Efeitos do tratamento da aids | Entrevista

A verdadeira revolução no tratamento da aids ocorreu em meados da década de 1990 com a possibilidade de associar as drogas que passaram a compor o coquetel antiaids. Veja entrevista sobre os efeitos do tratamento da aids.

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Publicado em: 23 de outubro de 2011

Revisado em: 7 de abril de 2021

A verdadeira revolução no tratamento da aids ocorreu em meados da década de 1990 com a possibilidade de associar as drogas que passaram a compor o coquetel antiaids. Veja entrevista sobre os efeitos do tratamento da aids.

 

Quando foi identificado no início dos anos 1980, o vírus da aids pegou a ciência totalmente desprevenida. Ninguém imaginava que, nas duas últimas décadas do século 20, pudesse surgir uma doença para a qual não existisse, pelo menos, um recurso terapêutico que controlasse sua evolução. Diante de pacientes com o sistema imunológico depauperado, que não reagiam à instalação de micro-organismos oportunistas e desenvolviam formas agressivas de câncer, os pesquisadores concentraram os esforços à procura de um caminho que ajudasse a conter a multiplicação do vírus HIV e sua ação devastadora sobre as células de defesa do organismo.

Ao redor de 1986, 1987, apareceu o AZT, a primeira droga que demonstrou alguma eficácia no tratamento da aids. Depois surgiram outras, como o DDI e o d4T, todas prescritas isoladamente sob a forma de monoterapia, mas com impacto muito discreto na evolução da doença.

 

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A verdadeira revolução no tratamento da aids ocorreu em meados da década de 1990 com a possibilidade de associar as drogas que passaram a compor o coquetel antiaids e inibiam as enzimas necessárias para a reprodução do vírus. Desde então, aids deixou de ser doença fatal para ser considerada uma doença crônica, como diabetes e hipertensão, por exemplo, e a perspectiva de vida desses pacientes aumentou radicalmente.

 

PERTO DO FIM

 

Drauzio – Hugo, há quanto tempo você sabe que é portador da infecção pelo HIV?

Hugo Hagström – Em junho de 1985, fiquei sabendo do resultado sorológico do exame que fiz no Hospital das Clínicas de São Paulo. Portanto, faz quase 21 anos que tenho conhecimento da infecção.

 

Drauzio  Na época em que isso aconteceu, não havia tratamento nenhum para a doença. Como você encarou a notícia?

Hugo Hagström – Não havia nenhum tratamento, nenhuma perspectiva, e eu não fazia a menor ideia do que ser portador do HIV representaria na minha vida, se eu continuasse vivo.

 

Drauzio – Ao saber do resultado, você achou que iria morrer de aids?

Hugo Hagström – Não só achei, como me disseram que eu tinha aids e provavelmente teria só mais uns seis meses de vida. Estava no auge da minha juventude, tinha 23 para 24 anos, e saí achando que já tinha morrido ontem.

 

Drauzio  Você chegou a receber tratamentos de monoterapia com o AZT e DDI, por exemplo?

Hugo Hagström – Recebi. Em 1998, eu me cadastrei no Centro de Referência de Treinamento de DST/AIDS, na época o único lugar que oferecia tratamento para os portadores do HIV. Cheguei a usar a monoterapia com AZT. Digo cheguei a usar, porque ele foi muito mal usado, pois era dificílimo tomar esse medicamento, não só por ele, mas pelo que representava. No meu caso específico, representava a materialização daquilo que eu não queria ter e não bastava saber que ele existia, eu precisava ingeri-lo.

 

Drauzio – Isso que dizer que você não chegou a tomar o AZT com regularidade?

Hugo Hagström – Não tomei com regularidade. Minha adesão ao tratamento monoterápico foi sofrível, porque eu vivia sem falar no peso que a dosagem mais elevada provocava, uma vez que o AZT era o único medicamento disponível e não se sabia direito qual a quantidade ideal para ser tomada. E vinha o medo de ficar cinza-chumbo, de ser conhecido na rua por mais um rótulo além dos que já ligavam a infecção por HIV à sexualidade, à marginalidade, pois eram os profissionais do sexo, os usuários de drogas e os homossexuais que se infectavam. Era rótulo demais para segurar a barra!

 

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VOLTA À VIDA

 

Drauzio  Quando você começou a receber o coquetel composto pela associação de drogas?

Hugo Hagström – Comecei a tomar logo que o coquetel apareceu. Em 1996, praticamente havia entrado em fase terminal. Minha imunidade tinha caído por completo, os linfócitos sumiram e eu havia contraído uma série de infecções oportunistas. Nessa situação, fui internado no Hospital das Clínicas (SP) e ninguém pergunta a um paciente com esse quadro se quer ser tratado ou não.  Pelo menos não me perguntaram, e eu recebi a associação dos medicamentos. Na verdade, tive a sorte de esse momento de quase morte representar a possibilidade de readquirir a qualidade de vida, ou de buscá-la, mesmo que não viesse de imediato.

 

Drauzio  Você foi salvo pelo gongo…

Hugo Hagström – Fui salvo pelo gongo. Sou um cara de muita sorte!

 

Drauzio – Alguns não tiveram a mesma sorte naquele momento…

Hugo Hagström – Infelizmente para mim, porque perdi muitos amigos, muitas pessoas queridas. Hoje, não sei se morreram só por causa da infecção. Tenho a impressão de que a causa da morte foram outros vírus que acompanham o HIV, como o vírus da solidão por abandono, o vírus do isolamento social. Esses também contribuem muito para a queda da imunidade.

 

Drauzio  O que o tratamento com a associação de drogas mudou na sua vida? 

Hugo Hagström – Em primeiro lugar, trouxe a perspectiva de estar vivo de verdade. Em segundo, mudou o enfoque com que passei a olhar a infecção. Deixei de pensar em morte e passei a pensar em vida, mesmo sendo portador do vírus da aids, realidade que eu escamoteava por processos meus, pessoais.

Diante da possibilidade de mudar o foco e de ver os ganhos físicos que me trouxe o tratamento, era como se eu tivesse renascido e eu precisava descobrir o que fazer com esse novo indivíduo.

 

EFEITOS COLATERAIS

 

Drauzio – O tratamento com associação de drogas, além da obrigação de tomar vários remédios diariamente, tem alguns efeitos colaterais adversos. Como você lidou com isso?

Hugo Hagström – Não é nada fácil. Ainda hoje, a gente se depara com a baixa adesão ao tratamento ou com a adesão inadequada, porque é muito difícil introduzi-lo na dinâmica da vida individual ou social.

O tratamento da aids está cercado de muitas sombras e de medo. Especificamente para mim, por questão de sorte ou privilégio, não sei bem, não foi tão difícil usar os medicamentos em locais públicos, porque eu havia me determinado a lidar com a realidade. Fora isso, eu estava afastado do trabalho. Atualmente, sou aposentado porque vivenciei uma época em que bastava ser portador do vírus HIV para ter direito à aposentadoria, o que representava de certa forma um atestado de morte também: “Se não posso trabalhar, se não posso fazer nada, para que estou vivo?”.

Pessoalmente, consegui introduzir o uso dos antirretrovirais com relativa facilidade. Digo relativa, porque os efeitos colaterais trazem, em algum momento, prejuízos para a qualidade de vida. Consegui aprender, no entanto, que existem períodos de adaptação do organismo e que os efeitos colaterais não prevalecem o tempo todo, nem são todas as pessoas que os manifestam. Desenvolvi alguns deles; outros não.

 

Drauzio – Dê um exemplo.

Hugo Hagström – Determinados medicamentos provocaram diarreias constantes, enjoo e alterações hepáticas. Meu fígado se ressentiu com o uso do AZT em alguns momentos. Mais recentemente, tive problemas com lipodistrofia.

 

Drauzio – Como você sentiu a lipodistrofia?

Hugo Hagström – Lipodistrofia é um remanejamento da gordura do organismo que se desloca das áreas periféricas, como coxas, glúteos e braços, para alojar-se na barriga ou formar uma corcova. A primeira reação é pensar no resultado estético, mas eu vou além. A consequência da lipodistrofia é também a perda da identidade, porque a pessoa se olha no espelho e não reconhece a própria imagem nele projetada.

 

Drauzio – Todos nós passamos por episódios de diarreia na vida. Durante o tratamento com o coquetel de drogas, que tipo de limitações à vida prática impõe a diarreia constante, diária, repetida por semanas ou meses?  

Hugo Hagström – São tantas, mas diria que a mais importante é o medo de que a crise possa ocorrer a qualquer momento, em qualquer lugar. Por isso, ter sempre na bolsa um rolo de papel higiênico é uma providência necessária para enfrentar uma situação dessas que acontecer no meio da rua, por exemplo.

Outro inconveniente da diarreia é ficar pensando nas limitações constrangedoras que ela traz em algumas ocasiões. No meu caso, fui procurando caminhos para lidar com a situação. Embora tenha passado pelo dissabor de uma calça suja e de ter de descer do ônibus correndo, sei que os episódios ocorrem mais em determinados horários e que certos alimentos intensificam esse efeito colateral da medicação.

 

Drauzio –Você apresentou outros sintomas relacionados com o tratamento com o coquetel?

Hugo Hagström – Durante cinco anos, usei uma bengala por causa de uma neuropatia periférica muito forte induzida pelo tratamento com o uso do coquetel. Essa neuropatia acometia a planta do pé e sentia um formigamento constante na batata da perna. A perda da sensibilidade não me deixava perceber onde estava pisando e eu me desequilibrava. Aí, então, passei a usar a bengala que, durante algum tempo, além de me assegurar apoio físico, funcionou como apoio meio emocional e meio psicológico.

Como não consigo ver a saúde apenas como saúde física, durante o tratamento, fui buscando minhas outras saúdes, já que a física venho dominando e tem melhorando consideravelmente.

 

Drauzio – Essa neuropatia durou quanto tempo?

Hugo Hagström – Durou cinco anos, mas ainda hoje persiste, embora os sintomas tenham sido minimizados com o uso de alguns outros medicamentos.

 

ADESÃO AO TRATAMENTO

 

Drauzio – Na fase inicial do coquetel, o número de comprimidos tomados durante o dia era muito grande. Quantos você tomou e como se organizava para tomá-los todos os dias?

Hugo Hagström – Cheguei a tomar 32. Talvez minha preocupação em buscar a vida depois de tanto tempo pensando em morte, tenha colaborado para que conseguisse montar um esquema. Tudo tem de começar com nós mesmos. Não dá para atribuir nossas responsabilidades para os outros. O tratamento é meu, a vida é minha e sou eu quem precisa dominar tudo isso.

Outro fator importante para a adesão ao tratamento foi a ajuda dos grupos de adesão. Dentro dos centros de referência, o pessoal encarregado da saúde mental desenvolve um trabalho voltado para esse fim e ajuda  a criar estratégias como montar planilhas e colocar relógios para despertar nas horas de tomar os remédios. No entanto, e acima de tudo, o que realmente funciona é a vontade que a pessoa tem de tratar-se e de melhorar.

 

Drauzio – Quantos comprimidos você toma hoje?

Hugo Hagström – Tomo dez comprimidos de antirretrovirais: cinco pela manhã e cinco à noite. Tomo também alguns outros medicamentos que não fazem parte do coquetel, às 10h da manhã e às 11h da noite.

 

Drauzio – Tomando tantos comprimidos por dia, você não se sente um homem biônico?

Hugo Hagström – Às vezes, até é bom sentir-se um homem biônico. Na verdade, embora acredite que tenha incorporado o ato automático de ingerir os medicamentos, a adesão ao tratamento tem de ser exercitada todos os dias. Conheço pessoas com nível de adesão razoável, que tomam os remédios com tanta raiva que deve ser ruim ingerir todos eles. Não sou cientista, mas acho que tal atitude pode diminuir a eficácia do tratamento.

Eu procurei mudar o olhar. Mesmo nos dias em que estou mais enjoado e é difícil ingeri-los, não os vejo como meus inimigos potenciais. Ao contrário, considero-os meus aliados na luta pela vida.

 

Drauzio  Certamente atrapalha a adesão ao tratamento fazer uma coisa que a pessoa detesta tanto. 

Hugo Hagström – Claro que sim. Não é porque estou me posicionando dessa forma que considere fácil a adesão ao tratamento. Tenho conseguido construir isso na minha vida, mas a construção tem de ser diária.

 

NOVA PERSPECTIVA

 

Drauzio  O que essa construção mudou em você?

Hugo Hagström – Essa construção mudou tudo. Transformou-me numa pessoa melhor, com outros valores. Embora continue tendo um lado bom e um lado ruim, percebo que encaro melhor a realidade, porque não há nada que alguém infectado com o vírus HIV possa fazer para mudar o fato de ser portador da infecção. Por isso, a adesão ao tratamento precisa ser diária. Todos os dias preciso aderir à minha vida e à vida das pessoas portadoras do vírus para que o tratamento seja um pouco mais leve.

 

HIV E SEXUALIDADE

 

Drauzio  Você adquiriu o HIV praticamente na adolescência, numa fase em que a sexualidade tem importância absoluta na vida de todos nós. De que maneira a infecção interferiu com a sua sexualidade?

Hugo Hagström – Num primeiro momento, fiquei assexuado. O rótulo da homossexualidade tornava mais difícil pensar em como lidar com isso. E veio uma carga de culpa. O vírus da moral que envolve as doenças sexualmente transmissíveis existe até hoje, mas naquela época era muito mais evidente e eu virei meio ostra, fechei as portas.

Hoje, percebo que não basta estar vivo. É preciso buscar uma vida boa, digna, de acordo com os paradigmas de cada indivíduo. Naquele momento, como achar que minha vida poderia ser boa, se eu era algo de muito ruim, algo capaz de infectar os outros, de fazê-los sofrer  e de sofrer também?

 

GRUPOS DE APOIO

 

Drauzio – Você atravessou uma fase em que os medicamentos para aids eram importados, custavam três vezes mais no Brasil do que no exterior e estavam disponíveis apenas para quem tinha dinheiro. Depois, eles passaram a ser distribuídos gratuitamente. O que você sentiu quando soube que poderia usar esses remédios, os melhores que existiam na época para o tratamento da aids?

Hugo Hagström – No início, não sabia de que modo eles tinham passado a ser distribuídos. Com o tempo, porém, entendi a luta das pessoas para conseguir que isso fosse possível e os medicamentos ganharam um gosto de garra muito bom, porque para chegar à distribuição gratuita, você sabe tão bem quanto eu, foi uma luta constante, encabeçada por pessoas que nem chegaram a fazer uso dos medicamentos porque morreram antes.

 

Drauzio  Você mencionou brevemente os grupos de apoio. Como eles funcionam?

Hugo Hagström – Sabia da existência dos grupos de apoio, mas jamais pensei em procurá-los. Foi no Centro de Referência que tomei conhecimento do Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e fui até lá. O GIV é um grupo de ajuda mútua, criado em 1990, com a intenção de melhorar a qualidade de vida do portador do HIV. Cheguei sem fazer ideia do que iria encontrar. Temia encontrar muitos doentes falando de tristezas, mas encontrei pessoas buscando a vida, cada uma a seu modo, mas todas buscando a vida. Atualmente, existem muitos grupos atuando nessa linha.

O GIV me trouxe informação e a possibilidade de saber que sou um cidadão, e ser cidadão significa correr atrás de políticas públicas, de projetos.

Atuo na área social. Chamo meu grupo de Saúde Cidadã. Meu grande barato é poder receber as pessoas, ouvi-las, entender sua dor, porque dor não se mede, dor é individual. Não adianta eu dizer que comigo aconteceu a mesma coisa, quando o outro tem de suportar a dor, que é só dele.

 

Drauzio  Como chegam ao grupo as pessoas que se descobriram infectadas há pouco tempo. Houve alguma evolução se considerarmos o tempo dos primeiros diagnósticos? 

Hugo Hagström – Infelizmente, sob o impacto do diagnóstico, percebo pouca evolução. A associação ainda é direta com a morte, ainda é direta com a sexualidade e com o “eu não mereço mais amar, nem sonhar, não mereço mais nada”.

 

Drauzio  Sentimentos iguais aos que você experimentou vinte anos atrás, quando soube estar infectado.

Hugo Hagström – Iguais. É impressionante, mas os sentimentos são iguais.

 

Drauzio  Como essas pessoas evoluem com o passar dos meses, dos anos?

Hugo Hagström – Se o impacto do diagnóstico continua sendo o mesmo; os caminhos para encarar a infecção são muito diferentes. Toda a ênfase é dada à melhora da qualidade de vida que vem com o tratamento. Pessoalmente, não abordo só o tratamento medicamentoso. Insisto na adesão à vida.

Não são todos os portadores do HIV que precisam tomar medicamentos, mas isso não quer dizer que seja dispensável tomá-los em algum momento. A pergunta é: se a pessoa está na fase que não toma remédios, não precisa de tratamento? Precisa, sim,  precisa de monitoramento para cuidar da saúde mental, emocional e, em alguns casos, da saúde espiritual. No nosso grupo, todos obedecemos a mais ou menos essa linha de raciocínio.

 

Drauzio – O que você procura despertar nas pessoas quando chegam deprimidas?

Hugo Hagström – Procuro lembrá-las de que não são um vírus, ou melhor, que não somos um vírus. É impressionante como as pessoas perdem a identidade, quando descobrem a infecção e posicionam-se como se fossem um vírus. Elas se esquecem de sua história anterior e atribuem todas as coisas ruins que possam acontecer dali em diante ao fato de serem portadoras do HIV. De repente, porém, quando conversamos com elas, fica evidente que suas vidas, em alguns aspectos, já eram muito ruins.

 

Drauzio – E em outros, muito boas

Hugo Hagström – Muito boas. Por isso, a primeira coisa que tento fazer é desconstruir a ideia de que a pessoa deixa de ser um indivíduo para transformar-se numa infecção, num vírus, enfim.

 

Drauzio  O que é preciso fazer para entrar em contato com o Grupo de Incentivo à Vida?

Hugo Hagström – Em São Paulo (SP), o Grupo de Incentivo à Vida funciona de segunda à sexta-feira, das 14h às 22h. O contato também pode ser feito pelo telefone (11) 5084-0255 ou pelo site www.giv.org.br

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