Com a pandemia do novo coronavírus, muitos começaram a experimentar efeitos da ansiedade na quarentena. Entenda por que nos sentimos assim e o que fazer.
Apesar de informações conflitantes entre autoridades, a ciência indica o distanciamento e isolamento sociais o máximo possível no combate à covid-19. Além das medidas de higiene física, é essencial cuidar da saúde mental, que pode ser afetada sorrateiramente. Conversamos com Júlia Daher Fink, psicóloga clínica e professora universitária, sobre por que esse contexto traz tanta ansiedade e angústia e o que podemos fazer para amenizar esses efeitos. Ouça no player ao final da transcrição, no Spotify, iTunes ou seu aplicativo de podcast.
Veja aqui a revisão de estudos mencionada no episódio.
Edição: Estalo Podcasts
Ouça pelo YouTube:
Luiz Fujita Jr — Olá, eu sou o Luiz Fujita. Sejam bem-vindos a mais um Entrementes, nosso podcast sobre saúde mental. A gente está em março de 2020, ou seja, no início do avanço da covid-19 — que é a doença provocada pelo novo coronavírus — aqui no Brasil. Neste momento em que a gente está gravando, alguns estados estão se adiantando e decretando isolamento.
A gente tem usado termos como “quarentena”, e também surgiu agora o “lockdown”. Tecnicamente, quarentena não é o mesmo que isolamento, mas para o nosso assunto este detalhe não importa tanto. Muita gente está se preparando para a restrição de liberdade — que é o que interessa, pelo nosso assunto de hoje.
Veja também: Nossas respostas às perguntas mais frequentes sobre o novo coronavírus
Muitas pessoas talvez já estejam vivendo aquela situação de não poder ir — e ser atendido presencialmente — ao restaurante favorito; não poder ir a um evento por ele ter sido cancelado; no caso de quem fazia exercícios físicos na rua, passar a abster-se da atividade, e se você tem parentes mais velhos já deve ter sido orientado a evitar o contato presencial com eles, não é?
Além de tudo isso, ronda uma incerteza sobre como as coisas vão se desenrolar. E é óbvio que toda essa situação de repente gera um impacto na saúde mental — e é sobre isso que a gente vai falar. Durante esse período da crise a gente vai tentar aumentar um pouco a frequência dos episódios, [mas] ainda não sei se vai ser possível, porque fico me dividindo entre a redação e a cobertura do [novo] coronavírus. Porém, vamos tentar, porque a gente tem notado que essa é uma demanda do nosso público.
Neste primeiro episódio [focado no período de quarentena e isolamento social], a gente vai dar um panorama geral sobre os impactos; quais sentimentos e emoções esse cenário de quarentena pode despertar; e como amenizar esses efeitos — que é o que eu acho que interessa para a maioria das pessoas.
Para isso, a gente vai falar com a psicóloga clínica e professora universitária Júlia Daher Fink — que é também minha amiga. Então, a gente vai ter uma conversa na qual além de ela contribuir [sanando dúvidas], a gente vai poder testar essa gravação remota [da conversa]. Obrigada pela participação, Júlia.
Júlia Daher Fink — Eu quem agradeço pelo convite. É ótimo estar aqui e poder compartilhar [informações] sobre isso. É lógico que não é um assunto fácil e com o qual a gente gostaria de ter que lidar, mas a gente precisa lidar com ele. Então, eu queria agradecer o convite e agradecer [a] quem estiver ouvindo. Espero que [a conversa] ajude a gente a compreender um pouquinho como é que esse cenário todo do [novo] coronavírus influencia e afeta a gente.
Como falei, a gente vai dividir a nossa conversa em dois blocos — até para que você possa tentar seguir mais ou menos esse roteiro. Primeiro, vamos tentar entender esses sentimentos que surgem, o que é que esse contexto [da pandemia e da quarentena, sobretudo] provoca na gente; a segunda parte seria [sobre] o que fazer, como que a gente pode lidar com essas situações.
Apesar de as pessoas não pensarem tanto nesta primeira parte — [pois] elas querem dicas muito práticas do que fazer no dia a dia —, é interessante [considera-la] porque o autoconhecimento, a consciência do que vem pela frente e a tentativa de se adiantar a possíveis problemas são essenciais para saber como lidar com a segunda parte e colocar algumas coisas em prática. Não é? Então, para iniciar [a conversa], em um contexto inédito [tal] como essa quarentena, no nível global que a gente está vendo, entre todas as emoções que sentimos, quais sentimentos essa situação desperta nesse momento?
Olha, eu acho que qualquer [situação] aversiva e incontrolável, sabidamente por estudos da análise de comportamento — que é uma das abordagens da psicologia —, geram sentimentos de ansiedade, de angústia e, tipicamente, desespero. Então, qualquer condição de incontrolabilidade, de baixa controlabilidade ou de dificuldade de previsão do que está por vir costumam ser situações que aumentam o nível de ansiedade, a frequência dessas respostas e a intensidade delas.
Portanto, não acho surpreendente que a gente já esteja vivenciando, neste cenário, algumas pessoas — senão todos nós — apresentando algum nível de ansiedade que pode ser bastante importante; um nível de sofrimento considerável ou coisas mais corriqueiras que alguns de nós tem conseguido contornar.
Mas, como você disse, é importante a gente falar sobre isso, porque a gente está falando de um cenário incontrolável — que tende a ter uma duração longa. Assim, mesmo quem não está sentindo ainda os efeitos de ansiedade, de angústia diante dessa situação toda, pode vir a apresentar. Acho interessante que a gente fale sobre isso, não só com uma descrição do fenômeno que está acontecendo agora, mas para a gente conversar preventivamente sobre coisas que podem vir a acontecer com muitos de nós.
Você diria que o que mais motiva a gente a estar no grupo de sentimentos ligados a ansiedade e angústia é [justamente] essa falta de controle?
Eu imagino que sim. Acho que quando pegamos a literatura da análise do comportamento — que é uma das abordagens da psicologia — encontramos frequentemente essa correlação: quanto menos um ambiente provê condições de controlabilidade por parte do sujeito que está exposto a esse ambiente, maior é a frequência e a intensidade dessas respostas de ansiedade.
Se a gente analisar situações mais corriqueiras — e provavelmente a maior parte de nós já vivenciou — que têm algum nível de incontrolabilidade, talvez fique fácil a gente entender. Por exemplo, quando estou esperando o resultado de uma entrevista de emprego: já fiz a entrevista, já participei e estou naquele famoso [momento de] aguardo — que parece uma eternidade — de uma resposta positiva ou negativa — e às vezes não vem nem uma das duas. Mas, existe este tempo de aguardo. E neste período existe uma circunstância em que a gente não tem ação sobre — você já fez a entrevista, te resta [apenas] aguardar. Assim, é uma situação de incontrolabilidade, que muitas vezes gera um aumento de frequência, de intensidade de respostas ansiosas.
Ou, quando você pensa, por exemplo, [em] alguém que se sente bastante desconfortável, muito tímido para participar de alguma situação social. Neste contexto de ansiedade social existe uma incontrolabilidade: a gente não tem como prever exatamente de que maneira as pessoas vão reagir à nossa presença; se a gente vai ser aceito ou se vai ser excluído… Dessa forma, existe um rol de incontrolabilidade nesses contextos que gera, também, a ansiedade.
Não é difícil a gente pensar que, quão mais incontrolável é um contexto, mais a gente vai apresentar respostas ansiosas; e quanto menos controle a gente tem, ao longo do tempo, além da ansiedade, a gente pode ter um fenômeno chamado “desamparo aprendido” — que é um fenômeno mais parecido com a depressão.
Então, a ideia é a gente pensar que as situações de incontrolabilidade geram ansiedade, e se elas forem muito prolongadas e o controle for muito limitado, também podem gerar esse cenário que mais parece com a depressão.
Entendi. Na parte da ansiedade que você estava falando eu pensei que viajar de avião seria um exemplo… Entra nessas [explicações de situação que despertam ansiedade] também? Porque muita gente tem ansiedade por viajar de avião, e acho que realmente é uma [situação] que — com exceção dos pilotos, claro — ninguém sabe pilotar. Daí você fica ali, preso. Até sair daquela situação fica uma angústia, não é?
Perfeito. Você deu um ótimo exemplo.
Por exemplo, eu tenho uma ansiedade leve diagnosticada, mas não sou uma pessoa que parece ser ansiosa — pelo o que a gente imagina que é aquela coisa mais estereotípica de ansiedade, aquela pessoa mais agitada… Eu não [sou assim]. Apesar disso, dessa coisa de eu me manifestar de forma tranquila, tenho essa ansiedade diagnosticada. Então, dentro desse espectro do transtorno de ansiedade, eu queria que você dissesse, neste caso da quarentena, qual ansiedade é essa que pode aparecer?
Acho que você falou uma coisa importante: o que a gente sente privadamente, ou seja, aquilo que acontece embaixo da nossa pele, dentro da gente não é necessariamente aquilo que é manifestado publicamente.
O que quero dizer é que, lógico, não é que a gente tem uma cisão entre o que acontece dentro e o que acontece fora, mas, muitas vezes, a maneira como a gente manifesta, que a gente publiciza aquilo que sentimos não é exatamente uma correlação tão direta assim. Você pode estar se sentindo muito ansioso e transparecer pouca ansiedade — isso tem tudo a ver com a nossa história, sobre como a gente aprende a se manifestar, a nomear, a descrever o que sentimos.
Então, existe mesmo essa variação na manifestação pública da ansiedade, e eu acho que ela [a variação na manifestação da ansiedade] também se encontra no contexto de pandemia.
Para mim, há pessoas que vão ser mais facilmente identificadas como ansiosas, do que outras. Porém, eu tendo a dizer que as repostas mais frequentes de ansiedade que a gente encontra num contexto como esse — e digo também [tanto] pelo material de estudo sobre quarentenas anteriores, quanto pela minha observação clínica — têm a ver com um medo enorme de contágio, uma certa previsão pessimista sobre como a doença pode afetar a si e outras pessoas em volta — pessoas queridas, talvez mais velhas, devido a alguma condição de saúde… Penso que tem uma ansiedade importante em termos de questões materiais e financeiras, e que essas pessoas podem manifestá-la com insônia; com o aumento — ou redução — de consumo alimentar; o aumento de pensamentos intrusivos, pessimistas… Existem manifestações mais públicas e manifestações mais privadas.
Há [também] pessoas que vão transparecer essa ansiedade demonstrando respostas de irritação bem claras, [com] mais impaciência, mais dificuldade com o convívio social — se é que estão restritas em um espaço ou convivendo com familiares, com outros, etc. Enfim, creio que são essas as principais: um receio em relação à própria saúde e das pessoas do entorno [e] um receio em relação às questões materiais; e isso se manifesta de muitas formas.
Nesse meio-tempo que a gente vem trabalhando — após [começar] essa crise do coronavírus — temos feito muitos conteúdos, muitas lives… E com isso temos contato com manifestações das pessoas sobre este contexto. E tem um ponto que me chamou a atenção e queria que você comentasse: certa vez a gente estava fazendo uma live no Instagram — já neste período [de quarentena decretada, devido à pandemia] —, e um seguidor perguntou “como é que a gente sabe tanto sobre o vírus em tão pouco tempo?”… É uma pessoa que talvez esteja um pouco afastada do mundo científico e pensa “nossa, que impressionante, já se sabe o tempo de incubação; o tempo em que aparecem os sintomas; já estão fazendo vacina…”, etc. Ainda assim, [mesmo que] a gente tenha todo esse conhecimento avançando rápido — uma demonstração de progresso —, [o que] persiste mais [é] essa coisa da incerteza, de não ter controle, apesar dos vários sinais mais otimistas ou mais positivos… Existe uma explicação para isso? A gente privilegia as coisas que são ruins?
Falando de forma menos compromissa com alguma vertente teórica da psicologia, eu tendo a pensar que o sofrimento é um pouco mais palpável que as condições mais tranquilizadoras.
Sempre penso numa cena bem típica da minha infância em que estava fazendo alguma viagem de carro ou ônibus, e parecia que não ia chegar nunca — a sensação realmente era de que aquilo [o trajeto] nunca ia acabar —, sabe? Por mais que soubesse que [em] algum momento ia chegar ao destino, aquele sofrimento parecia [ser] tão realista, que dava a impressão de que eu jamais chegaria ao destino… Acho que tem um pouquinho disso, além de outra coisa que talvez seja bacana de a gente comentar, Luiz, que tem a ver com um conflito — em termos de atitudes que espera-se que a população geral tenha — e a imediaticidade (ou não) desses resultados provenientes — dessas atitudes que se esperam.
Vou tentar sintetizar um pouquinho o que é que eu estou querendo dizer, para ficar mais claro para todo mundo: como você disse, penso que as ciências, de forma geral, têm como objetivo prever e controlar fenômenos. É isso que acho que a ciência faz: ela é um conjunto de atitudes do cientista diante de um determinado fenômeno, para que a gente possa proporcionar descrições (sobre esse fenômeno) que favoreçam a nossa interação, no mundo real, no mundo concreto — a partir destas explicações. Se pensarmos sobre esse viés, de fato temos uma produção científica extensa acerca de contágio viral — tem o novo coronavírus, e tem a Covid-19; mas tem [ainda] outros coronavírus, [e] outros vírus. Existe toda uma linha de pesquisa bastante antiga em torno disso, [e] esses estudos proporcionam condições de previsibilidade de controle — isso é um fato.
Acredito que tem esse cenário de previsão e controle pela ciência, mas há [também] um descompasso entre aquilo que é enunciado pela ciência e aquilo [com o que] as pessoas entram em contato direto quando seguem as recomendações provenientes dessas inscrições científicas. São basicamente o que os cientistas estão dizendo para a gente há algumas semanas — que existe, que o vírus se comporta de uma forma, que faz com que exista uma [dada] curva esperada… Todo vírus vai atingir um ápice e depois entrará em certo declínio — necessariamente. Mas, há algumas recomendações que fazem com que exista um achatamento da curva de contágio, que faz com que as pessoas padeçam menos do vírus — reduz a mortalidade, a sobrecarga do sistema de saúde, etc.
Para que haja esse achatamento, dentro das medidas que são ditas para que a gente siga — e a gente deve segui-las — estamos falando das ações preventivas de restrição; de contato direto com as pessoas; de aumento e melhoria das condições de higiene — lavar as mãos e não leva-las ao rosto toda hora —; proteção das pessoas do grupo de risco — e tudo o mais que já estamos vendo e deveríamos estar seguindo. Essas instruções não produzem imediatamente achatamento algum da curva [de contágio]… a consciência imediata que a gente tem quando nos engajamos nisso não é a alteração direta dessa realidade. Para que essa realidade — que é importante que se altere — se alterar, de fato, o que é que a gente precisa? A gente precisa de bastante gente seguindo, durante algum tempo, essas prerrogativas, essas instruções…
Consistentemente…
…Consistentemente. Penso que há este descompasso: existe um efeito a médio e a longo prazo da tomada de medidas preventivas; e existe o efeito imediato dessas medidas preventivas quando tomadas — que costumam ser mais poderosas, e não é de agora. Consequências imediatas tendem a controlar o comportamento com muito mais potência do que consequências atrasadas. A gente é mais sensível.
Existe uma linha que explica, evolutivamente, por que é que a gente é tão ruim de agir e planejar a longo prazo. Acredito que [isso] entra nesta mesma linha…
Exatamente. Perfeito. É exatamente esta linha, e é por isso que é tão difícil de a gente falar e se engajar em comportamentos que gerem consequências muito atrasadas, mas creio que esse descompasso é parte importante do que faz a gente ter essa dificuldade de entender essa noção de controle — o qual até existe, mas não produz tão rapidamente essas consequências desejáveis…
Quer dizer, estou lavando as mãos todos os dias [e] quando saio para a rua, ao voltar, [as] desinfeto, mas ainda assim o prefeito diz que o número de infecções aumentou de ontem para hoje. Parece que não está adiantando nada…
…Perfeito. Ou o inverso: a pessoa que diz “ah, bom, não estou doente [e] não conheço ninguém que está doente. Na minha rua, no meu prédio ninguém está doente… Não estou fazendo nada e vou continuar não fazendo nada, porque está dando certo”… Esta sensibilidade [quanto à situação] e consequência imediata podem gerar conclusões esquisitas, irreais… Penso que é isso…
Essas ações preventivas que a gente deve tomar — e [de fato] devemos continuar tomando — não geram [resultado/um achatamento da curva de contágio, no caso] tão diretamente. [Por isso,] é importante a gente se reaver com o que elas geram tão diretamente — até para aumentarmos o nível de engajamento das pessoas em relação a essas táticas de prevenção.
Indo nessa linha de que parece haver um descompasso entre a realidade e o que as pessoas decidem fazer, tem um outro comportamento que eu queria comentar com você, que é essa espécie de negacionismo. A gente tem exemplos de outros países que passaram por essa pandemia há pouco tempo, com imagens muito evidentes… A Espanha, [por exemplo], neste momento em que estamos falando, está ultrapassando a Itália [no número de casos e de mortes] como bola da vez; mas a Itália, até então, era o nosso principal exemplo de coisas que estão dando errado. Lá, tinha caminhões levando vários corpos para fora da cidade; não tinha onde realizar os velórios, uma tristeza só… Ainda assim, há uma resistência [por parte da população] em seguir orientações de autoridades sanitárias. De onde vem esse negacionismo? Que eu penso que ele é parecido com o que a gente estava falando anteriormente, mas parece que ele segue uma linha um pouco diferente de comportamento.
Há muitas várias variáveis. Eu tendo a pensar que tem uma parte desse fenômeno que tem a ver com o que a gente estava falando, com esse descompasso do que se observa mais diretamente e mais a longo prazo, mas que também há uma outra faceta sobre a qual é importante pensar sobre: a gente costuma ser mais suscetível a agir diferencialmente diante de circunstâncias que podemos experimentar diretamente, do que experiências que são de outras pessoas.
É claro que isto [este segundo caso] existe, não estou dizendo que somos impermeáveis ao mundo, [pois] senão — creio — não teríamos sequer se comunicado em algum momento da evolução. Creio que a comunicação, o comportamento verbal é absolutamente funcional para nossa existência no mundo. Porém, fato é que a prescrição verbal tende a surtir menos efeito que o contato direto com determinado evento, com uma contingência específica.
Então, creio que há um pouco disso. A gente chega até a inventar umas descrições verbais que favoreçam isso. [Por exemplo], conheço algumas pessoas que quando ainda não tinha estourado casos aqui em São Paulo, nem no Brasil [de forma geral], diziam “ah, aqui é muito quente, não vai haver transmissão [do novo coronavírus]”, e quando pensamos nisso creio que, logicamente, existe um desejo nosso muito forte de não padecer deste mal que parece estar assolando o mundo. Mas, fato é que não existe nenhuma evidência que dissesse para a gente que o calor é algo que poderia barrar o vírus.
Penso que há um pouco disso… de a experiência direta ser diferente daquilo que a gente está vendo. Nós temos contato com outros países que estão em outro momento da curva, e tudo indica que se a gente tomar as mesmas decisões que estes outros países teremos curvas parecidas. No entanto, a gente não está experimentando [isso] ainda — estamos experimentando a subida [da curva], no caso. E é por isso que eu acho que é importante a gente fortalecer ao máximo — não só neste, mas em todos os momentos; neste, com certa urgência — alguma credibilidade do conhecimento científico. Pois, se essa incontrolabilidade aumenta os fatores ansiogênicos e a gente torna claro os fatores científicos, aumenta [também] a nossa condição de prever o que vai acontecer…
…Aumenta a confiança de que aquilo tem grandes chances de acontecer daquela forma, não é?
…Exatamente. E penso que é isso: a gente ponderar que a previsão nem sempre será deliciosa, que a gente vai gostar de lidar com essa realidade. Às vezes, as previsões providas pela ciência não são mesmo uma gostosura de se lidar mesmo, mas fazem com que tateamos um terreno com mais contornos; menos às cegas.
É diferente, por exemplo, de a gente pensar em um relato correlato histórico e viral, [tal como] quando estávamos pensando na expansão da aids como doença. Daquele momento [inicial] passou um tempão até que existisse produção científica acumulada para entendermos sobre coisas básicas da transmissão daquele vírus… Havia, durante um período, pessoas acreditando que se tivessem contato próximo [com alguém que portasse o vírus] isso já seria uma condição importante de infecção. Assim, acreditar na ciência faz com que a gente revise alguns desses tabus e tire até [mesmo] o pânico que possa ser gerado em relação a tudo isso.
Começou a circular uma imagem neste período [de pandemia]… Um homem tirou uma foto de uma prateleira de supermercado (era a gôndola de sabonetes) [na qual] tinha acabado aquele bactericida (que mata até 99,9%), e os demais — que funcionam otimamente contra vírus, porque não são bactérias; não é de bactérias que a gente está falando — estavam lá, a prateleira [estava] cheia [deles]… Então, é um entendimento muito precário da ciência — que vem vivendo atualmente seu pior momento da história, parece.
Exato.
Acho que a gente pode ir para o segundo bloco agora, Júlia, que é aquele em que a gente falou de maneiras como lidar com esses sentimentos. Como você falou até agora, há muitas chances de acontecer, porque a gente deve passar uns meses nessas condições [de quarentena, de restrição social]. [E] antes de a gente fazer o programa, na preparação, você enviou um estudo que é uma revisão de outros estudos — feita muito rapidamente, justamente pela urgência que temos atualmente por esse tipo de informação. É uma revisão que a gente vai pontuar, ao longo dos poréns que tem — o estudo não tem tantas pessoas assim, [por exemplo] —, mas de qualquer forma, [ele] tem algumas conclusões que são até intuitivas para a gente. E ele tem alguns pontos para os quais chama mais a atenção sobre fatores que levam ao estresse. Acho que a gente poderia dar umas dicas indo por esses tópicos citados. O que você acha?
Pode ser… Acho que é um caminho possível, sim. Como você disse, é um estudo de revisão. E o que é um estudo de revisão? É [um material no qual] um grupo de cientistas que vai examinar o que que já foi produzido bibliograficamente — o que já foi submetido e publicado — em relação ao assunto específico, e este [estudo mencionado] é uma revisão de impactos psicológicos de quarentenas, com outras quarentenas que a gente enfrentou no mundo. Então, eles falaram de SARS, ebola, H1N1, síndrome respiratória do Oriente Médio, gripe suína… Daí fizeram um estudo sobre esses impactos [psicológicos].
O que julgo interessante de a gente ressaltar em relação aos achados [é que] eles descrevem os impactos [que são gerados] durante a quarentena — ou seja, durante esse período de isolamento físico — e as medidas dos efeitos posteriores a ela [a quarentena]. A gente olha para esses dois momentos e penso que chegamos a conclusões importantes.
Tem um outro [ponto], porém, que acredito que é importante destacar: essas quarentenas que são analisadas nesta revisão são, ainda, quarentenas curtas, entre aspas, porque [se dão] naquele sistema de isolar quem está com sintomas, ou isolar quem está doente para manter a pessoa em tratamento… Mas, uma quarentena como a [que a] gente prevê que aconteça — de o governo baixar um decreto para toda a população, [e] todo o comércio não essencial fechar — não está presente nesses estudos… De qualquer forma, se em uma quarentena curta — como essas de 20 a 30 dias, no máximo — como as desses estudos, já predispõe-se a vários sintomas negativos, a gente pode imaginar que numa quarentena maior será pior. Então, acho que eles [os estudos que compõem a revisão citada] são válidos nesse sentido. Uma questão que eu queria frisar primeiro, Júlia, é a seguinte: esse estudo diz que uma coisa que afeta bastante [a saúde mental das pessoas] é justamente a duração da quarentena. No nosso caso, a gente prevê, em algum momento, mais do que 30 dias [de quarentena] ser uma coisa decretada; pode ser que não aconteça, mas parece ser o que se desenha. Quanto a isso, o que você diria que é importante as pessoas fazerem?
Em relação ao tempo da quarentena?
É, porque isso é uma coisa incontrolável… E como a gente já falou, quanto mais uma situação é incontrolável, mais ansiedade, mais angústia ela irá causar. Quanto a isso, o que a gente pode fazer? No caso, penso que não seria uma orientação de coisa prática, da vida prática, mas talvez algo sobre pensamento, o que você reflete sobre isso para te ajudar mentalmente…
Acho que tem duas coisas importantes para falar sobre isso: De fato, é difícil a gente falar num contexto de pandemia — que é muito dinâmico — qual que será o tempo [exato] de quarentena; [e] este estudo gere uma coisa em termos de políticas públicas e de posicionamento público de líderes — que quanto mais honesta, clara, transparente for a informação [passada], maior é a adesão das pessoas à quarentena. Portanto, é uma coisa com a qual a gente precisa ficar atento.
Quando a gente tem um posicionamento político muito relutante, muito oscilante ou [mesmo] que negue e subestime o potencial de prejuízo que um vírus pode gerar, criamos uma ambiguidade no que é transmitido para a população, e isso pode, inclusive, acirrar os sintomas psicológicos atrelados a isso…
A pessoa fica perdida.
Sim. É diferente de a gente se submeter a algo que sabe-se que tem começo, meio e fim, do que algo que [fica no impasse de] “ah, duas semanas… mais duas semanas… mais duas semanas”… Acredito que tem essa parte que diz respeito à forma como os líderes podem se posicionar.
E em relação a nós — que não somos grandes líderes, políticos —, penso que há algumas prescrições pragmáticas básicas que podem ajudar bastante. Eu diria que a principal, lógica e racional, é a gente tomar posturas que produzam ativamente consequências na nossa vida. Vou tentar dar exemplos para tornar isso claro, mas a ideia é justamente a gente romper com aquele paradigma da incontrolabilidade.
Quanto mais a gente se dedica àquilo que nos expõe ao panorama catastrófico, mais — creio — pessimista a gente vai ficar. É claro que em certa medida a gente não tem como se alienar e se blindar de tudo isso, mas podemos nos esforçar mais ativamente na produção de outras coisas, enquanto estamos neste período de isolamento.
Uma coisa que eu acho que mostra bastante efeito é tentar consolidar rotinas. Por quê? Porque parte da população que não trabalha em casa costumeiramente está com uma rotina completamente alterada. Creio que até [mesmo] quem trabalha em casa [há um bom tempo/desde muito antes dessa pandemia] também está com uma rotina alterada, porque [com uma] uma alteração global [como esta], se você divide a casa com outras pessoas, talvez essas outras pessoas — que não estariam em casa — passam a estar e tal… A criação de uma rotina parece bobagem, parece até uma coisa restritiva da liberdade, ao contrário de deixar as coisas rolarem…
Na vida normal a gente quer fugir da rotina…
Exato. Acho que algumas pessoas são ótimas seguidoras de rotina e outras menos — e eu me encaixo no segundo grupo, das pessoas que costumam falar “imagina, vou ficar de pijama o dia inteiro, sim” —, mas é importante a gente pensar que a tua casa é um ambiente onde você geralmente fazia algumas coisas — relaxava, cozinhava, brincava com seus filhos ou se descabelava com a bagunça, arrumava—a, etc… Essas atividades passam a ocupar diariamente outros momentos que não ocupavam antes.
Assim, criar uma rotina de horários, com marcadores claros da sequência desses eventos, pode ajudar a gente a continuar a seguir nesses comportamentos todos… Basicamente, quando falamos em uma consolidação de rotina, estamos falando em você tentar dormir em momentos semelhantes — não precisa ser uma rotina militar —, mas, pelo menos, tentar dormir no mesmo horário [todos os dias], acordar mais ou menos no mesmo horário.
Comer mais ou menos no mesmo horário…
Certo. Estipular as atividades que você tem que fazer em horários definidos — e é claro, gente, que esta é uma recomendação que não deve virar uma pecha, mas [sim] uma dica. Não existe uma receita de bolo para eximir qualquer possibilidade de se sentir ansioso. Se você tem uma condição que inviabiliza que você consiga planejar o seu dia, não precisa ter um planejamento de horário a horário, porém, você pode ter um panorama básico do que vai fazer, [e] arrumar condições para que você possa seguir sua rotina — mesmo que ela esteja bem diferente dos últimos meses, anteriores a esse período.
Tem um segundo ponto que é levantado na revisão como importante — e este é bem característico de uma situação de pandemia —, que é o medo de se infectar. Tem alguma recomendação legal para quem fica com uma certa neura ([do tipo] se pegou [o novo vírus]; se pode ter pego ou não; de passar para alguém)? Tem algo que você pense mais [focado] nessa linha?
Eu tenho visto [isso] acontecendo com mais frequência — não sei se é por causa do tempo, que é curto, [pois] a gente ainda está em quarentena —, tenho ouvido mais esse tipo de queixa de pessoas que trabalham com a área da saúde — que são pessoas que, de fato, acabam se expondo a condições de maior responsabilização pelo bem-estar de quem as cerca.
Mas, não seria difícil pensar que este é um tipo de manifestação que pode vir a acompanhar outras pessoas — ou [que] talvez já esteja [acompanhando] —, e passe a fazer cada vez mais parte do nosso rol de coisas que podemos sentir e pensar.
Quando a gente fala dessas taxas de prevenção, estamos falando do possível controle desse contágio. [E] o que é que eu estou chamando de controle possível? Aquilo que já sabemos que diminui as chances de se adoecer e de se transmitir uma doença. Não tem como a gente ter um marcador tão claro que sinalize na rua quem está doente, quem está assintomático, quem deveria estar em casa — aliás, que bom, [pois] fico imaginando quanta estigmatização iria ser produzida…
Nossa, ia ser pior que a própria [quarentena].
Exato. Seria o cenário de uma distopia… Mas, a gente pode tomar essas medidas [preventivas que vêm sendo divulgadas], medidas das quais a gente tem controle — [tal como] tomar os hábitos de higiene, lavar mais as mãos. Creio que isso é o que dá para fazer.
A gente não tem como se dedicar a rotinas que fariam com que a gente não tivesse chance alguma. Não existe chance zero. E sei que para algumas pessoas isso é bem desesperador, [que] a vontade é que exista uma receita que a gente fala “olha, não, não vai acontecer nada de errado”, mas o que podemos fazer em relação a isso é seguir essas medidas de precaução e consumir menos coisas que digam respeito a notícias muito pessimistas sobre o agravo da doença, sobre o agravo da curva.
Tem duas dicas que eu me arrisco a dar aqui, mas que vi e achei que poderiam ser interessantes para pessoas que têm medo de pegar [o novo coronavírus]. Uma delas é: uma característica [do novo vírus] que fez essa pandemia acontecer, é que o novo coronavírus é transmitido facilmente, de fato. Porém, se você tem a possibilidade de ficar em casa, [isso já] é suficiente para você diminuir bastante esse risco [de contaminação e disseminação]. Não é como um apocalipse zumbi, em que sua casa pode ser invadida pelo agente que vai te infectar. Então, se você tem essa possibilidade, diminui bastante [o risco de contágio]. E a outra que imaginei que poderia servir é a que a minha terapeuta fala bastante: atenha-se ao real. Então é [se perguntar] algo do tipo: você está fazendo as medidas tão conhecidas e que previnem? Estou. Então de onde está vindo esse medo? Ele está vindo de alguma coisa que é real, ou você só está com medo de pegar [o novo vírus] baseado em nada? Acho que essa consciência ajuda um pouco, ajuda [tanto] a gente a seguir essas medidas de higiene básica, quanto a aplacar esse medo que a pessoa pode vir a ter.
Você falou bem melhor que eu…
Imagina! Tem uma coisa que eu queria comentar e que você também falou: tem duas coisas que podem surgir bastante neste período, que são tédio e frustração. Queria que você falasse um pouco sobre aquela frustração do tipo “queria ir encontrar um amigo, queria ir ao parque onde eu ia [antes da quarentena ser decretada] e não dá”. O que é que a gente pode fazer para diminuir, para amenizar um pouco esse sentimento?
São sentimentos bem típicos… Talvez, se eu pudesse dar um palpite — que não sei se vai ser bem-sucedido ou não; daqui a algumas semanas a gente revisa isso —, [diria que] tendo a pensar que frustração e tédio são sintomas que vão aparecer cada vez com mais volume.
A gente vai aprendendo a lidar, mas à medida que o período de isolamento vai ficando mais longo, talvez a gente experimente isso com maior intensidade. Então, acho que já vale a pena a gente pensar em — uma vez que não dá para a gente manter os mesmos hábitos — trazer essa [antiga] rotina para perto da gente, trazer a rua para dentro de casa (não num sentido literal, pelo amor de Deus); mas tentar aproximar coisas com as quais você teria contato mais corriqueiro, e mais naturalisticamente falando, que você passa a não ter [devido ao isolamento social].
Que quando eu saio para trabalhar, mesmo que naquele [dado] dia eu não encontre alguém para tomar uma cerveja, vou ver pessoas, vou conversar com pessoas, dizer “bom dia”, “boa tarde”, fazer uma piada qualquer. Isso já é socialização. Quando a gente pensa num isolamento físico essas situações se restringem. Dessa forma, tentar trazer o contato social de maneira mais corriqueira, diária — por intermédio de plataforma digital, de chamado vídeo, etc —, pode atenuar um pouco essa sintomatologia da privação afetiva. Creio que esses hábitos podem, cada vez mais, começar a fazer parte da nossa rotina. Tenho visto isso acontecendo bastante. Se você entrar no Instagram, por exemplo, acho que nunca — naquele espaço [da rede social] onde aparece os stories das pessoas — apareceram tantas lives acontecendo ao mesmo tempo. Isso é efeito da nossa privação: “vamos lá, vou abrir as portas da minha casa para mostrar o que está rolando por aqui” — e isso é positivo. Penso que é positivo criarmos condições para que essa privação seja menos dura, menos sofrida.
Assim, [a dica] é abusar desses recursos, [e] sei que esses recursos não são absolutamente democráticos, mas acho que dá para a gente pensar nessas aproximações que não presumem o contato direto como uma maneira de contornar essa privação — [por exemplo, com] chamadas telefônicas.
E em relação ao tédio, tem uma coisa importante para pensarmos sobre: A nossa cultura privilegia pouco que criemos condições de fruição do mundo que não sejam ligadas à produtividade. Quando a gente vai se tornando adulto, quando vai ser lido como adulto, cada vez menos isso faz parte da expectativa de atividade que se exerça. [Por exemplo,] você é adulto: “ah, eu sou o Luiz, sou jornalista” e isso [essa descrição/definição] se basta.
Exatamente. É a segunda coisa que se fala. Depois do nome vem a profissão.
Exatamente. Imagina, todo o resto da sua história — [desde] antes de você ser um jornalista — já era; não existe mais. Penso que talvez isso seja um indicativo dessa cultura que privilegia o trabalho, em detrimento de qualquer outra coisa. É uma cultura que vai fomentando condições para que, diante de uma situação em que exista restrição, o tédio emerja, porque a gente não sabe o que fazer com o tempo que resta.
Assim, a primeira coisa [a se fazer] é tentar olhar para esse tempo que resta e ver o que existe ao seu alcance, revisitar hábitos antigos, experimentar coisas novas que possam estar ao seu alcance — sem entrar numa pilha de produtividade com isso também. Não é para a gente criminalizar o ócio, torna-lo uma coisa [do tipo] “tenho que ler 20 livros na quarentena”, mas acho que é [válido] tentar experimentar coisas que possam prazerosas, frutíferas, e que coloquem a gente em contato com esse aspecto mais vital, sabe? Com a vida, e menos apenas com discurso da letalidade, do problema, do absurdo, da catástrofe e do que mais está se dizendo — [e] que tem que ser dito em alguma medida, mas que também tem que ser consumido de uma maneira mais parcimoniosa.
Finalizando aqui, Júlia, [sobre] os dois últimos [fatores], queria um comentário seguindo outra linha, porque [eles] saem um pouco [dessa perspectiva] do que o indivíduo pode fazer… Os dois últimos fatores para os quais este estudo chama bastante atenção como fatores estressores são: perdas financeiras e falta de acesso a suprimentos. Já é tarde para a gente começar a falar disso, mas, sozinha, a própria pessoa que pode ser afetada por perda financeira e falta de suprimentos, pouco tem a fazer. E mesmo que outras pessoas queiram ajudar, individualmente, pouco poderão fazer também — pelo menos no volume que a gente imagina que seja necessário. Então, aqui, a gente não tem um programa que vá falar alternativas para uma empresa mitigar suas perdas financeiras com delivery, home office e seja lá o que for… Aqui a gente está falando de outra coisa. Por isso, gostaria que você falasse um pouco sobre o que a gente precisa fazer — como sociedade — para amenizar essas perdas que outras pessoas vão ter. Na verdade, boa parte do Brasil vai ter [essas perdas]. O que é que a gente pode fazer como grupo?
Esta parte da discussão é fundamental. Quando pensamos nas nossas dicas de condutas individuais, [elas são] absolutamente importante para a nossa saúde, mas [também] é importante pensar que esse contexto de pandemia convoca a gente para uma circunstância que só a atitude coletiva gera resultado positivo.
Desde a prevenção — do comportamento individual de você se resguardar em casa e ter hábitos de higiene —, que só fará efeito se for uma medida tomada por um grande contingente de pessoas, até pensarmos nos efeitos de se saturar o sistema de saúde, [ou de] fazer [com que] pessoas que talvez estejam em vulnerabilidade social tenham melhores condições de ter um tratamento adequado.
Creio que pensar no fortalecimento da coletividade é importante. É fundamental a gente fortalecer, o quanto pudermos, as alternativas que existem de suporte básico a essas pessoas.
Eu sei que hoje [quarta-feira, dia 01 de abril] um Projeto de Lei de renda básica vai ser votado, por exemplo. E é um projeto que prevê o pagamento, acredito, de um salário mínimo para as pessoas em vulnerabilidade social durante esse momento. Esta é uma medida [de prestação de suporte a quem precisa]. [É] óbvio que o Estado é quem deveria se preocupar em prover essas condições básicas — ao menos na maneira como acredito que deveria funcionar —, mas fato é que a gente está num momento limite.
Penso que perpassa essa condição de solidariedade a gente tentar se engajar em condutas que favoreçam que essas pessoas não sejam afetadas — [que] como você disse, [são/representam] a maior parte do Brasil. Portanto, fortalecer as iniciativas que já existem… Por exemplo, a gente já começa a ver alguns movimentos sociais angariando fundos, para prover condições mínimas para pessoas que estão participando desses movimentos, ou que são atendidas dentro da população a que esse movimento se refere. Fortalecer essas iniciativas é importante, fortalecer essas alternativas da política mais institucional [e] esses projetos de lei — seja deixando isso claro, [ou] compartilhando essa mensagem e sua importância.
E se tivermos a possibilidade de continuar pagando pessoas — profissionais que façam parte da nossa vida — neste momento, também é uma coisa mínima da solidariedade, desse exercício… A gente está diante de uma situação que nos coloca bem claramente em uma circunstância na qual temos que optar pela manutenção de riquezas e pela menor perda possível — em termos de humanidade —, e é uma decisão complexa de se ter, porque haverá danos de todos os lados.
Mas, eu tendo a acreditar que privilegiar a humanidade [sobretudo num momento como este] faz bem coletivamente e, inclusive, para a nossa saúde mental. Pode ser um bom jeito de pensarmos em hábitos positivos para a manutenção da nossa estabilidade… Individualmente, pensarmos nos hábitos solidários, no fortalecimento dessa solidariedade como uma maneira de enfrentar essa pandemia.
Sim. A gente tem visto com frequência as orientações sanitárias que estão sendo passadas serem contra-argumentadas com a parte da economia: “ah, a economia vai quebrar”, “ah, o Brasil não pode parar” — que acho que é o slogan do nosso Governo Federal no momento. E o que eu tenho observado, na verdade, é que as duas coisas não excluem uma à outra. Você tem o combate à pandemia — uma frente de saúde pública —, e a manutenção da economia tem diversas ferramentas para se manter, que não são manter a vida normal — que é justamente o que vai contra a orientação sanitária. Numa das melhores entrevistas que eu vi esses dias, o especialista em economia falava: “você tem que considerar que a situação é como se a pandemia fosse um cenário em que seu país está em guerra”. Em [uma] guerra, as pessoas não ficam falando “vamos manter a vida normal para continuar produzindo, porque a gente precisa de dinheiro”. Não. Você transforma tudo que tem, [por exemplo], se fazia sapato, vamos fabricar bala (que é o que a gente precisa)… Você muda, e os países se endividam, porque eles precisam dar dinheiro para as pessoas continuarem sobrevivendo — sem manter suas vidas normais. E penso que está faltando um pouco disso [dessa consciência, dessa perspectiva acerca da situação] no discurso [que vemos com frequência]. E, às vezes, as pessoas que você percebe que têm a tendência de ser solidárias ficam um pouco nessa [nesse impasse]: “poxa, mas realmente a economia não pode parar”. Realmente não pode, mas há outras formas de mantê-la funcionando. E daí [deste ponto sobre o cenário todo] eu queria que você finalizasse o nosso programa falando um pouco sobre isso, porque também é parte da conclusão da revisão que a gente tomou meio que como fio condutor, que é a importância do altruísmo para atravessar esse momento… Ele pode ser benéfico, não é? Como o altruísmo é visto na psicologia? O que é que ele pode fazer por nós?
Acredito que o altruísmo, essa capacidade que a gente tem de ficar sensível às contingências do nosso entorno — mesmo quando elas não nos afetam tão diretamente — é algo bastante importante, e importante de ser fortalecido como prática; ela não é uma prática óbvia — ninguém nasce altruísta, ninguém nasce com uma sensibilidade ao outro assim inatamente.
Temos uma cultura que pode privilegiar mais esses ganhos individuais em detrimento de ganhos coletivos, [mas] eu penso que a gente tem de pensar na cultura como algo transformável; a cultura é um movimento — ela não está ali, morta, e sendo perpetuada ad eternum; que bom que não, [pois] a gente pode transformar isso.
Talvez esse seja um momento para revisarmos essas práticas altruístas, e creio que, sem dúvida, quando conseguimos olhar para além do nosso sofrimento — e nem sempre isso é possível, mas, quando o é —, olhar para o nosso entorno, a gente consegue: primeiro, desfocalizar do nosso problema como sendo o cerne de tudo que acontece — e às vezes, olhar para o lado ajuda, inclusive, a gente a manter um olhar sobre que depois [de a situação passar/acabar, acaba tornando] aquilo que a gente está sentindo novo e mais rico [que antes de situação se dar/acontecer]. Se a gente fortalece esse padrão social como um padrão relevante, a gente começa a valorizar esse tipo de conduta: o comportamento da pessoa que de fato vai armar condições para que o outro não padeça de um mal que ela já sabe que está sarada.
Então, o altruísmo faz parte da consolidação de um estado de saúde mental e coletiva. Julgo importante pensar assim que, quando falamos de saúde mental, ou quando falamos de psicologia, de forma geral, dá a impressão de que estamos falando do indivíduo… estamos sempre falando do que acontece na mente, seja lá onde [for que] fique a mente, mas do que acontece em termos subjetivos de uma pessoa. A despeito da abordagem que um psicólogo ou uma psicóloga siga, existe a noção de que esse sujeito está em relação. [E] a nossa subjetividade se constrói por meio da relação. Assim, quão mais a gente focalizar em relações que coletivamente produzam algum senso de justiça social — e óbvio que é difícil produzir consenso sobre isso —, quando a gente se aproxima disso, talvez consigamos produzir subjetividades mais saudáveis — para si e para o mundo —, sabe?
Sei que parece um jeito utópico de lidar com essa realidade, mas de fato acredito que talvez seja uma convocação — logicamente não intencional, o vírus não está pensando em fazer a gente ser uma humanidade melhor, nem pior, mas uma convocação [para] a gente repensar nossas práticas culturais, e que talvez a gente privilegie mesmo essa maneira de interagir que seja mais altruísta.
É uma oportunidade, não é?
É, uma oportunidade.
Legal, Júlia. Acho que foi uma boa forma de a gente terminar, trazendo um pouco [a discussão] para essa nossa vida comunitária. E é verdade, quando a gente fala em saúde mental, os tratamentos são individualizados, as terapias são, no máximo, de casal, mas a gente esquece um pouco dessa parte de saúde mental coletiva, de fato… Tem algo que a gente não trabalhou aqui e que você gostaria de deixar como uma última mensagem?
Acho que tem uma coisa, que é algo que eu tenho percebido bastante nos atendimentos clínicos: estamos num momento de pandemia que faz [com] que a tônica central do que é dito, do que é falado em todas as plataformas que a gente acessa tenha a ver com isso — e é óbvio que isso iria acontecer. [Em] um contexto absolutamente novo, existe uma curiosidade, uma expectativa de se entender o que está acontecendo, e existe uma profusão gigantesca de informações.
Uma coisa que tenho visto e que tenho tentando conversar sobre] com as pessoas que eu atendo, é pensar no consumo dessa [grande quantidade de] informação. E o que é que eu penso? Vou retomar aquela coisa que você disse, creio, [sobre o] que a tua psicóloga te falou, que foi bastante interessante: você está tomando a precaução de não sair de casa? Está seguindo os hábitos sanitários que foram instruídos? “Sim”… Então, meio que é isso que te faz reduzir as condições de contágio. É pensar que o consumo exacerbado e ilimitado de informações sobre isso não te faz imune, e não te faz [ser] menos vetor.
Existe um limite de quanto a informação pode ser algo que colabora ou não para a ansiedade. Então, não é regra, mas acho que é importante a gente começar a ficar sensível sobre que [que nível] acesso é esse, que [tipo de] informação a gente consome… Olhar criticamente [e] ativamente para essas informações também é uma maneira de consumi-las mais adequadamente. Privilegiar, obviamente, informação de qualidade — que não seja mentirosa sobre o que está acontecendo —, e às vezes consumir moderadamente.
Algumas pessoas que acabam se sentindo muito mal quando começam a ver os dados — às vezes, dados legítimos, coisas que foram consumidas com bastante cuidado, [com base] científica e tal — se sentem muito ansiosas. Então, para essas pessoas, talvez não seja muito adequado assistir todas as lives possíveis o tempo inteiro. A gente precisa ter essa sensibilidade de procurar ativamente se engajar naquilo que faz com que consigamos manter uma vida minimamente tranquila nesse estado todo [de pandemia]. Então, é [preciso] consumir parcimoniosamente. E consumir ativamente, em vez de passivamente… Quando a gente abre Instagram, Facebook, Twitter, qualquer site de notícia, estamos cedendo a um dado, o tempo inteiro. Dessa forma, procurar e restringir ativamente [o que é consumido] também é uma relação de controlabilidade estabelece… Não vou consumir a todo tempo.
Entra naquele exercício de que você falou anteriormente, não é?
Sim. Creio que essa é uma maneira importante de a gente se entender com essa informação que podemos receber o tempo inteiro. Se for possível — e se for interessante —, para você, para quem está ouvindo, fazer um uso restrito, um consumo restrito também pode ajudar bastante.
Para mim não é muito possível, porque fico em cima disso todos os dias… Mas isso acontece um pouco. A gente teve um grande trabalho de pegar as informações [inicialmente, nos primeiros dias] e agora os dados que chegam — de conhecimento sobre o vírus — não mudam tanto, na verdade. São mais notícias de números, casos… São mais aquelas coisas que podem causar ansiedade mesmo, porque é o número de novos casos infectados; o número de mortos não sei onde; não sei onde chegou a pandemia e até então não tinha [nenhum caso no local]… Mas, o conhecimento que ajuda a gente a lidar [os dados básicos acerca do vírus], meio que está estabelecido — claro que vamos conhecendo cada vez mais, porém num ritmo menor. Então, acho que a gente [que é jornalista] também pode mudar mesmo esse ritmo de consumo de informação.
Muito obrigado, Júlia, por ter participado. Acho que a gente começou a ajudar bastante o nosso público em relação à saúde mental, [e] espero que a gente possa fazer outros programas — sobre outros assuntos —, esmiuçando mais, conforme entramos nesse período. Muito obrigado.
Eu que agradeço. Tchau, tchau. Obrigada.
Tchau, tchau. Muito obrigado por terem ouvido mais este [episódio do] Entrementes, a gente fica muito feliz de poder ajudar e percebe que as pessoas estão precisando… A gente recebe cada vez mais dúvidas sobre saúde mental — e é importantíssimo saber que as pessoas estão preocupadas com isso também. Às vezes, a gente fica com a parte de prevenção, medidas de higiene, os cuidados mais práticos, e esquece que esta parte de saúde mental também é importantíssima, e pode inclusive afetar o nosso cuidado — que é necessário, como todo o resto da parte física. Se vocês tiverem dúvidas, a gente vai tentar fazer esse podcast com mais frequência — talvez semanal, talvez quinzenal. Não prometo, porque a nossa equipe é pequena e eu preciso me dividir ajudando a escrever textos e tudo mais, mas para quem tiver dúvidas, começamos a abordar apenas essa coisa da ansiedade num período de confinamento; se tiverem dúvidas ou sugestão de pautas para esse período podem mandar. A gente está concentrando [o recebimento dessas mensagens] no Twitter do Portal Drauzio Varella, com a #CoberturaDV, então é só mandar por lá, — quem tiver uma sugestão do que a gente pode tratar aqui, outras frentes da saúde mental nesse período. Vai ser muito bem-vindo… Obrigado e até a próxima.