Cerca de 60% dos pacientes que testaram positivo para covid no Brasil continuam com sintomas depois de três meses.
A copeira Ivone Teixeira Rodrigues Gil, 54 anos, e o corretor de imóveis Arcênio Fernandes de Souza, 39 anos, moram a cerca de 800 km um do outro e nunca se viram. Os dois, no entanto, são ligados por algo em comum: ambos ficaram com sequelas da covid-19, infecção respiratória aguda que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), infectou quase 755 milhões de pessoas até janeiro de 2023, tirando a vida de 6,8 milhões.
Um levantamento divulgado no início deste ano pela Rede de Pesquisa Solidária – formada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Fiocruz, Universidade de Brasília (UnB), entre outras –, mostrou que quase 60% dos pacientes que testaram positivo para covid no Brasil continuam com alguns sintomas depois de três meses. A porcentagem sobe para 72% entre os não vacinados.
É o caso da Ivone, de Santo Expedito, uma cidade com cerca de 4 mil habitantes no interior de São Paulo. Com a voz embargada, resquício da doença, ela disse para a reportagem do Portal Drauzio Varella que, quase dois anos depois do contágio, ainda tem diversos sintomas. Ela e o marido foram infectados no início de 2021, antes de a primeira dose da vacina ser liberada para a faixa etária deles. Seu esposo, que na época tinha 56 anos, não resistiu e faleceu.
“Meu marido morreu dia 3 de março de 2021 e eu peguei covid logo em seguida. Após o velório, fui direto para o hospital. Eu fiquei uns 25 dias entubada, depois fui para UTI e então fui para o quarto. Eu não estava sabendo nem quem eu era, estava delirando. Perdi uns 30 quilos. Fiquei no total uns 30 ou 40 dias, e sai em abril de 2021 de cadeira de rodas. A minha mãe e as cuidadoras falavam que eu parecia um boneco de posto, de tão mole que eu estava, balançando de um lado para o outro.”
Quando saiu da unidade hospitalar, Ivone disse que sentia um cansaço enorme e uma fadiga tremenda, que perduram até hoje. Espasmos e tremores passaram a fazer parte de sua vida. Ela falou que, até o final do ano passado, não conseguia tomar banho sozinha ou realizar as tarefas básicas de casa, como lavar louça ou se alimentar. Por isso, foi morar com a mãe, que cuida dela até hoje. Ivone precisou se afastar do trabalho.
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Manifestação grave
O médico intensivista Rafael Deucher, coordenador geral das UTIs da Santa Casa de Curitiba (PR) e professor do curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR), disse que os pacientes com covid grave, como o caso de Ivone, têm mais risco de desenvolver sequelas físicas, emocionais e até cognitivas.
O motivo, segundo o dr. Deucher, é que o vírus deflagra uma reação inflamatória com manifestação grave que pode afetar diversas partes do corpo, como pulmão, músculos, coração e outros órgãos, levando a pessoa a ser internada.
“Por que alguns pacientes saem de cadeira de rodas? Porque o vírus fez com que eles ficassem em coma 10, 15 e 20 dias; alguns ficaram em ventilação mecânica por 45 dias. Então isso vai fazendo com que, na fase aguda do trauma infeccioso, ocorra um consumo muito rápido de músculo, e o paciente evolua com atrofia muscular e perda muscular, havendo a necessidade de reabilitação física, não só muscular, mas cardiopulmonar também.”
De acordo com o dr. Deucher, até 80% dos pacientes que necessitam de ventilação mecânica também podem apresentar delírio, uma alteração mental neurológica aguda com confusão mental e agitação, como no caso de Ivone. A condição, no entanto, tende a regredir conforme a doença vai passando. Estresse pós-traumático e ansiedade também podem acontecer.
Segundo a Rede de Pesquisa Solidária, fadiga, dor, tontura, sudorese, calafrios, perda de peso, ansiedade, falta de atenção, alteração no sono, dor nas articulações, perda de memória, tosse, falta de ar e enxaqueca são algumas das sequelas mais comuns em sobreviventes de covid.
O dr. Deucher falou que pacientes com covid longa não devem negligenciar nenhum tipo de sintoma, principalmente emocionais, e devem procurar ajuda com especialistas. Foi isso que Ivone fez.
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A recuperação de Ivone
Desde que saiu do hospital, Ivone tem feito acompanhamento com psicólogo, psiquiatra, fonoaudiólogo, neurologista e com uma fisioterapeuta, que vai à sua casa duas vezes por semana para realizar exercícios.
“Consegui sair da cadeira de rodas no final de 2021, e agora, graças à fisioterapia, peguei firme com a bengala e o andador. Recuperei meu peso. Hoje em dia tomo café na mesa já. Vou de andador até a mesa. Meu maior desafio é o degrau da cozinha da mãe. Também lavo a louça e consigo tomar banho sozinha. Ainda tenho medo de cair e escorregar, por isso às vezes levo uma cadeira para o banheiro e tomo banho sentada. Uma coisa de cada vez”, disse.
De acordo com Ivone, os médicos e profissionais que a acompanham dizem que fisicamente ela está recuperada. “Até a fisioterapeuta falou que meus músculos já restauraram. O que falam agora é que tudo o que eu tenho se resume à ansiedade, condição que estou tratando com psicólogo e alguns remédios.”
Um estudo com 425 pacientes que tiveram covid grave ou leve, feito por pesquisadores da USP e publicado na revista General Hospital Psychiatry no início do ano passado, mostrou que 15,5% dos entrevistados tinham transtorno de ansiedade generalizada, sendo que 8,14% desenvolveram a condição após a contaminação pelo novo coronavírus.
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Sequelas da covid leve
As sequelas não aparecem apenas após casos graves de covid. Um ano depois de ter contraído o vírus, o corretor de imóveis Arcênio Fernandes de Souza, morador de Goiânia (GO), disse que ainda tem dor, cansaço, falta de ar e falhas de memória. “Às vezes estou conversando com você aqui e do nada o assunto foge. Há momentos em que estou falando com minha esposa e de repente paro e penso: ‘gente, quem é essa mulher’? Aí momentos depois, em coisa de segundos, volta tudo. É estranho.”
Em estudo publicado na revista acadêmica “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS), em meados de 2022, pesquisadores da USP, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) relataram que a perda de memória pós-covid pode estar associada à ação do novo coronavírus nos astrócitos, células do sistema nervoso que têm diversas funções, como suporte e nutrição dos neurônios.
Em resumo, segundo os cientistas, o vírus libera seu material genético nos astrócitos. Na sequência, eles alteram seu metabolismo e começam a fabricar substâncias químicas que matam os seus vizinhos neurônios. Esse mecanismo do vírus também estaria associado a outras sequelas do coronavírus, como depressão e ansiedade, segundo a pesquisa.
Além de lapsos na memória, Souza também ficou com outras sequelas da doença: fadiga e dor muscular. Ele disse para a reportagem que, mesmo sem fazer atividade física, sente dores típicas de quem acabou de sair de um exercício pesado da academia. “É como se eu tivesse carregado 25 kg de cada lado.”
Souza falou também que sente cansaço constante e seu fôlego é totalmente diferente. A pelada de futebol, falou, já não é a mesma. Colocar um galão de água no filtro ficou mais difícil. “É como se eu não absorvesse oxigênio suficiente. Eu encho o peito, mas parece que eu não respiro o suficiente e dá aquela tontura, sabe? Preciso parar e dar uma respirada profunda.”
No início dos sintomas, Souza disse que tinha acompanhamento médico. Agora, no entanto, falou que “relaxou” porque os resquícios da doença não são tão fortes quanto logo após o contágio. No entanto, ele disse que procura não se esforçar como no passado. Quando faz caminhadas, por exemplo, vai devagar e com mais cuidado. Na hora de levantar algum peso, contou, tenta inspirar mais oxigênio para não se cansar.
O dr. Deucher recomenda que aqueles com sequelas busquem auxílio médico profissional, mesmo em casos leves. “O sintoma é o corpo ‘gritando’ que precisa de ajuda, então as pessoas devem sim procurar um especialista, nem que seja para ele falar que está tudo bem e dentro do esperado.”
A Rede de Pesquisa Solidária disse, com base em estudos recentes, que doses de reforço de vacina também podem amenizar os sintomas e diminuir os riscos de covid longa. Outros cuidados, como uso de máscaras em ambientes fechados e higienização das mãos, também colaboram para evitar a doença.
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Sobre o autor: Lucas Gabriel Marins é jornalista e futuro biólogo. Tem interesse em assuntos relacionados à ciência, saúde e economia.