Aumentam os diagnósticos de autismo em mulheres, apesar dos desafios


Equipe do Portal Drauzio Varella postou em Psiquiatria

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Publicado em: 25 de março de 2024

Revisado em: 25 de março de 2024

Com mudanças nos critérios diagnósticos e mais acesso à informação, tem aumentado o número de pessoas diagnosticadas com TEA no mundo.

 

“A gente é igual ao relâmpago quando acerta o chão. É oito vezes mais quente que a superfície do Sol, uma força tão violenta que desloca o ar e provoca som.  A pessoa autista tem muita potência, ela só precisa chegar ao chão, ela só precisa achar o caminho dela. Aí ela exerce essa forma de ser, e move o mundo. As pessoas dizem que [o autista] é uma pessoa cheia de problemas, mas é uma pessoa que tem potências, e que precisa de ajuda para poder exercê-las.”

É essa metáfora que Ilus, que escolheu não compartilhar o sobrenome, usa para descrever o autismo, e sua relação com capacidade e necessidade. Ilus é uma pessoa autista, artista, doutora em física e promotora de atividades de socialização para autistas adultos. O transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento cujo número de diagnósticos tem aumentado ao longo dos anos no mundo todo. Grupos antes invisibilizados, como mulheres, autistas nível 1 de suporte (que apresentam sintomas mais sutis), negros e indígenas têm tido um pouco mais de facilidade para obter o diagnóstico, apesar de ainda haver desafios.

De acordo com relatório divulgado em 2023 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, em 2020, uma a cada 36 crianças estadunidenses de até oito anos havia sido diagnosticada com autismo. É preciso utilizar e analisar dados estrangeiros, neste caso, porque no Brasil ainda não há dados em relação ao diagnóstico de autismo. O número verificado pelo CDC é um salto em relação ao estudo anterior, lançado em 2021, em que havia uma criança diagnosticada com TEA a cada 44. Esse aumento foi identificado progressivamente desde o início das pesquisas, nos anos 2000, quando o índice era de uma a cada 150 crianças.

Nesse sentido, pode surgir a pergunta: “O número de pessoas no espectro autista está aumentando?”. E a resposta é não. Para a maioria dos especialistas, é o número de diagnósticos que tem aumentado, e não o de casos. De acordo com o neuropsicólogo e doutor em psicologia Mayck Hartwig, existe uma série de fatores para que isso esteja acontecendo ano após ano. “Hoje nós já temos estudos que indicam que esse aumento está associado à ampliação de técnicas e estratégias para diagnóstico do autismo, à formação dos profissionais de saúde mental, principalmente no que diz respeito ao diagnóstico tardio de pessoas adultas, ao acesso das pessoas à informação, e a mudanças nos critérios diagnósticos”, explica ele. Além disso, muitas vezes o diagnóstico de TEA em adultos vem por meio do parentesco com crianças recém-diagnosticadas, como ressalta o Hartwig, especializado em autismo em pessoas adultas: “Hoje nós já sabemos que o autismo é uma condição com alto índice de hereditariedade, e isso tem facilitado a busca de pais e mães de crianças autistas pela avaliação também”.

A neuropsicóloga especialista em autismo, Marina Almeida, destaca, porém, que existem evidências científicas de que alguns fatores podem estar aumentando o número de pessoas autistas. “Fatores ambientais que acontecem durante os nove meses de gestação, combinados com fatores genéticos, podem aumentar as chances das crianças terem autismo. Pais ou mães acima de 35 anos, diabetes gestacional, sobrepeso, hipertensão na gravidez, a exposição a toxinas ambientais, pesticidas, certos usos de medicação na gravidez como antiepilépticos e antidepressivos também estão sendo indicados como possíveis desencadeadores de autismo”, afirma a neuropsicóloga.

Nesse contexto de melhoras, diagnósticos mais difíceis, como de adultos nível 1 de suporte e de mulheres, podem ser um pouco mais acessíveis.

 

Diagnóstico de autismo em adultos e Nível 1 de suporte

De acordo com as classificações médicas, o TEA é dividido em três níveis de suporte: nível 1, nível 2 e nível 3, aumentando a quantidade de ajuda necessária para realizar atividades do 1 para o 3. 

No nível 1 de suporte, o autista pode não ter nenhum atraso na linguagem, conseguir realizar tarefas básicas e até complexas, mas ainda sofre com dificuldades de socialização. 

No nível 2, é possível que haja necessidades de adaptações para que o autista consiga desempenhar suas atividades cotidianas, e pode ou não haver prejuízo de linguagem. 

No nível 3, é comum que haja necessidade de suporte para atividades básicas e ausência ou grande prejuízo de linguagem.

Cabe destacar, porém, que é possível que um mesmo paciente transite entre níveis de suporte ao longo da vida, de acordo com fases do desenvolvimento, com acontecimentos externos e com o tipo de tratamento a que tem acesso.

No passado, era mais comum somente pessoas autistas de níveis de suporte mais elevados terem o diagnóstico, por causa de uma gama de estereótipos que acompanham a pessoa autista. Porém, com os avanços mencionados por Hartwig, tem havido mais espaço para o diagnóstico de autistas de nível 1, que podem passar despercebidos durante toda a vida, e só alcançarem o diagnóstico na fase adulta. 

“O que a gente vê na clínica é que há um aumento no diagnóstico de pessoas adultas, especialmente de mulheres, que têm buscado o diagnóstico de autismo de forma tardia. Geralmente essas pessoas são classificadas como nível 1 de suporte, e se adaptaram à escola, universidade, ao trabalho, mesmo com bastante dificuldade. Essas pessoas muitas vezes já chegam também com outros transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão, e é muito comum também que essas pessoas já tenham apresentado ideação suicida em algum momento da vida”, explica Hartwig.

        Veja também: Autismo em adultos: como lidar com o diagnóstico tardio

 

Autismo em mulheres

Em mulheres, o processo de diagnóstico de autismo pode ser ainda mais difícil. Segundo o CDC, o TEA é quatro vezes mais comum em meninos. Isso ocorre por uma série de fatores, que envolvem genética, papéis de gênero e a tradição médica. Marina Almeida  explica que, nas meninas, o marcador do neurodesenvolvimento começa na puberdade, enquanto, nos meninos, se inicia já na infância. Isso dificulta que mulheres sejam diagnosticadas com autismo na infância, momento mais adequado para isso.

Vivian Varaldo é uma dessas mulheres que tiveram diagnóstico tardio de autismo na idade adulta. Mesmo sendo psicóloga e atuando na área há muitos anos, ela nunca havia desconfiado da possibilidade de pertencer ao espectro, até que, no ano passado, o sobrinho foi diagnosticado com o transtorno de neurodesenvolvimento. Ao observar que também apresentava os mesmos sintomas que ele, procurou a mesma médica e também foi diagnosticada com autismo.

Almeida destaca que algumas meninas autistas são muito quietinhas e caladas, o que é valorizado em mulheres pela sociedade patriarcal. “São menininhas às vezes muito boazinhas que falam pouco, ou que falam demais, não têm filtro, têm muita ingenuidade”, explica a psicóloga.

Hartwig também chama a atenção para alguns fatores dificultadores para o diagnóstico de TEA em mulheres: “Mulheres geralmente apresentam uma cognição social mais bem desenvolvida. Elas têm uma melhor percepção social, ou seja, elas conseguem observar e analisar melhor o comportamento das outras pessoas e imitar. Além disso, o processo de socialização e o que se espera a respeito do comportamento social de mulheres é diferente. Então, geralmente, na infância as regras de como se comportar são muito bem expostas para as meninas”. 

Além disso, Hartwig e Almeida destacam que, historicamente, os métodos de diagnóstico e pesquisas de autismo eram feitos focados em homens. Um estudo publicado na Cambridge University Press discute um viés de gênero na triagem do autismo, indicando que manifestações masculinas do autismo eram utilizadas na avaliação universal do TEA. “Historicamente, nas evidências que a gente tem de autismo, o marcador era para homens, inclusive os testes foram feitos e criados em cima de uma demanda de homens”, explica Almeida.

Outro ponto que dificulta o diagnóstico de autismo em mulheres é o masking, ou mascaramento, que ocorre quando o paciente imita pessoas neurotípicas para se adaptar socialmente. “As meninas fazem uma hiperadaptação social, que se torna uma camuflagem, o que vai dificultando o diagnóstico. Mas isso gera um grande sofrimento, porque elas nunca foram reconhecidas”, esclarece Almeida. Inclusive, uma das comorbidades que podem se somar ao autismo ao longo dos anos é o burnout, gerado pelo desgaste do mascaramento a longo prazo, segundo os especialistas citados na matéria.

 

Outros grupos invisibilizados

Não são apenas as mulheres que têm dificuldade em obter o diagnóstico de autismo devido a fatores sociais, porém. Hartwig destaca que os diagnósticos de pessoas de grupos étnicos como negros e indígenas são subnotificados, uma vez que a maioria dos dados sobre autismo são em pessoas brancas. O CDC também reconhece que o TEA ocorre em todos os grupos raciais, étnicos e socioeconômicos. Dessa forma, entende-se que o baixo índice vem da falta de notificação.

“Isso acaba indicando para a gente o quanto o diagnóstico ainda está associado a questões culturais, sociais, étnico-raciais e de realidade socioeconômica, porque algumas pessoas acabam nem conseguindo acessar o diagnóstico do autismo”, afirma Hartwig.

Além disso, existe uma maior incidência de autismo na população transexual. De acordo com um estudo publicado no “Sage Journals”, isso pode acontecer por uma menor compreensão de gênero pelos autistas, e por uma maior tendência de subversão às regras sociais.

Ilus viveu isso na pele. Ela se entende como gênero fluido, e se identificou muito quando descobriu o termo autigender, que se refere à sexualidade e identidade de gênero de pessoas autistas. “Meu mundo melhorou umas duzentas vezes, porque é o entendimento de que o autismo não está descolado do gênero. A gente tem um cérebro que está mais desconectado a essas informações não verbais da sociedade. E com isso a gente tem uma dificuldade, porque existe muita coisa subliminar na afirmação de gênero, que passa batido para muitas pessoas autistas”, afirma.

 

Importância do diagnóstico

O TEA pode estar associado a outras comorbidades, principalmente quando é diagnosticado tardiamente. Além disso, a segunda maior causa de morte de autistas é o suicídio. O diagnóstico, porém, pode diminuir essa possibilidade. Um estudo publicado na “National Library of Medicine” evidencia que ser diagnosticado pode reduzir em duas vezes os riscos de depressão nos pacientes com autismo.

“Uma vez que a pessoa se entende enquanto uma pessoa neurodivergente, ela trabalha o processo de aceitação, e consequentemente há uma redução do sofrimento relacionado a ser diferente da grande maioria das pessoas. Isso, por si só, acaba contribuindo para a redução dos quadros de ideação suicida, uma vez que as taxas de suicídio nessa população são extremamente altas”, explica Hartwig.

Foi o que aconteceu com Ilus. A artista tem 44 anos e, aos 41, obteve o diagnóstico de autismo. “Eu comecei a fazer terapia, e isso me ajudou muito, e a terapia medicamentosa para melhorar as questões do sono. Além disso, depois do laudo, eu tive acesso ao direito de pedir adaptações na faculdade, que foi essencial para eu continuar estudando”, conta. Atualmente, Ilus faz faculdade de música.

Varaldo também sentiu que a vida melhorou após o diagnóstico. Até chegar a ele, ela já tinha vivenciado a depressão. Para iniciar o tratamento para o TEA, a médica de Vivian prescreveu o óleo de canabidiol, que, segundo afirma, tem trazido bons efeitos para ela. “Ele [o óleo] me reorganiza, me regula emocionalmente, fisicamente eu tenho mais energia e disposição para fazer as coisas”, conta.

Embora o canabidiol esteja sendo utilizado por alguns médicos para tratar determinados sintomas associados ao autismo, ainda faltam evidências científicas mais robustas que garantam sua eficácia para o autismo.

        Ouça: DrauzioCast #178 | Autismo em adultos

 

O que fazer?

Se você é uma pessoa que desconfia de diagnóstico de autismo, o protocolo indicado no Brasil é buscar um médico – psiquiatra ou neurologista – que irá encaminhar a investigação. Além disso, existem iniciativas sociais que promovem o bem-estar de pessoas autistas, como os grupos de apoio Adultos no Espectro, organizados por Ilus e por Hartwig, que acolhe em rodas de conversa adultos autistas por um valor social.

 

Sobre a autora: Milena Félix é jornalista, estudante de Filosofia e escritora. Interessa-se por assuntos relacionados à saúde da mulher, meio ambiente e à saúde e sociedade.

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