Sentimentos como tristeza, medo e melancolia são comuns neste momento e devem ser acolhidos.
Enquanto escrevo esse texto, na segunda semana de maio de 2021, o Brasil já perdeu mais de 420 mil pessoas para a covid-19. Se considerarmos a subnotificação, esse número pode ser ainda maior. Como a morte de alguém afeta várias pessoas à sua volta, não é difícil concluir que, neste momento, há milhões de pessoas em luto no Brasil.
Se você não conhece alguém que morreu de covid-19, provavelmente conhece alguém que perdeu uma pessoa para a doença.
Quando falamos em luto, cada pessoa tem um tempo para processar a informação e organizar os seus sentimentos. Mas existem fatores que podem tornar o luto ainda mais difícil, como é o caso da pandemia. Hoje, muitos pacientes morrem no hospital após um longo período de internação sem que a família possa fazer visitas ou se despedir da forma que gostaria, e isso é muito doloroso.
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A convivência no geral também está mais restrita (as pessoas não podem se reunir normalmente, como antes) e os rituais como velório e sepultamento têm acontecido de forma adaptada. Além disso, precisamos lidar com o medo de adoecer e morrer, o que torna a situação ainda mais delicada.
Sentimentos “ruins” precisam ser sentidos
É comum validarmos apenas os sentimentos considerados “bons”, como alegria e gratidão. Esse costume muitas vezes impede a manifestação de sentimentos ditos “ruins” de maneira saudável. “Diante do cenário atual, é normal e necessário que sentimentos como tristeza, medo, melancolia e desespero sejam sentidos, acolhidos. Esses sentimentos devem ser manifestados, pois assim são elaborados de forma positiva e adequada”, explica a psicóloga Carla Freitas.
Em entrevista ao podcast Entrementes em janeiro de 2021, a professora livre-docente sênior do Instituto de Psicologia da USP Maria Júlia Kovács explicou que a elaboração do luto vem a partir do pensamento “como vou continuar a minha vida sem essa pessoa?”. “É um trabalho psíquico, que demanda energia. Por isso, muitas vezes o enlutado não tem vontade de fazer as coisas, não tem vontade de comer ou come demais, não consegue dormir ou dorme demais”, explicou.
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Após um tempo, os sentimentos vão se organizando e a pessoa vai retomando sua vida. Mas isso não significa que o processo acabou e que ela não mais vai pensar na pessoa que morreu. “Você não vai esquecer, mas vai aprender a conviver sem a presença física da pessoa. E tem dias que são mais difíceis, mais pesados, e tem dias que a gente vai vivendo a vida. O processo de luto não tem tempo determinado”, disse a especialista. “Tem gente que precisa falar muito, tem gente que não quer falar. Tem gente que chora, tem gente que não chora. Não tem uma etiqueta de como deve ser.”
Mas precisamos sempre ter atenção em relação à duração e intensidade dos sentimentos. Sintomas como tristeza, falta de ânimo, perda ou excesso de apetite, insônia e ansiedade merecem atenção profissional, se forem recorrentes. Devido ao momento de fragilidade atual, a recomendação da psicóloga Carla Freitas é buscar apoio psicológico após três meses de sintomas.
Novos rituais de despedida
Para muitas pessoas, velar e sepultar um ente querido que faleceu é um momento importante e simbólico de despedida que auxilia na elaboração do luto. Contudo, por causa da situação que estamos vivendo, em que o distanciamento social é uma medida importante para conter a disseminação do coronavírus, muitas vezes esses rituais não podem ser realizados ou são realizados de maneira restrita (para um pequeno grupo de pessoas e por um tempo muito reduzido, por exemplo).
Sendo assim, segundo Carla, pode ser necessária a construção de novas estratégias para formatar essa elaboração, buscando a compreensão e o conforto diante da morte. Ritos religiosos, conforme a crença de cada pessoa, podem ser reconfortantes nesse momento (sempre respeitando as medidas sanitárias). Outras opções que podem ser válidas incluem: realizar um desejo do ente querido, fazer uma espécie de memorial com fotos ou promover um encontro virtual para que as pessoas próximas relembrem momentos juntos e prestem sua homenagem.
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Como ajudar uma pessoa em luto
Muitos não sabem como lidar com a situação e consolar quem está sofrendo. O mais importante é se mostrar presente, disponível, mas sempre respeitando o momento da pessoa. Converse, escute, acolha. Muitas vezes, ajudá-la a se distrair um pouco por alguns minutos ou horas já pode ser uma forma de alívio.
Evite frases de conforto como “foi melhor assim” ou “Deus quis assim”. “Nesse momento, o acolhimento é uma das principais formas de auxílio, assim como a empatia e a paciência. O acolhimento do choro e amparo diante das expressões emocionais são fundamentais para a pessoa enlutada”, afirma a psicóloga.
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Segundo ela, o luto pode durar dias, meses ou anos, e isso é muito particular. “É necessário muitas vezes a elaboração de um novo lugar social ou simbólico, como por exemplo na perda de um filho ou esposo (a), em que a pessoa precisa lidar com uma nova identidade social diante do luto”, completa.
Ajudar a pessoa com pendências do dia a dia – que podem demandar uma energia que a pessoa não tem nesta fase – também pode ser muito útil, por exemplo, auxiliar nos trâmites de enterro, preparar algumas refeições, fazer compras, entre outros.
Como falar sobre o luto com as crianças
A perda de uma pessoa querida também é sentida pelas crianças. Muitas perderam avós, tios, pessoas próximas da família ou os próprios pais. Falar sobre esses sentimentos com elas é fundamental. “Muitas pessoas acham que as crianças não conseguem compreender a finitude da vida concretizada na morte. Porém, se forem preparadas de forma adequada, elas compreendem”, explica a psicóloga.
Os pais, responsáveis ou adultos que tenham vínculo com a criança podem conversar sobre esse assunto usando recursos como livros e filmes. “Ao assistir ou ler junto com a criança, sempre pergunte o que ela sentiu naquele momento, qual sensação ela teve e como ela entendeu aquela situação, e é fundamental que demonstre calma e segurança ao falar sobre o assunto. Indico os filmes ‘O Rei Leão’, ‘Frozen’, ‘Viva – A vida é uma festa’ e ‘Divertidamente’. Na categoria livros, eu indico ‘Lino’, que é um livro que trata a morte de forma simbólica e trabalha a ausência e lugar de vazio, e ‘O pato, a morte e a tulipa’, que trata a morte com naturalidade e consequência da vida”, recomenda.
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Falar que a pessoa “está viajando” ou que “virou estrela” não é boa ideia. O ideal é evitar mentiras sobre o assunto, ter empatia e conversar com a criança de forma clara para que ela possa entender. “Se atente à idade e capacidade cognitiva da criança, para que a comunicação seja assertiva e eficaz”, orienta Carla.
Luto coletivo
Com tantas mortes acontecendo desde o início da pandemia, o sentimento de luto coletivo ficou muito evidente. “Se pensarmos no simbolismo da morte, podemos observar que seus rituais são coletivos, como, por exemplo, o sepultamento, as procissões em cidades do interior, o dia dos mortos no México e em demais manifestações ao redor no mundo. E universalmente estamos enfrentando a mesma situação, e lidando com os mesmos números de morte diariamente nos telejornais, porém com a impossibilidade de estarmos juntos”, comenta a psicóloga.
Para cada pessoa, o impacto dessas mortes será diferente, dependendo de suas crenças, sua relação com a sociedade e seu estado psicológico e emocional.
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No último dia 4 de maio, tivemos a notícia da morte do ator Paulo Gustavo, aos 42 anos, que causou uma grande comoção em muitos brasileiros. “A representação de uma pessoa para a sociedade causa esse sentimento, ou seja, diversas pessoas nutriam um sentimento de identificação e admiração pelo trabalho dele, e mesmo sem conhecer ou conviver, sofrem com essa ausência representativa. Além de Paulo, morreu também uma personagem extremamente simbólica, a Dona Hermínia, que representava muitas mães”, afirma Carla.
Mesmo quem não perdeu alguém próximo pode experimentar esse sentimento de perda pelo fato de vermos tantas mortes ocorrendo ao mesmo tempo e também pela perda da nossa rotina de antes da pandemia, a perda de um emprego ou daquilo que gostávamos de fazer. Esses sentimentos são válidos e devem ser acolhidos.