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Inteligência artificial na saúde pública: o que os hospitais do SUS já estão usando?

O uso da inteligência artificial na saúde pública é muito diferente do Chat GPT e traz agilidade e eficiência para os bastidores hospitalares. Conheça algumas iniciativas. 
Publicado em 24/09/2024
Revisado em 26/09/2024

O uso da inteligência artificial na saúde pública é muito diferente do Chat GPT e traz agilidade e eficiência para os bastidores hospitalares. Conheça algumas iniciativas. 

 

Parece distante o dia em que a inteligência artificial se tornará capaz de ajudar no diagnóstico de infarto ou remanejar pacientes de um hospital para outro durante a epidemia de uma doença infecciosa. No entanto, isso já está acontecendo, inclusive nos hospitais públicos do Brasil.  

Isso não quer dizer, contudo, que um computador tenha avaliado sozinho o exame de uma pessoa com problemas cardiovasculares ou encaminhado por conta própria diversos pacientes para leitos em outras unidades. A inteligência artificial é um amplo conjunto de tecnologias que, na área da saúde, pode ser responsável por acelerar processos hospitalares que o paciente nem sempre conhece, mas que impactam diretamente a rapidez e qualidade do seu atendimento.

Além disso, as ferramentas de IA podem oferecer apoio no diagnóstico e no tratamento de uma doença, sem, é claro, substituir a avaliação final de um profissional capacitado.

Assim, quando pensamos no SUS, sistema do qual depende exclusivamente cerca de 70% da população brasileira, a IA se torna uma solução para vários problemas, desde a troca da receita de um medicamento até o acesso, disponível a um clique, ao histórico médico de uma vida toda. 

E essa é uma realidade que está cada vez mais perto. Atualmente, pacientes de diferentes regiões do país já começam a sentir os benefícios de iniciativas envolvendo inteligência artificial na rede pública de saúde. 

 

Hospital Geral do Grajaú: digitalizar para conquistar

Entre os especialistas em IA na saúde, há um consenso: o primeiro passo da jornada tecnológica é digitalizar os processos.

Não é possível fazer funcionar um mecanismo de inteligência artificial se ele não tiver uma base de dados robusta para trabalhar. Por isso, o prontuário eletrônico, ou seja, aquele que armazena as informações online e não no papel, é indispensável.

O Hospital Geral do Grajaú (HGG), gerido pelo Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês (IRSSL), deu início ao seu processo de transformação em um hospital 100% digital que deve ir até o final de outubro deste ano. Sem papéis, a unidade localizada na zona sul de São Paulo, busca agilizar, por exemplo, o caminho de uma prescrição até o recebimento do remédio pelo paciente.

“Quando a gente traz o cenário de um hospital que depende da prescrição manual de um receituário médico, você precisa de um carimbo, de uma assinatura e de alguém levar esse papel até a farmácia para que a farmácia possa preparar a medicação, entregar nos postos de atendimento e, enfim, os pacientes serem atendidos. Em uma jornada digital, isso tudo é otimizado. Isso traz benefícios para os pacientes e para o próprio profissional, que pode empenhar o seu esforço na prática assistencial, e não ter que ficar lidando com questões burocráticas”, explica Eduardo Alves da Silva, gerente de TI do IRSSL.

Além disso, quando o paciente internado precisa atualizar uma prescrição, o médico consegue revalidar o documento no sistema, sem ter que criar um novo. A ferramenta também auxilia os profissionais de enfermagem, já que o acesso ao prontuário é mais rápido e o risco de perda de informações é bem menor. 

inteligência artificial na saúde pública
Médico utilizando a plataforma 100% online do HGG. Créditos: Camilla Facundes Freitas

O objetivo do HGG é ser o primeiro hospital público do país a alcançar a certificação HIMSS, um selo mundial de excelência em gestão e tecnologia. Entre os indicadores avaliados pela certificação, estão a segurança do paciente e o uso das informações para dar suporte à tomada de decisão baseada em dados. Até 2028, Eduardo afirma que o IRSSL transformará todos os 13 hospitais sob sua gestão em unidades 100% digitais.

A partir da evolução do sistema, o Hospital Geral do Grajaú pretende trazer o apoio de ferramentas de inteligência artificial propriamente ditas. Por exemplo, mesmo que hoje o processo já esteja bem mais tecnológico, o médico ainda precisa digitar a prescrição no prontuário digital. Em breve, Eduardo conta que a ideia é que a IA transcreva automaticamente a consulta entre médico e paciente, fazendo o cruzamento de dados e sugerindo ao profissional possíveis diagnósticos.

 

Hcor: na vida e na tecnologia, cada segundo conta

Ou seja, assim que a chamada “maturidade tecnológica” de um hospital estiver avançada, será possível contar cada vez mais com o auxílio da inteligência artificial. O Hcor, hospital de referência em cardiologia na cidade de São Paulo, entendeu isso já em 2009.

Desde aquele ano, Hcor e BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo realizam o diagnóstico e a consultoria de eletrocardiogramas (exame que avalia a saúde cardiovascular) à distância para mais de 885 unidades de atendimento do SUS em todo o Brasil. Destas, 735 unidades ficam sob responsabilidade do Hcor, incluindo Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Prontos Atendimentos (PAs). A iniciativa acontece por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS, o PROADI-SUS.

O projeto, chamado de Boas Práticas Cardiovasculares, funciona assim: quando um paciente dá entrada com sintomas que indiquem problemas cardiovasculares em alguma dessas unidades, o eletrocardiograma é feito e enviado digitalmente para os cardiologistas do Hcor ou da BP. Com profissionais de plantão 24 horas por dia, sete dias por semana, o exame é devolvido com laudo em até dez minutos. Se o caso for mais complexo, o próprio cardiologista entra em contato com a unidade que solicitou ajuda e faz uma teleconsulta.

De acordo com Camila Rocon, coordenadora médica do projeto Boas Práticas pelo Hcor, a inteligência artificial surge para deixar esse processo ainda mais apurado. Se o exame foi feito com muitos erros, por exemplo, com os eletrodos invertidos, a IA já sinaliza para a unidade e reduz o tempo de realização de um novo exame. 

Se o eletrocardiograma não apresenta alterações no resultado, a ferramenta indica ao cardiologista em um layout diferenciado. Assim, ele consegue verificar e liberar o laudo rapidamente. Mas se houver alguma alteração grave, o exame passa à frente para que o laudo seja feito pelo profissional no menor tempo possível.

Laudo de um eletrocardiograma filtrado como normal pela inteligência artificial. Créditos: Assessoria de imprensa do PROADI-SUS

Alterações graves representam infartos e arritmias, condições em que cerca de 50% das mortes acontecem ainda nas primeiras 24 horas depois do evento cardiovascular. A iniciativa, portanto, é capaz de salvar vidas e reduzir complicações até mesmo em unidades que não contam com a presença de um cardiologista. Estima-se que o Projeto Boas Práticas analise cerca de 15 mil exames por mês em todo o país.

Veja também: Quanto tempo temos para chegar ao hospital em casos de infarto?

 

Santa Casa de Belo Horizonte: quando a inteligência artificial vem para resolver problemas 

Nesse sentido, para que as ferramentas de inteligência artificial sejam realmente eficazes, elas precisam ajudar e não complicar a rotina de quem as utiliza todos os dias: os profissionais de saúde.

Em 2021, a Santa Casa de Belo Horizonte, o maior hospital de Minas Gerais e um dos maiores do Brasil em número de internações pelo SUS, criou o Órix Lab. O programa de inovações busca fomentar soluções tecnológicas para os desafios vividos dentro da unidade, ouvindo, por exemplo, os próprios colaboradores.

Nos cerca de 1.200 leitos da Santa Casa BH, são realizadas, diariamente, quase 2 mil prescrições de medicamentos. Antes do Órix Lab, cabia aos próprios farmacêuticos fazer a auditoria dessas prescrições, ou seja, conferir e controlar os recursos solicitados pelos médicos de acordo com o que está disponível no hospital.

Com a abertura criada pelo programa, uma das farmacêuticas da unidade apresentou uma inteligência artificial que poderia resolver esse problema. A NoHarm avalia e sugere mudanças na prescrição que possam gerar economia. Por exemplo, ao notar que um paciente está evoluindo bem, ela pode indicar a troca de um medicamento endovenoso por um comprimido, reduzindo os gastos do hospital. Além disso, ela também é capaz de recomendar correção de doses, identificar se o paciente tem alergia a algum daqueles medicamentos ou se existe risco de interação medicamentosa

Farmacêutica utilizando a inteligência artificial No Harm. Créditos: Wander Veroni

“Só nesse processo, a NoHarm fez uma economia de 1,3 milhão de reais em um ano. Isso é extremamente impactante na Santa Casa. Recurso que a gente não gasta é recurso que conseguimos colocar no tratamento de uma pessoa”, destaca Bruno Nascimento, head de Inovação da Santa Casa BH e um dos responsáveis pelo Órix Lab. Segundo ele, são cerca de 8 mil pacientes por mês beneficiados pela ferramenta.

Além da NoHarm, a Santa Casa BH conta ainda com uma IA capaz de sugerir diagnósticos a partir do prontuário, atualizando a situação do paciente mesmo depois da internação. O hospital também está realizando testes de IA generativa em parceria com o Google, bem como desenvolvendo ferramentas internas que ajudem a administrar o bloco cirúrgico, que conta com 19 salas e é o maior de Minas Gerais. 

Para Bruno, uma equipe de Tecnologia da Informação capacitada é um dos pontos-chave para que iniciativas como essa deem certo. 

“Não é só instalar um programa e botar para rodar. Você precisa fazer conexões e integrar soluções. Os profissionais devem ser capacitados tanto para poder conectar quanto para auxiliar na identificação de desafios e soluções”, afirma.

 

Goiás: um estado inteiro integrado por inteligência artificial

Se uma equipe especializada é fundamental em um hospital, imagine em um estado inteiro. Em diversas Secretarias de Saúde, a equipe de TI está pulverizada. Em Goiás, não. Há uma superintendência só para isso, reunindo em torno de 150 pessoas dedicadas à tecnologia, inovação e saúde digital.

Em 2019, Goiás ocupava um dos piores lugares do Índice de Serviços Públicos Digitais da ABEP-TIC, a Associação Brasileira de Entidades Estaduais e Públicas de Tecnologia da Informação e Comunicação. Desde então, o estado cresceu na pesquisa e, em 2024, subiu para o 1° lugar.

O Meu PEP, sigla para Prontuário Eletrônico do Paciente, foi um dos responsáveis por essa evolução. Ele reúne em um só lugar todos os dados de exames, vacinas, consultas, internações e agendamentos realizados em qualquer uma das 31 unidades de saúde estaduais (entre hospitais, policlínicas e hemocentro). 

“O paciente consegue ver tudo isso dentro do prontuário dele. Isso ajuda a integrar os dados e reduzir desperdício. Melhora muito a assistência do paciente, porque a gente não precisa ficar repetindo exame. Ou o paciente às vezes esqueceu alguma informação, mas está no prontuário e, na hora que o médico acessa ali com a autorização dele, ele consegue ver aqueles dados e aprimorar a consulta. Otimiza muito o cuidado contínuo do paciente”, ilustra Rasível Santos, Secretário do Estado da Saúde de Goiás.

A partir desse banco de dados, foi possível ainda extrair um mapa de leitos de todos os hospitais estaduais goianos, facilitando com que o paciente seja internado em um leito adequado e já preparado para ele. Durante o aumento de casos de dengue no início do ano, a ferramenta permitiu verificar como estavam as ocupações dos leitos nos hospitais, bem como a supervisão do tempo médio de permanência dos pacientes e a utilização de recursos. Segundo o Secretário, isso facilitou muito o manejo da doença no estado. 

Outro caso aconteceu no Hospital São Pedro D’Alcântara, no centro de Goiás, que precisou ser evacuado após a elevação do Rio Vermelho em fevereiro de 2024. Com a ajuda do mapa de leitos, em apenas uma hora, todos os pacientes foram remanejados para outras unidades antes do hospital ser inundado. 

“Sem o sistema, a gente teria que ligar em cada um dos hospitais, perguntar para eles se tinha leito vago e ver se a gente ia poder remanejar o paciente ou não. Isso seria uma tragédia. Com o sistema, conseguimos em menos de uma hora realocar todos os pacientes. A hora que eu cheguei lá, a única coisa que eu tive que fazer foi organizar por ordem de prioridade a retirada dos pacientes e conseguir ambulâncias para transportá-los”, conta Rasível.

O estado de Goiás também trabalha com a Caren, a Inteligência Artificial contra a Mortalidade Infantil que usa tecnologias de ciência de dados para aprimorar a atenção no cuidado de recém-nascidos e reduzir as complicações no primeiro ano de vida; e a Susi, uma assistente virtual que responde perguntas sobre saúde a partir da base de dados da Revista Científica da Escola Estadual de Saúde Pública. A Susi, inclusive, venceu a categoria “Baseada em Inteligência Artificial” do Prêmio ABEP-TIC de Governo Digital 2024.

exemplo de uso da inteligência artificial na saúde pública
Assistente virtual Susi tira dúvidas sobre saúde através do chat. Créditos: Iron Braz

 

Perspectivas para o futuro da inteligência artificial no SUS

Para o Secretário de Goiás, o uso da inteligência artificial na rede pública é uma maneira de alcançar eficiência em um sistema com recursos escassos.

“Eu acho que um dos princípios mais difíceis do SUS é a equidade e a integralidade. Entregar tudo para todos o tempo todo em um sistema de saúde com financiamento inadequado é trazer o máximo de eficiência possível nas nossas entregas”, opina.

Essa também é a percepção de Paulo Magnus, presidente da MV, uma das maiores empresas de TI do Brasil e criadora do primeiro prontuário eletrônico certificado pela Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS). No evento MV Forum Experience 2024, em São Paulo, ele afirmou que integrar a rede pública em um país de proporções continentais ainda é um grande desafio.

“Você imagina o seguinte: o paciente vai numa UPA fazer um exame e depois vai em outro hospital. Esses exames não acompanham a pessoa, porque o prontuário não é único. Ele acaba perdendo muita energia, e muito recurso público é desperdiçado, por falta de integração de prontuário”, disse.

Paulo Magnus durante o MV Forum Experience 2024. Créditos: Divulgação/MV

No entanto, para o futuro, Paulo é otimista. Ele acredita que, em breve, seremos capazes de prever a própria saúde, identificando o momento exato em que precisaremos de um atendimento médico.

“Um grande benefício para a saúde das pessoas é ter esses dados totalmente integrados em todos os lugares por onde passa. O uso dos devices e dos wearables pegando os dados e levando para o prontuário vão permitir que a gente possa ter a saúde dentro de casa. Nós próprios seremos os cuidadores da nossa saúde”, completou.

Veja também: Inteligência Artificial: amiga ou inimiga da saúde?

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