A crise causada pela pandemia da covid-19, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e a alta demanda por medicamentos nesta época do ano são alguns dos motivos para o vazio nas prateleiras. Entenda.
Talvez você tenha ido à farmácia nos últimos meses em busca de um medicamento e não o tenha encontrado. Essa falta não é mero acaso. Ela tem a ver com um problema de desabastecimento que vem afetando todo o país desde o início de 2022.
Segundo um levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, o Conasems, diversos estados brasileiros relataram falta de mais de 40 medicamentos, que vão desde soro fisiológico e antibióticos até remédios utilizados no tratamento de doenças raras, como lúpus, Guillain-Barré e Crohn.
Tamanha carência não deixa apenas as prateleiras das farmácias vazias, mas também os estoques de hospitais e os serviços de emergência. A dipirona injetável, por exemplo, está em falta em todo o território nacional. Quem precisa de antibióticos como amoxicilina, azitromicina, clavulanato e cefalexina também sofre com a escassez. Esses quatro itens são essenciais para o tratamento de doenças de grande prevalência, como problemas respiratórios e infecções urinárias.
Em um período em que os casos de síndromes respiratórias aumentaram exponencialmente junto a um novo surto de covid-19, a falta desses medicamentos, bem como de corticoides e broncodilatadores, preocupa médicos e pacientes.
Onde estão os medicamentos?
O que explica o desabastecimento no país é a falta de insumo farmacêutico ativo (IFA), o principal ingrediente de um remédio. Sem ele, é como se o medicamento fosse apenas uma junção de várias substâncias sem efeito nenhum.
O Brasil produz apenas 5% do IFA utilizado no território nacional. O restante é importado, sendo 68% proveniente da China. Além disso, também dependemos da importação para conseguir outros incipientes medicamentosos (“ingredientes”) e materiais para a embalagem, como blister, tinta, frascos e conta-gotas.
“Considerando que a nossa maior dependência é chinesa, os novos lockdowns em Xangai no início deste ano fizeram o preço da matéria-prima subir em média 200%. A guerra entre Rússia e Ucrânia prejudicou a logística, que sofreu um aumento de 300%. Isso interrompe um fluxo contínuo e, até ele entrar no eixo de novo, leva um tempo”, explica Norberto Prestes, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).
Para piorar o cenário, há ainda o aumento da demanda por diversos medicamentos. A própria covid-19 e suas sequelas aumentaram o consumo de determinados itens, além de fazerem com que pacientes de doenças crônicas voltassem a seguir à risca seus tratamentos com medo da contaminação pelo Sars-CoV-2. O retorno presencial às atividades somado à mudança de estação também impulsionou os quadros de determinadas doenças, principalmente as respiratórias.
“Durante a pandemia, a indústria se virou nesse sentido. Mas agora foi tudo fora da normalidade. Ela não estava acostumada a esses picos todos de uma vez”, pontua Norberto.
Veja também: Efeitos da covid-19 no organismo: o que se sabe até agora?
A questão dos preços
Na tentativa de contornar a situação, o Ministério da Saúde aprovou a suspensão do teto de preços até o final de 2022 para alguns medicamentos em falta. A decisão foi aprovada em reunião do conselho de ministros da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) no início de maio.
A CMED possui uma lista que regula o preço máximo pelo qual os medicamentos podem ser vendidos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para o setor privado. Com a alta de preços dos insumos por causa da pandemia e da guerra na Ucrânia, o valor necessário para produzi-los se tornou maior do que aquele pelo qual eles poderiam ser comercializados, inviabilizando a produção.
Por isso, na prática, a suspensão é uma tentativa de reaquecer a indústria de medicamentos em condições mais críticas, como no caso da dipirona injetável e da imunoglobulina humana. Mensalmente, o Ministério irá avaliar os remédios que devem entrar ou sair desse rol e ainda fiscalizar a atuação das empresas farmacêuticas.
Por outro lado, a vice-presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems/SP), Adriana Martins, aponta para a insuficiência dessa medida. A decisão é vista como paliativa e pode, futuramente, legitimar a prática de preços abusivos no mercado e insustentáveis para o SUS.
“A indústria vai conseguir comercializar, mas o aumento não foi discutido entre os municípios. Como será esse financiamento? Quem paga? O município sozinho?”, questiona Adriana.
Veja também: Como funciona o SUS?
Impactos no dia a dia do paciente
De acordo com a vice-presidente, a rede de saúde municipal tem enfrentado muitos problemas com o desabastecimento. Faltam medicamentos essenciais tanto para o atendimento básico quanto para a urgência e emergência hospitalar.
“A dipirona injetável, por exemplo, nós prescrevemos para pacientes no pronto-socorro que estejam febris, vomitando. Como eu vou pedir para ele tomar um comprimido? Parece simples, mas a ausência dela é bem complicada”, exemplifica Adriana.
Enquanto a situação segue sem uma solução definitiva, a representante do Cosems/SP conta que buscar alternativas se tornou uma tarefa diária.
“Se eu não tenho o medicamento de primeira escolha, vou buscar na rede o que há disponível. Os protocolos estão sendo alterados constantemente. É um esforço para que o paciente tenha o melhor tratamento, mas fica difícil porque, a cada dia, temos mais novidades”, desabafa.
Vacinas também estão em falta
Outro desabastecimento que tem afetado a população brasileira é o da vacina BCG. A BCG protege contra a tuberculose e previne as crianças contra a doença, especialmente nas formas graves.
No fim de abril, o Ministério da Saúde orientou os estados a racionar o imunizante, porque a fábrica nacional da Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), responsável pela produção da vacina, foi interditada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A previsão é que o número de doses repassadas diminua de 1 milhão para 500 mil por mês.
A FAP possui uma instalação no bairro São Cristóvão, no Rio de Janeiro, a qual já foi interditada duas vezes pela Anvisa desde 2016 pelo não cumprimento de requisitos feitos pela agência. Existe uma nova fábrica da fundação a ser inaugurada em Duque de Caxias, também no Rio de Janeiro, mas a construção já se arrasta por mais de 30 anos.
Enquanto não pode contar com a FAP, o Ministério da Saúde recorre ao mercado internacional, junto ao Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Mas as novas doses só devem ser entregues em setembro deste ano e podem não ser suficientes para cobrir a demanda.
“A gente já está com uma cobertura vacinal baixíssima. A média é de 50% a 60% de cobertura para os imunizantes do primeiro ano de vida, incluindo a BCG. Daqui até setembro, o Ministério recomenda que os municípios otimizem a vacinação. E é aí que a gente vai perder a oportunidade de vacinar as crianças”, alerta dra. Isabella Balalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O que os municípios maiores têm feito é deixar de vacinar na maternidade, exigindo o agendamento para a aplicação. Segundo a pediatra, isso dificulta ainda mais a adesão.
“A hesitação vacinal não é só ficar na dúvida ou ter medo da vacina. É uma questão estrutural de acesso e confiança na saúde pública. Quando uma família vai no posto e não consegue a vacina, ela desanima. E, muitas vezes, não volta”, ressalta.
Veja também: Por que muitos pais não querem vacinar os filhos?