Falta de acesso ao saneamento básico e à moradia é fator para o desenvolvimento de doenças. Entenda como esse contexto se desenvolve e como buscar soluções.
A falta de saneamento básico não é uma novidade na realidade brasileira. Desde recursos colocados em prática por povos originários a fim de separar a água para consumo e locais para dejetos, passando pela construção em 1973 dos Arcos da Lapa, o primeiro aqueduto do país, até chegarmos aos sistemas de esgoto atuais, é notório que boa parte da população não consegue ter acesso aos sistemas de saneamento. Atualmente, existem no Brasil cerca de 100 milhões de brasileiros que não possuem rede de esgoto e 35 milhões sem acesso à água tratada, de acordo com o Instituto Trata Brasil. Uma das principais consequências desse cenário é o surgimento de doenças, algumas delas fatais, entre essa população.
Define-se como saneamento básico “o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas”, de acordo com a Lei 11.445/07. Basicamente, trata-se de um direito, garantido pela Constituição, ao acesso à água potável e a um sistema eficaz de descarte e tratamento de dejetos, como fezes e urina.
Segundo o dr. Marcelo de Carvalho Ramos, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), médico infectologista e que retornou recentemente de um projeto da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) após ter atuado durante seis meses na província de Nampula, em Moçambique, o acesso ao saneamento básico é um dos principais meios de prevenir o aparecimento de um grande número de doenças. “Com o saneamento básico se consegue prevenir doenças, principalmente porque interrompemos um ciclo de transmissão que chamamos de fecal-oral. O acesso à água de boa qualidade e em quantidade adequada, juntamente com o encaminhamento correto das fezes, são fundamentais para diminuir a quantidade de doenças. Pois [o saneamento] evita a transmissão e a aquisição delas, uma vez que a água é um veículo importante para transmissão de diversas doenças”, diz.
De fato, de acordo com o Ministério da Saúde (DATASUS 2021), em 2021 foram registradas cerca de 130 mil internações causadas pelas doenças de veiculação hídricas, ou seja, provocadas por contaminação da água. Mas quais são essas doenças e quais os riscos que a população sem acesso ao saneamento básico corre em relação a sua saúde?
Principais doenças causadas pela falta de saneamento básico
“As principais doenças causadas pela falta de saneamento básico são: doenças diarréicas por Escherichia coli, Hepatite A, cólera, leptospirose, febre tifoide, verminoses, giardíase, amebíase, dengue, chikungunya e contaminação por metais pesados como mercúrio”, explicou a dra. Cláudia Maruyama, Infectologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
O dr. Alexandre Schwarzbold, infectologista, professor de medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), explica mais em detalhe a ocorrência de leptospirose. “Trata-se de uma bactéria que é transmitida a partir do contato com a urina dos ratos. Então, nesses lugares onde não há saneamento, a água entra em contato com a urina dos roedores que contaminada pela bactéria leptospira pode ser transmitida aos humanos. Essa contaminação da água com a urina se dá principalmente depois de enchentes e períodos de chuvas, e acaba aumentando a chance de infectar pessoas”, diz.
Para o dr. Marcelo, as diarreias, que podem ter diversas causas, são as principais enfermidades relacionadas a esse contexto de falta de saneamento. “Eu citaria principalmente as diarreias causadas por vírus, como o rotavírus, que podem ser transmitidas pela água. O tratamento adequado [da água] evitaria esse tipo de doença.
“Existem também uma infinidade de bactérias que podem causar a diarreia. As mais conhecidas são as salmonelas e as shigellas. Há também os protozoários, como por exemplo as giárdias. Podemos falar também dos coccídios, como o cryptosporidium, que causam diarreia principalmente em crianças. E também pelos vermes, como é o caso da estrongiloidíase, por exemplo. Na verdade, ele penetra pela pele e assim provoca diarreia. As fezes contaminadas, com ovos de strongyloides, se desenvolvem em larvas no solo, e se não têm um destino adequado, vão infectar novos indivíduos. Assim, eu diria que no reino dos micro-organismos e até do vermes existem uma infinidade de doenças que podem ser transmitidas pela falta de saneamento”, conclui.
É importante lembrar que a diarreia ainda é uma causa importante de mortalidade, principalmente entre crianças. Dados de 2018 do Ministério da Saúde mostram que houve quase 80 mil internações causadas por diarreia, e que as regiões com maior mortalidade são o Nordeste e o Norte do país.
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Dengue e chikungunya
Outras doenças que assolam o país são as que são transmitidas tendo mosquitos como vetores. Dengue e chikungunya infectam milhares de brasileiros todos os anos, levando, muitas vezes, a óbitos. Até o mês de março de 2023 foram 117 mortes por dengue e 6 por chikungunya. Embora não tenha o mesmo ciclo oral-fecal que a maioria das doenças causadas por falta de saneamento básico, essas enfermidades são transmitidas através de mosquitos que se desenvolvem em água parada.
Segundo o dr. Marcelo, “esses locais servem de criadouros para os vetores, que são os mosquitos. Eles vão transmitir a doença de uma pessoa para a outra. Então o saneamento e a limpeza do ambiente são fatores que vão contribuir bastante para evitá-las. Mesmo que não sejam doenças que são transmitidas pela água ou que passam de indivíduo a indivíduo pelas fezes. O ambiente limpo é fundamental para evitar o criadouro desses vetores, uma vez que eles se estabelecem geralmente num ambiente úmido e mal capinado”.
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Pessoas em situação de rua
Segundo especialistas, a situação de pessoas em situação de rua pode ser ainda mais grave. “Em alguns casos, toma-se até banho em águas contaminadas e o risco não só de ingesta, mas o contato com águas contaminadas. Eu diria que há um aumento de risco de doenças infecto-parasitárias que podem gerar problemas respiratórios, mas sobretudo intestinais, hepáticos e de pele. Algumas verminoses causam inclusive doenças pulmonares”, explica o dr. Alexandre.
Para o dr. Marcelo, no caso específico da população em situação de rua, há alguns agravantes em termos de saúde pelo fato de se tratar de pessoas que não possuem as mesmas condições daquelas que estão em uma moradia. Portanto, além da falta de saneamento básico, não possuem condições para cuidar da própria higiene.
“Há uma porção de doenças que são relacionadas ao contato direto entre pessoas. E em muitos casos, a população em situação de rua se aglomera. Então existe muita transmissão aérea de doenças como a tuberculose ou a covid, por exemplo. Outra questão é a transmissão de doenças por contato direto, como a escabiose. Podemos citar também as doenças de transmissão sexual que são bastante importantes. A população de rua tem uma prevalência de infecção por HIV, assim como de hepatite B. Por não terem condições de moradia, estão certamente privados do acesso ao saneamento básico”, diz.
A dr. Claudia acrescenta que por se tratar de uma população mais vulnerável ao contato de água e alimentos contaminados, há um aumento do risco de as doenças associadas à falta de saneamento básico se manifestarem. “E habitualmente, como seu estado nutricional e imunológico são mais frágeis, essas doenças podem ser fatais”, conclui.
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Em busca de soluções para a falta de saneamento básico
Tomando como referência sua recente experiência em Moçambique, o dr. Marcelo explica quais são as bases necessárias para melhorar a situação de pessoas que vivem com essa precariedade. “É necessário avaliar outros aspectos sociais de convívio e de hábitos da população para estabelecer uma relação de confiança. É esse o ponto de partida para que se possa fazer uma intervenção produtiva, em qualquer tipo de comunidade, seja de moradores de rua, de comunidades periféricas ou de povos da zona rural da África.”
Ele também destaca a importância de não culpar o indivíduo quanto à situação em que se encontra. “Existe uma tendência por parte do Estado de culpar o indivíduo pela ocorrência de doenças, quando na verdade é o contrário. É necessário se unir a essas pessoas para construir uma solução conjunta e produtiva.”
E, segundo ele, existem medidas simples a serem implementadas enquanto as soluções mais complexas não podem ser estabelecidas. “Para sanear o ambiente, pode-se recorrer a medidas menos complicadas e que possuem um efeito muito importante. Por exemplo: em algumas comunidades periféricas o destino dos dejetos acaba sendo um córrego ou riacho que passa ao lado. Pode-se implementar um reservatório de tratamento de fezes nesse local.” Esse tipo de ação pode acontecer antes da construção de algo mais efetivo, como uma estação de tratamento e do acesso à água encanada. A construção desses artifícios junto a comunidade é essencial para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. “Acho que falta esse senso de convívio com a comunidade, de parceria. Podemos pensar em soluções que já existem, que não são desconhecidas, e só precisam ser colocadas em prática”, finaliza.
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Sobre a autora: Tarima Nistal é jornalista e especialista em comunicação digital e marketing. Interessa-se por questões relacionadas à saúde das mulheres, alimentação saudável e meio ambiente.