A geração Z e o uso recreativo de medicamentos

jovem toma remédio com copo d'água na mão. veja o que é o uso recreativo de medicamentos

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Publicado em: 13 de junho de 2023

Revisado em: 20 de junho de 2023

Os jovens da geração atual têm deixado as bebidas alcoólicas de lado e recorrido a medicamentos sem indicação para lidarem com as tensões da vida. Entenda o fenômeno do uso recreativo de medicamentos.

 

Um remédio que lhe faz dormir, outro que lhe ajuda a acordar, um que o deixa feliz, outro se quiser deixar de ficar feliz… Imagina como seria se existissem medicamentos capazes de proporcionar cada sensação da existência humana? Para a geração Z, isso é quase uma realidade.

A chamada fármaco-recreação, ou seja, o uso recreativo de medicamentos tem se tornado uma tendência entre os jovens nascidos depois da década de 1990. A lisdexanfetamina, o zolpidem e a classe dos anti-alérgicos são os mais encontrados nas “farmácias caseiras” desse grupo, principalmente com o objetivo de aumentar a concentração, controlar a ansiedade e moderar o humor.

A prática tem muito a ver com a personalidade da geração. Em vez de “ficar louco e curtir”, os jovens querem saber até onde o próprio corpo pode levá-los. Porém, existem alguns motivos pelos quais os medicamentos não devem ser usados para aliviar as dificuldades da vida.

 

Qual a relação entre a geração Z e o uso recreativo de medicamentos?

O uso de substâncias, lícitas ou não, é uma prática comum entre os jovens de todas as gerações. Eles as utilizam para diminuir as tensões, fugir da realidade ou facilitar a socialização com outras pessoas. Nesse sentido, o álcool sempre foi o grande protagonista.

No entanto, a geração Z (pessoas nascidas entre 1995 e 2010) já não vê no “litrão” uma opção para relaxar dos estresses do cotidiano. Em 2021, o consumo abusivo de álcool entre brasileiros de 18 a 24 anos caiu para 19%, o menor patamar desde 2015, segundo o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).

Além disso, a pesquisa Geração Z pelas lentes latinas, realizada pelo Grupo Consumoteca, descobriu que, enquanto 37% dos jovens declararam ter comprado bebida alcoólica nos últimos 3 meses, mais de 50% deles afirmam ter adquirido medicamentos com ou sem receita no mesmo período. Os entrevistados foram 2 mil jovens entre 17 e 24 anos da Argentina, Colômbia, Brasil e México.

Essa mudança de comportamento é o reflexo direto da personalidade da nova geração.

 

Individualismo

Michel Alcoforado, antropólogo e sócio-fundador do Grupo Consumoteca, explica que aqueles que nasceram a partir da década de 1990 são muito mais individualistas. Isso não significa que sejam egocêntricos, mas que vieram ao mundo em uma sociedade que coloca um peso enorme sobre os indivíduos, dando um valor exagerado a eles.

E o consumo de bebida alcoólica é, na maioria das vezes, uma prática coletiva. “Você senta com os outros para beber, divide uma garrafa de cerveja. É um consumismo que não combina muito com eles. Ao contrário da fármaco-recreação, em que você vai fazendo as suas escolhas, tomando sozinho e vivenciando os efeitos dessa ingestão ao seu modo”, pontua.

 

Pragmatismo

Outra característica da geração Z é ser muito pragmática. Isso quer dizer que a maioria das suas decisões são baseadas nos efeitos úteis que vão atingir a partir delas. Com a bebida alcoólica, isso é muito difícil de calcular, diferente dos medicamentos, em que é possível fazer um cálculo de custo-benefício para saber quais efeitos serão causados por aquela quantidade específica da substância e em qual intensidade. 

“Fica muito mais fácil você medir o que meio Zolpidem faz por você do que o vinho. Quando você toma duas taças de vinho, às vezes você fica alto, às vezes não fica”, exemplifica Michel.

Os efeitos colaterais não são mais vistos por eles como algo negativo e, sim, como o objetivo a ser alcançado. Os medicamentos psicoestimulantes são procurados para dar mais foco, os antialérgicos para ajudar a dormir e aqueles contra a insônia para “dar onda” e facilitar o estado de relaxamento.

Além disso, os medicamentos surgem como uma forma de evitar a ressaca ou a rebordose (sensação de mal-estar causado por alguma droga) do dia seguinte, o que poderia atrapalhar o rendimento no trabalho ou impedir de sair novamente com os amigos.

 

Imediatismo

Essa visão pragmática se estende à saúde mental, um tema muito valorizado pelos mais jovens. É por isso que, entre os motivos da busca por diversos medicamentos, está o desejo de alterar o humor. A questão é que, na visão deles, essa melhora emocional precisa ser ágil.

“Essa é uma geração imprensada entre um futuro amedrontador e um passado do qual eles não conseguem aprender nada. O mundo mudou com uma velocidade tão grande que há pouco o que aprender olhando para trás e as perspectivas parecem sempre piores. Eles ficam presos no presente, onde precisam estar sempre prontos para pegar as próximas oportunidades”, avalia o antropólogo.

Os medicamentos são uma forma de terceirizar o esforço de autoconhecimento, trazendo um resultado imediato e resolvendo — ainda que superficialmente — o problema. 

Veja também: Geração sem perspectiva: os efeitos do isolamento social na adolescência

 

A facilidade de acesso dos jovens aos medicamentos 

Por outro lado, não é apenas a personalidade da geração Z a responsável pelo uso indiscriminado desses medicamentos. O acesso à informação, o autodiagnóstico e o estímulo exagerado à medicalização também ajudam a fármaco-recreação a se estabelecer.

A lisdexanfetamina, por exemplo, é um medicamento que estimula o sistema nervoso central e é indicado para o tratamento de TDAH, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Porém, não é incomum ver pais que levam seus filhos ao pediatra a qualquer sinal de problema de aprendizagem, pedindo para o médico receitar o medicamento.

Nelson Antônio, psiquiatra, mestre pela Santa Casa de São Paulo e especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que o diagnóstico de TDAH é muito difícil e, como não tem um teste específico, depende de uma avaliação rigorosa do médico. “A gente não pode queimar etapas em busca do resultado imediato. De repente, a dificuldade de aprendizagem tem outra origem”, diz.

Essa normalização do uso de medicamentos facilita a busca por quem não tem a indicação da lisdexanfetamina, como universitários que desejam maior foco e produtividade nos estudos. Para adquirir, eles recorrem aos colegas que possuem o remédio em casa, ao falseamento de receitas, ao mercado clandestino ou até ao fingimento de sintomas do TDAH a fim de receber a receita.

Já no caso do zolpidem, o dr. Nelson afirma que ele acaba sendo prescrito por médicos de outras especialidades que não a psiquiatria, até pela propaganda de que seria um medicamento inofensivo. “Ele realmente traz o sono rapidamente, mas deve ser usado por um curto período, porque tem seus riscos”, alerta.

 

Quais são os riscos do uso recreativo de medicamentos?

Portanto, por mais interessante que um medicamento possa parecer, ele deixa um “rastro” no organismo. Não existe nenhum remédio que não tenha consequências para o organismo, o que acontece é que, ao receitá-lo, o médico coloca na balança o que o paciente está ganhando e o custo que terá que pagar. 

E, no que diz respeito aos medicamentos mais procurados pela geração Z, esse custo pode ser bem alto.

 

Lisdexanfetamina

A lisdexanfetamina é um medicamento derivado da anfetamina. De acordo com Danyelle Marini, farmacêutica do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), ela funciona assim:

“Há uma sobrecarga de liberação de três grandes neurotransmissores: a dopamina, a noradrenalina e a serotonina. A dopamina dá o efeito buscado de memorização e aprendizado, mas a noradrenalina desencadeia uma resposta de fuga no organismo. É como se a pessoa estivesse sempre pronta para fugir, o que aumenta a agressividade, a irritabilidade, a pressão arterial, o cortisol e o risco de infarto”, explica.

Para quem tem TDAH, ou seja, não produz esses neurotransmissores, o medicamento é extremamente eficaz. Já para quem não tem o transtorno, as consequências podem ser:

  • Dor de cabeça;
  • Taquicardia e hipertensão;
  • Boca e olhos muito secos;
  • Agressividade;
  • Pensamentos obsessivos;
  • Nervosismo e inquietação;
  • Insônia;
  • Variações de humor;
  • Tontura e náuseas;
  • Perda do apetite;
  • Transpiração excessiva;
  • Falta de ar;
  • Problemas de pele;
  • Tremores;
  • Episódios psicóticos;
  • Tiques e síndrome de Tourette.

Além disso, enquanto o remédio está fazendo efeito, a pessoa pode sofrer episódios de euforia e mania, seguidos de grave fadiga e depressão quando o efeito passa.

 

Zolpidem

O zolpidem, por sua vez, é um não benzodiazepínico indicado para o tratamento de insônia. Os médicos geralmente orientam o seu uso por um curto período de tempo, já que ele induz ao sono rapidamente e pula todas as fases que o corpo precisa para descansar. Além disso, pode causar dependência.

“Com o zolpidem, o jovem de 18 ou 20 anos nunca mais vai conseguir dormir sem o uso do medicamento. Se você não passa pelas fases do sono corretamente, você não tem recuperação fisiológica e isso afeta todo o organismo”, alerta a farmacêutica.

Entre os efeitos, estão:

  • Pesadelos;
  • Tontura;
  • Dor de cabeça;
  • Sonolência durante o dia;
  • Diarreia;
  • Pensamento anormal;
  • Variações de humor;
  • Concentração lenta;
  • Alucinações;
  • Amnésia anterógrada;
  • Náuseas;
  • Dor abdominal;
  • Dor nas costas;
  • Infecção do trato respiratório inferior e superior;
  • Cansaço.

Tanto o zolpidem quanto a lisdexanfetamina se tornam ainda mais perigosos quando misturados com álcool e outras substâncias, já que podem sobrecarregar o organismo, fazendo com que ele reaja ainda mais intensamente.

Veja também: Zolpidem pode causar apagão? O que você precisa saber antes de tomar o medicamento

 

Como melhorar a saúde mental sem recorrer a medicamentos?

“O antidepressivo não cura a depressão, o ansiolítico não cura a ansiedade, o estimulante não cura o TDAH e o medicamento hipnótico não conserta o seu sono. Eles são, momentaneamente, uma forma de resolver o problema e buscar ajuda alternativa para que você não tenha a dependência eterna desses medicamentos”, destaca Danyelle.

Segundo a farmacêutica, muitas vezes, o jovem vê um diagnóstico em uma rede social, ouve dizer que o medicamento é bom para aquilo e se identifica. É compreensível que a geração Z desenvolva transtornos emocionais por conta de toda a pressão que sofrem diariamente, bem como o enfrentamento de uma pandemia no auge de sua juventude, mas o diagnóstico precisa ser feito por um profissional da área da saúde. 

“Se o medicamento é de uso controlado, é porque o risco de se utilizar de forma indiscriminada é grave. Se, com 20 anos, você já está usando isso, como vai ser quando estiver idoso? Que qualidade de vida você vai ter?”, questiona Danyelle.

Acompanhamento psicológico e psiquiátrico, a prática de exercícios físicos e a busca por convívio social são algumas das alternativas para melhorar a saúde mental. Isso estimula a integração social, a autoafirmação, a independência e até a identidade sexual, o que facilita na hora de lidar com as emoções e sensações da vida sem a procura por medicamentos de forma recreativa.

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