se intensificou. Os adolescentes tiveram que lidar com três lutos: a perda da condição de criança, a perda da referência parental e, ainda, a perda coletiva, causada pela disseminação da covid-19 no Brasil. Tudo isso sem o espaço físico onde esse processo psíquico-social costuma ocorrer: a escola. Segundo relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Brasil é um dos países em que essas instituições ficaram fechadas por mais tempo em função da pandemia.

“Mesmo em situações mais tranquilas, a adolescência já é um período emocionalmente dispendioso, delicado e cheio de atropelos. Se, de repente, esses meninos e meninas se deparam com um mundo de muitas incertezas, eles perdem a perspectiva de futuro”, explica Daniela.

 

Um horizonte nebuloso

Marcela Passerini Caproni, 18 anos, formou-se no Ensino Médio em 2020. Na escola técnica estadual em que estudava, em São Paulo, as aulas presenciais foram suspensas no fim de março daquele ano e retornaram no formato online, modelo que permaneceu até a sua conclusão de curso.

A adaptação para o sistema remoto foi complicada: os professores enfrentavam dificuldades para lidar com a plataforma e, por isso, o horário das aulas variava muito. “No EAD [ensino à distância], é muito fácil se acomodar, porque você não tem força de vontade para fazer as coisas. Acabei perdendo o ritmo de estudos”, relata Marcela.

Em fevereiro de 2020, ela havia começado um cursinho pré-vestibular, mas o descompasso em relação aos colegas de turma e a piora no estado de saúde mental, que já vinha de um período turbulento e se intensificou com a pandemia, levaram a jovem a desistir do cursinho.

Para a psicanalista Daniela Viola, esse desinteresse tem a ver com a dificuldade em dar sentido aos objetivos que antes eram comuns à adolescência: se formar, pensar em uma carreira e prestar vestibular. 

“Os alunos estão em uma tarefa desprazerosa, sem as partes de descontração, como o recreio e as reuniões com amigos. Na cabeça deles, se o mundo que conhecíamos pré-pandemia está ‘acabando’, qual é o sentido de se empenhar para entrar em uma universidade? É preciso que eles consigam enxergar o futuro para ter a energia de encarar essa fase”, pontua.

Até mesmo no modelo híbrido que se instaurou em algumas cidades do país, a experiência costuma ser desagradável para os adolescentes. Os protocolos de higiene são necessários, mas acabam cerceando a vida escolar.

“Um dos efeitos é o tédio. Os jovens não se sentem instigados na escola”, afirma Daniela.

Veja também: Volta às presenciais requer compromisso dos responsáveis | Coluna

 

Cada vez mais isolados

Para Marcela, a interação presencial com os colegas era o que tornava algumas das experiências acadêmicas mais agradáveis. No entanto, o isolamento acabou afetando até mesmo os vínculos com os amigos de classe.

“Quando você não tem a obrigação de ver todos os dias, é difícil manter laços. Nas redes sociais, eu via muitas pessoas que eu tinha consideração saindo para aglomerar, então me afastei de quem eu era bastante próxima”, desabafa. Marcela também não se considera boa em manter contato virtual, seja através de mensagens ou ligações. “Isso também me afetou muito, porque, com tudo que estava acontecendo, eu não tinha energia para socializar”, conta.

Diferentemente de Marcela, porém, a tendência é que os adolescentes recorram cada vez mais ao universo virtual. Segundo a psicanalista Daniela, os jovens que já passavam boa parte da vida no celular tendem a radicalizar, isolando-se e tornando-se mais indisponíveis para as trocas do mundo real.

“Eu ouço muito isso: eles mandam várias mensagens, inclusive de áudio, mas há uma certa evitação de conversas olho no olho”, diz.

Como consequência, vem a tristeza, o tédio e o desânimo. Uma meta-análise publicada no “Jama Pediatrics” analisou 29 pesquisas produzidas ao redor do mundo, com mais de 80 mil jovens, e identificou que os sintomas de depressão e ansiedade na juventude dobraram em comparação com antes da pandemia.

Para Daniela, o declínio na saúde mental dos adolescentes não é de hoje, mas se agravou com a chegada da covid-19: “A juventude já lidava com crise financeira, desemprego, desvalorização da educação. No cenário atual, é complicado estabelecer metas”.

Veja também: Entrementes #18 | Saúde psíquica de crianças e adolescentes

 

Ciclos inacabados

Outra perda que afeta muito os adolescentes na pandemia é a de alguns encontros típicos dessa fase, como as despedidas no último dia de aula e as festas comemorativas. Marcela estava com a viagem de formatura comprada e com data marcada para acontecer, mas teve de cancelar. Na escola, não foi feita nenhuma outra cerimônia de conclusão. Para ela, o sentimento foi o de que faltou o encerramento de um ciclo.

“O Ensino Médio em especial é marcado por uma série de acontecimentos marcantes que ficam para o resto da vida. Mesmo que haja a tentativa de adaptar para o virtual, são momentos que não dá para substituir”, destaca Daniela.

 

Desigualdade social

Por outro lado, há a preocupação com os estudantes de baixa renda, que foram prejudicados em um nível ainda mais profundo: o do acesso ao aprendizado. Seja pela falta de um bom computador ou de sinal de internet, muitos jovens da periferia ficaram impossibilitados de aprender durante a pandemia.

Uma análise do Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para Infância) mostrou que 3,8% dos estudantes brasileiros entre 6 e 17 anos abandonaram as instituições de ensino em 2020, ou seja, quase o dobro da média de 2019. Nesses casos, as perdas se acumulam e há um enorme atraso pedagógico com graves consequências para o futuro desses adolescentes. 

Veja também: Dificuldades da periferia na pandemia

 

A indecisão dos vestibulares

A menor taxa de adesão ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021, por exemplo, é mais um símbolo da incerteza da geração. Apenas 3,1 milhões de adolescentes se inscreveram para a prova, um número 46% menor do que no ano anterior e o mais baixo desde 2007. As poucas inscrições tem a ver com o longo período fora da escola e a necessidade de garantir renda extra para a família.  

Além disso, o adiamento do Enem causou incerteza, afetando ainda os outros vestibulares. Com as novas datas, Marcela conseguiu retomar o cursinho em outra instituição, mas prestou as provas no final de 2020 conformada com a ideia de que não iria passar. 

Segundo ela, era comum chegar calma à sala de teste e sair ansiosa, pelo medo de se contaminar com a covid-19. “Não importa o quanto de distanciamento colocassem entre as carteiras, era muito estranho ter que estar em uma sala fechada com mais de 40 pessoas”, afirma.

Com surpresa, Marcela recebeu a notícia de que havia passado em história na Universidade de São Paulo (USP). Quando pensa no futuro, a estudante tenta colocar metas mais baixas, principalmente pelo momento de insegurança. “Eu não posso largar tudo agora, porque, mais cedo ou mais tarde, a vida vai voltar ao normal. Se eu desistir, não vou ter nada lá na frente”, pondera.

Veja também: Covid, as crianças e os adolescentes | Artigo

 

O que fazer?

 

Para Daniela Viola, o trabalho de devolver aos jovens o desejo de um futuro tem que ser conjunto, unindo forças de famílias, educadores, psicólogos e responsáveis por políticas públicas.

“Os psicólogos e psicanalistas estão fazendo um trabalho de formiguinha que pode fazer muita diferença. Oferecemos um lugar de escuta. Mas só isso não é suficiente”, destaca.

Em sua visão, é preciso que haja investimento em espaços de criação, como por exemplo, na arte, na tecnologia, na ciência ou no esporte. Ela lembra a repercussão das Olimpíadas de Tóquio, que mostraram o poder do esporte na transformação de histórias de vida, com destaque para atletas mais novos, como a skatista Rayssa Leal, de 13 anos.

“Precisamos oferecer oportunidades para que esses adolescentes desejem e possam se reconhecer nos mais variados espaços culturais e sociais”, opina.

No nível individual, os jovens devem buscar alternativas, ou seja, reelaborar os planos para o futuro de forma que eles sejam possíveis na nova realidade. Se algo que você queria muito não deu certo por causa da pandemia, quais são as formas de adaptá-lo para colocá-lo em prática?

Além disso, manter uma rede de apoio para conversar e desabafar é fundamental, inclusive utilizando as ferramentas tecnológicas para aproximar-se de quem está longe.

Outras dicas que também podem ser de grande ajuda nesse momento são:

  • Ocupar a mente através de cursos gratuitos disponíveis na internet;
  • Participar de um projeto de voluntariado no bairro onde mora;
  • Praticar atividades físicas;
  • Moderar o tempo na frente das telas;
  • Não exagerar no consumo de informações sobre a covid-19;
  • Negociar com os pais ou familiares um tempo sozinho de vez em quando;
  • Se sentir que é necessário, buscar ajuda psicológica profissional.

Veja também: Orientações para volta às aulas das crianças e adolescentes

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