Maratona de Berlim - Portal Drauzio Varella
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Atividade física

Maratona de Berlim

O dr. Drauzio já correu várias maratonas ao longo da vida. Leia o artigo sobre seu desempenho na maratona de Berlim deste ano.

corredores na maratona de Berlim

Berlim é uma cidade instigante, capital intelectual de uma cultura que deu ao mundo músicos, escritores, filósofos, pintores, matemáticos e hordas de cientistas que revolucionaram as artes e o conhecimento científico. Além de tudo, foi palco das maiores tragédias do século 20.

Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, no Brás, bairro operário de São Paulo, passei os primeiros dez anos entre imigrantes italianos, portugueses e espanhóis que fugiam da guerra e da fome, em busca de paz e trabalho nas fábricas da vizinhança. Morávamos em habitações coletivas, com os quartos dispostos ao longo do corredor de entrada, separados das cozinhas, do tanque, do banheiro comunitário e dos varais com roupas penduradas.

Veja também: Como se preparar para correr a primeira maratona?

Depois do jantar, quando as cadeiras vinham para o lado de fora, eu sentava na calçada para ouvir as conversas dos homens. Minha imaginação infantil foi povoada por bombardeios, baionetas corpo a corpo, saraivada de balas, Hitler, nazismo, fascistas, Mussolini enforcado. Como podiam se queixar de saudades da terra natal, cenário daquelas atrocidades?

Quando visitei Berlim pela primeira vez, era uma cidade com um muro que separava dois mundos: o ocidental, sob a jurisdição de americanos, franceses e ingleses, e o oriental, comandado pela antiga União Soviética. As paredes da cidade inteira exibiam buracos de bala.

A pretensão de correr 42 km aos 82 anos pode sugerir insanidade mental. A julgar pelos conselhos dos meus familiares, dos amigos e das pessoas que respeito pela sensatez, talvez seja mesmo. Por outro lado, minha geração está diante de uma expectativa de vida com a qual jamais sonharam nossos antepassados. Havemos de aceitar os limites impostos a eles?

É um esporte democrático: do primeiro ao último colocado, todos irão até o limite das forças. Só para viver a explosão de alegria, a paz e a felicidade que se instala no espírito humano ao cruzar a linha de chegada.

Num ritmo compassado, pude admirar a arquitetura, os prédios com fachadas em linhas verticais, o traçado das avenidas, as árvores, os parques, os museus e o vaivém ininterrupto das bicicletas que fazem a alegria da cidade.

No quilômetro 18, uma surpresa deliciosa: minhas netas me esperavam. Entre abraços e beijos, a mais velha se espantou: “Vô, como você está bem”. Acreditei, é assim que me sentia, mas restavam 24 km.

No quilômetro 25, entretanto, senti uma fisgada na articulação coxo-femural esquerda, semelhante à que ocorrera num treino anterior. Reduzi a velocidade até a dor passar. Um pouco à frente, voltou mais forte; comecei a andar, melhorou, mas piorou em seguida. Tenho medo de dores nas juntas, são elas que tiram os corredores das pistas, muitas vezes para sempre.

Nas imediações do quilômetro 30, senti que a dor estava mais constante e tive medo de que alguma sequela acabasse com minha carreira. Tomei água e fiz um alongamento no meio-fio; pouco adiantou. Mesmo quieto, sem me mover, a dor persistia. Decisão amarga, só faltavam 12 km.

Parar ou não parar, eis a questão, diria o poeta. Pela primeira vez na vida, abandonei a prova.

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