Atendimento a pessoas em situação de rua inclui necessidades básicas

Pessoas em situação de rua precisam de roupas, estadia, alimentação e ajuda com emissão de documentos. Trabalho de assistentes sociais é indispensável.

Homem em situação de rua deitado em calçada com pessoas passando ao largo.

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Publicado em: 24 de setembro de 2019

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Pessoas em situação de rua precisam de roupas, estada, alimentação e ajuda com emissão de documentos. Trabalho de assistentes sociais é indispensável.

 

No fim de um dia comum, você provavelmente segue uma rotina. Em linhas gerais, para muita gente isso significa chegar em casa, tomar banho, assistir a um episódio da série favorita enquanto janta e, quando o sono bate, deitar na cama e dormir. Para outros, porém, o simples ato de chegar em casa já é impossível, pois eles sequer têm moradia fixa. A população em situação de rua precisa buscar todos os dias um lugar para dormir, comer e tomar banho.

O decreto 7.053 de 23 de dezembro de 2009 define como população em situação de rua o “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

Veja também: Entrevista sobre violência e saúde pública

A Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil, feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) em 2015, chegou ao número de 101.854 mil pessoas nessa condição naquele ano. No mesmo estudo, foi identificado que 97 mil municípios não possuem levantamento ou pesquisa sobre essa população, o que mostra que a taxa deve ser maior e dá uma ideia de como muitas vezes esse grupo é invisível aos olhos da sociedade.

São Paulo é um dos melhores lugares pra se ter noção da quantidade de gente que dorme em praças e calçadas. De acordo com o Censo da População em Situação de Rua (também de 2015), cerca de 15 mil pessoas se encontravam nas ruas da cidade naquele ano. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, os dados serão atualizados em 2019, mas algumas organizações estimam que a população atual esteja entre 20 e 25 mil pessoas.

Os perfis de quem chega a essa situação são heterogêneos. Homens e mulheres, cisgêneros (pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em seu sexo biológico) e transgêneros (indivíduos cuja identidade de gênero não corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em seu sexo biológico), de todas as idades, dependentes químicos ou não, com ou sem formação escolar e profissional, dos mais variados estados e países. Mesmo assim, existe um recorte racial. O Censo de 2015 mostra que 70,81% dessa população que vivia em São Paulo era de “não brancos”, composta por negros, amarelos e indígenas.

O primeiro grande problema a ser enfrentado em questão de saúde é que essa situação é cada vez mais normalizada. A sociedade se acostuma a não se importar com a história daquelas pessoas e não sabe como contribuir para que saiam dessa situação. Em alguns casos, o desdém dá lugar à violência. Em um episódio que ficou conhecido como o Massacre da Sé, ocorrido entre os dias 18 e 19 de agosto de 2004, sete pessoas em situação de rua foram mortas enquanto dormiam na praça da capital paulistana. Dados do Ministério da Saúde mostram que. entre 2015 e 2017, 17.386 casos de violência notificados no país tiveram como motivação a situação de rua da vítima.

Essa população depende do trabalho de organizações não governamentais e de serviços públicos não somente para suprir necessidades básicas de alimentação, vestuário, abrigo, higiene pessoal e saúde, mas também para se manterem vivas.

 

QUESTÃO DE SAÚDE

 

Má alimentação, falta de higiene pessoal adequada, exposição constante à poluição e variações climáticas são alguns fatores que afetam a saúde desse grupo. A falta de acesso a prontos-socorros e hospitais pode agravar o quadro.

De acordo com o “Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua”, de 2012, algumas doenças são identificadas com maior frequência nessas pessoas. Problemas nos pés, como micoses, erisipela, unha encravada, calos e bicho-de-pé são comuns devido ao longos períodos que elas passam em pé, muitas vezes caminhando com calçados inadequados e expostos a longos períodos de umidade.

Doenças que poderiam ser facilmente resolvidas com medidas simples de higiene pessoal também são recorrentes, como infestações por piolhos e sarna e doenças de pele. Doenças bucais estão presentes em 30% das pessoas em situação de rua em São Paulo. Uma semana sem escovar os dentes é suficiente para o acúmulo de bactérias e restos de comida levar a mau hálito, inflamação e sangramento na gengiva. Sem tratamento, invariavelmente o quadro evolui para cáries e perda dos dentes e pode desencadear infecções generalizadas.

O risco de infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis, herpes genital, clamídia, HIV, entre outras, também é alto. Dados do Censo mostram que 45% da população em situação de rua em São Paulo declaram utilizar preservativos, o que ainda é muito longe do ideal. Casos de tuberculose também são frequentes. Pessoas em situação de rua têm risco de 48 a 67 vezes maior de contrair a doença.

Mulheres ainda possuem maior probabilidade de ter uma gravidez de alto risco, com complicações e abortamentos espontâneos como consequência da vulnerabilidade em que se encontram.

O Censo aponta que 67,9% das pessoas em situação de rua declararam fazer uso de substância psicoativas, mas para definir quais são dependentes seria necessário um estudo mais aprofundado. O uso de drogas é um dos principais estigmatizantes dessa população, embora a dependência química seja uma doença que precise de acompanhamento e tratamento especializado, e não um problema de caráter. Além de uma questão de saúde, é uma questão social.

A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo adiciona mais alguns itens à lista das doenças mais recorrentes nessa população, como transtornos mentais, como depressão e esquizofrenia, dores crônicas, problemas provocados por acidentes, hipertensão, doenças respiratórias e do aparelho digestivo.

 

Vídeo: Psiquiatra fala sobre a esquizofrenia em pessoas em situação de rua

 

Atendimento no sistema público

Em 2011, o Ministério da Saúde implantou o programa Consultório na Rua para mitigar o problema da falta de acesso dessa população aos serviços de saúde, promovendo prevenção, consulta e acompanhamento, inserindo-a no Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o documento que regulariza o funcionamento desse programa, cada equipe atende de 80 a 1.000 pessoas em situação de rua. Na cidade de São Paulo, os serviços são prestados por 19 equipes de médicos, dentistas, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, agentes sociais, agentes de saúde, assistentes sociais e psicólogos. De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, 50 mil atendimentos são feitos por mês por meio desse programa.

Vale lembrar que os serviços do SUS, disponíveis em Unidades Básicas de Saúde (UBS), Assistências Médicas Ambulatoriais (AMA) e Centros de Atenção Psicossocial (Caps), são para todos, não sendo obrigatório passar por um Consultório na Rua para ser encaminhado. Ao todo, o Censo de 2015 mostra que 90% das pessoas em situação de rua utilizaram algum serviço público de saúde.

Adriano Diniz é um dos agentes sociais da unidade do Consultório na Rua que atende parte da zona norte da cidade de São Paulo. Seu trabalho inclui entender e transmitir qual é a demanda de atendimento das pessoas em situação de rua. “Nossa abordagem é respeitosa. Criamos vínculos e acompanhamos essas pessoas nos hospitais, prontos-socorros, albergues, entre outros. Garantimos o acesso dos pacientes aos serviços e defendemos seus direitos”, afirma o agente, que trabalha desde 2008 atendendo essa população.

Nesse tipo de atendimento, é fundamental estabelecer uma relação de confiança. É preciso paciência e empatia para compreender que muitas vezes essas pessoas evitam serviços e funcionários públicos por medo de julgamento ou represália. Adriano entende e respeita as necessidades e particularidades da população de rua com esmero especial porque, no passado, ele também esteve nas ruas de São Paulo. “Após a morte de um primo, acabei perdendo a cabeça. Éramos muito parceiros. Troquei minha moto por drogas e fui morar na rua”, conta. Adriano considera essa experiência importante para que ele tenha mais efetividade no acesso à população de rua. “Falar a ‘língua’ deles e entender suas questões facilita tudo”, afirma.

Ele também explica que o maior erro nesse contato direto é achar que a pessoa em situação de rua deve agir de acordo com o que você acredita. “As pessoas não podem projetar no paciente o que querem que ele faça. Têm de respeitar e compreender que eles também têm sua agenda, igual a todo mundo. De manhã vão a um lugar tomar café, à tarde vão em outro tomar banho. Temos que respeitar que, às vezes, não estão disponíveis”, alerta o agente social. Ele conta que utilizou serviços médicos quando estava na rua quando teve problemas nos dentes.

Além do trabalho com empatia, para aumentar a chance de uso dos serviços de saúde por esse grupo é necessário dar um passo para trás e diminuir disparidades sociais, inserindo essa população em um modo de vida que a distancie da vulnerabilidade das ruas. O acesso à saúde é facilitado quando a pessoa é acolhida, ou seja, é usuária de uma unidade dedicada a fornecer estada temporária para essa população. Os Centros de Acolhida (CA) e Centros Temporários de Acolhimento (CTA) são alguns dos exemplos desse tipo de serviço. Segundo o Censo de 2015, pessoas acolhidas por esses locais buscam os serviços de saúde com mais frequência e fazem acompanhamento e tratamento de doenças com maior regularidade.

 

ACOLHIMENTO

 

Na cidade de São Paulo, existem 148 serviços de acolhimento disponíveis para a população em situação de rua. São locais ligados à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social que possuem refeitórios, dormitórios, banheiros, áreas de convivência e lavanderias, entre outras estruturas que variam de unidade para unidade (algumas possuem até canis). Um desses centros se destaca pelo tamanho e quantidade de serviços prestados.

O Arsenal da Esperança, localizado no bairro da Mooca, foi fundado em 1996 pelo Servizio Missionario Giovani (Sermig), uma organização não governamental (ONG) ligada à Igreja Católica que acolhe pessoas em vulnerabilidade social ao redor do mundo. A unidade ocupa um espaço onde antes ficava a Hospedaria de Imigrantes do Brás, que recebeu mais de 2 milhões de pessoas de mais de 70 nacionalidades entre 1887 e 1978. A hospedaria também recepcionou o grande contingente de migrantes do nordeste brasileiro que foram para São Paulo a partir da década de 1930. Atualmente, o Arsenal ocupa 70% do terreno da antiga hospedaria, sendo os 30% restantes utilizados pelo Museu do Imigrante.

Em uma praça logo na entrada do Arsenal, uma estrutura que imita parte de um muro traz uma frase que remete às origens da organização: “A bondade desarma.” É uma referência à sede italiana, fundada em 1983 em uma fábrica de armas desativada de Turim. Existem ainda outras duas extensões da sede: o Arsenal do Encontro, em Madaba (Jordânia), e o Arsenal da Acolhida, em Borghetto Lodigiano (Itália). Ao entrar na unidade brasileira, logo na parede da recepção, a referência é reforçada. Um quadro com facas, socos ingleses e machados — todos pintados de branco em sinal de paz — é acompanhado de um versículo bíblico, Isaías 2:4: “E ele julgará entre as nações, e repreenderá a muitos povos; e estes converterão as suas espadas em enxadões e as suas lanças em foices; uma nação não levantará espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerrear.”

A maioria dos centros de acolhida de São Paulo funciona com vagas rotativas, ou seja, a pessoa utiliza os serviços enquanto fica no local, mas não tem uma vaga reservada para ela. O acolhido entre à noite, sai pela manhã e precisa entrar em uma fila novamente ao fim do dia para garantir sua vaga (por mais uma noite). Já o Arsenal funciona de forma diferente. Existem 50 vagas rotativas de pernoite, mas a maioria é composta por 1.150 vagas fixas. O interessado entra em uma lista de espera e, ao ingressar, pode permanecer até ter condições financeiras suficientes para sair. O local fornece refeições, leitos, lavanderia, vestuário, biblioteca, salão de jogos e cursos de capacitação profissional com certificados do Serviço Nacional da Indústria (Senai). O padre Simone Bernardi, missionário no Arsenal, afirma que “o desafio é ser mais que um albergue”. O principal preconceito de quem não conhece o trabalho dos centros de acolhida é achar que as pessoas se acomodam e fazem dali uma moradia fixa, mas a maior permanência registrada na unidade é de dois anos.

O Arsenal da Esperança acolhe somente homens maiores de 18 anos. De acordo com o padre Bernardi, focar na população masculina em situação de rua foi uma opção para atingir o maior contingente em São Paulo (82% do total, de acordo com o Censo de 2015). Outro fator que contribuiu para a decisão é que, para atender mulheres — com ou sem crianças –, seria necessária outra estrutura, por conta de necessidades específicas de acordo com gênero e idade. Outros CAs do município acolhem grupos femininos, incluindo um especificamente para travestis e mulheres trans.

Foi no Arsenal que o agente social Adriano Diniz foi acolhido após passar um mês na rua. Ele trabalhou no local — existe um programa interno rotativo que possibilita a quem fez os cursos profissionalizantes trabalhar ali mesmo — e participou do curso de panificação. Durante um ano, ele foi se estruturando para mudar de vida. Foi nesse período que ele viu a vaga para agente social. “Várias pessoas que entraram nessa mesma situação estão até hoje trabalhando nos Consultórios na Rua ou como agentes de saúde”, afirma Diniz.

Com uma renda fixa como agente, ele pode deixar o Arsenal e ir para um hotel social, um tipo de estabelecimento que sofre alterações constantes com as mudanças de governo, mas que é destinado a pessoas que começaram a adquirir estabilidade financeira para pagar por uma estada e iniciaram sua saída da situação de rua. Em 2016, ele se formou em Serviço Social, aos 43 anos. Por insistência de uma assistente social para que ele voltasse a estudar, terminou o Ensino Médio e prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Com a nota, conseguiu uma bolsa via ProUni (Programa Universidade para Todos) em uma faculdade particular de São Paulo. “O que consegui construir foi com a ajuda de muita gente”, fala agradecido o agente social.

O corpo profissional é composto por outros 90 funcionários de diversas áreas, sendo que 40 são ou foram acolhidos da casa. Ainda, 350 voluntários trabalham e desenvolvem diferentes atividades, como atendimento no bazar, auxílio na troca das roupas de cama e organização da biblioteca.

Uma parte vital do cuidado com pessoas em situação de rua é conduzida por assistentes sociais. Orientação para solicitação de documentos pessoais (RG, CPF, certidão de nascimento, carteirinha do SUS, registro escolar etc.), pedidos de aposentadoria por idade, solicitação de benefícios de programas de transferência de renda e busca por familiares são as principais tarefas. No Arsenal, são 20 assistentes sociais que atendem os 1.200 acolhidos das 7 h às 21 h, ininterruptamente, separados em turnos. “Acolhidos não são somente usuários de drogas ou desempregados. São diversas situações que levam uma pessoa para a rua. Primeiro, temos que entender o perfil e identificar se as ferramentas que a organização tem atendem aquela demanda. Hoje, a assistência trabalha com um plano individual de atendimento. Analisamos e trabalhamos caso a caso”, afirma Isabel Del Pozo, assistente social e gerente de serviço do Arsenal da Esperança.

 

AUTONOMIA

 

O trabalho dos assistentes sociais sofre um estigma que ronda muitas políticas sociais. Muitos veem seu trabalho como assistencialismo, como se o acolhido estivesse se aproveitando do serviço. “Aqui no Arsenal a gente tem a proposta de quebrar essa visão de que quem entra aqui vem só para receber. Ele tem o direito de ser acolhido. O que às vezes não é bem compreendido é o movimento que cada um tem que fazer para resgatar sua identidade e autonomia”, aponta Del Pozo.

O preconceito é só um dos obstáculos que pessoas em situação de rua enfrentam para mudar sua condição. A discriminação se junta a problemas de saúde, questões financeiras, falta de formação acadêmica e de experiências profissionais. Isabel observa que essa população desenvolveu a capacidade de se manter com condições mínimas de sobrevivência, mas esse contexto lhes impõe dificuldades para fazer planos de longo prazo. “É um dos trabalhos que as assistentes sociais desenvolvem aqui. Estimulamos que os acolhidos pensem em um futuro próximo, não só no agora.”

Para auxiliar na parte financeira, as assistentes sociais encaminham o acolhido para um Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), onde ele pode ser cadastrado no Bolsa Família e passar a receber R$ 89 mensais. Outra forma que o Arsenal encontrou de resgatar a autonomia financeira do acolhido é a criação de uma moeda própria, que pode ser obtida mediante a entrega de latas de alumínio. O material é reciclado e gera renda para a unidade, enquanto a moeda própria pode ser usada para comprar roupas, alimentos, artigos de higiene, entre outros produtos disponíveis no bazar do Arsenal. Vale lembrar que o local já fornece roupas, produtos de higiene pessoal, cobertores e alimentação, mas dar esse poder de consumo é muito importante para o acolhido se sentir parte do funcionamento convencional da sociedade.

Os acolhidos também recebem auxílio na construção do currículo e podem deixar o número de telefone do Arsenal para receber recados relacionados a chamadas para entrevistas de emprego. Além dos postos de trabalhos internos, o Arsenal faz parcerias com empresas e indústrias que buscam profissionais. A grande dificuldade nesses casos é o contratante entender as particularidades que poderão surgir ao admitir pessoas em situação de rua, como a dificuldade para socializar com outros funcionários. É preciso também estar ciente de dificuldades que precisam ser absorvidas no esforço de contribuir com tal contratação. Uma pessoa em situação de rua não tem um local individual para lavar uniformes e não pode iniciar o trabalho sem receber o vale-transporte antecipadamente, por exemplo.

Assim como Adriano, Fernando Menoncello é outra das milhares de pessoas que passaram pelo Arsenal e que seguiu uma estratégia para se profissionalizar e deixar a situação. Durante 1 ano, entre 2012 e 2013, o treinador de boxe e ex-atleta profissional foi acolhido após iniciar seu tratamento contra a dependência química no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod). Bolacha, como é conhecido no meio do boxe, passou 3 dias em situação de rua enquanto aguardava uma vaga fixa no Arsenal. Antes disso, havia morado de favor em diversas casas. “Quando entrei no Arsenal já foi pensando em mudar de vida. O período me deu calma e tranquilidade para pensar no que eu ia fazer para mudar a situação”, afirma o treinador.

Enquanto estava acolhido, o Arsenal possibilitou que ele pudesse ter uma formação profissional. “Fiz dois cursos no Senai Ipiranga, indicado pelo Arsenal. Entrei para fazer o de operação de empilhadeira e vi que também tinham aberto inscrição para o de operador de pátio. Passava dois períodos, manhã e tarde, fazendo os cursos”, conta o treinador.

Para ter renda, fazia alguns serviços gerais para lojas e empresas próximas do Arsenal. Um dia, em um desses trajetos, Bolacha passava por baixo do Viaduto Alcântara Machado, na Mooca, quando viu um ringue. No local, funciona o Garrido Boxe, projeto social criado por Nilson Garrido, um dos maiores treinadores do boxe paulistano, que desde 2004 realiza esse trabalho, dando aulas voluntárias da nobre arte. Bolacha entrou e perguntou se poderia voltar a treinar o esporte que havia abandonado como consequência da dependência química. Logo começou a fazer suas primeiras lutas amadoras e a dar aulas. Foi nessa época que deixou o Arsenal, logo após concluir os cursos do Senai, e foi morar no alojamento do projeto, para se dedicar integralmente ao boxe. “O Garrido foi muito importante para eu mudar de vida. Mas o Cratod e o Arsenal tiveram um grande papel nisso tudo. Foi no Arsenal que voltei a ter foco”, conta Bolacha.

Apesar de o Arsenal ter uma enfermaria mantida em parceria com o Hospital São Cristovão, que disponibiliza 3 funcionários, o CTA não é um centro médico. Ainda assim, precisa lidar com as doenças mais recorrentes dos acolhidos. Mesmo que não seja o profissional indicado para o tratamento, muitas vezes é o assistente social que identifica os primeiros sintomas e encaminha para um atendimento especializado. Os acolhidos são direcionados para as UBS e Caps da região, mas os serviços não suportam a demanda da população local (seja em situação de rua ou não), assim como diversos hospitais de outras localidades. Isabel reforça que “existem alguns acolhidos com doenças mais graves, como câncer, que possuem sondas. Não temos condições de atender esse tipo de necessidade. Em uma visita hospitalar, os profissionais de saúde disseram que um desses casos poderia voltar para casa e não aceitaram que aqui não seria esse lugar, que é um espaço transitório, um centro temporário de acolhimento. A gente tenta dar um ar doméstico no Arsenal, mas não existe casa em que moram mais de 1200 pessoas”.

O trabalho do Arsenal é feito 365 dias por ano e depende de verba públicas e doações de empresas, além de serviço voluntário. Em maio de 2019, o repasse mensal da Prefeitura de São Paulo foi de pouco mais de 780 mil reais, valor destinado para recursos humanos, alimentação, água, luz, telefone e gás.

 

A VIDA CONTINUA

 

Após construir uma experiência no boxe e participar de cursos especializados, Bolacha criou o seu próprio projeto social: Das Ruas Para os Ringues. Hoje, funciona em 2 unidades, uma no Centro Esportivo de Pirituba e outra no CDC Curtiball, na Freguesia do Ó. O treinador ainda dá aulas particulares e em academias privadas. Apesar de não ter apoio da Prefeitura ou de patrocinadores, o projeto já mostra sucesso. Diversos jovens atletas ganharam destaque nos campeonatos de boxe do Estado e foram até convocados para a Seleção Brasileira. Isabella Gomes é uma das alunas do projeto, luta na categoria feminina até 51 quilos e já foi bicampeã Paulista e campeã brasileira juvenil. Em 2018, foi selecionada para defender o país na Campeonato Continental de Boxe Juvenil.

Em 2017, Bolacha voltou ao Arsenal com um objetivo bem diferente daquele de 2012, quando foi acolhido. Ele foi contar um pouco da sua trajetória em uma palestra para cerca de 500 alunos de escolas da região, que visitavam o CTA para fazer trabalho voluntário. “Foi emocionante contar os dois lados da minha história: o do professor de boxe e o do dependente químico. Me arrepio só de contar”, recorda o treinador. Hoje, com 37 anos, mora com a mulher próximo de uma das unidades do Projeto e dedica boa parte da sua vida ao boxe.

Sua palestra passou também pela Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, onde jovens cumprem medidas no Estado de São Paulo por terem cometido algum crime. De acordo com o Estudo da Reincidência Infracional do Adolescente no Estado de São Paulo, publicado em 2018, 66,3% dos jovens internos são reincidentes.
Na Palestra, Fernando contou sua história e fez um convite aos adolescentes: irem conhecer o Das Ruas Para os Ringues quando deixarem a Fundação. É através dessa sensibilização que Fernando vê uma forma de tentar retribuir um pouco do que fizeram por ele e dar uma possibilidade de mudar suas trajetórias.

Histórias como as de Adriano e Bolacha indicam alguns caminhos que certamente não passam pela indiferença. Existem milhares de pessoas em situação de rua que querem mudar de vida, trabalhar, estudar e ter sua própria moradia. “Por mais que seja um volume absurdo de acolhidos, a gente tem histórias de pessoas, não de números”, fala com orgulho a assistente social Isabel Del Pozo, há 22 anos trabalhando no Arsenal da Esperança.

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