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Como o racismo no trabalho impacta a saúde mental?

A discriminação racial pode potencializar o surgimento de doenças e síndromes que prejudicam a saúde psicológica, como ansiedade, depressão e burnout. 
Publicado em 20/09/2022
Revisado em 18/12/2022

A discriminação racial pode potencializar o surgimento de doenças e síndromes que prejudicam a saúde psicológica, como ansiedade, depressão e burnout. 

 

Uma pesquisa deste ano mostrou que o racismo é a principal forma de discriminação no trabalho em 75% das empresas brasileiras. Ao redor do mundo, 82% dos entrevistados afirmaram que já presenciaram algum tipo de discriminação nesse ambiente. Os dados demonstram a importância de entender os motivos da existência do racismo nos espaços de trabalho, os impactos para a saúde mental dos trabalhadores e como é possível identificar atitudes discriminatórias que podem acontecer com você ou com os seus colegas.

 

Mercado de trabalho e diversidade racial

O racismo pode acontecer até mesmo antes da contratação. O Movimento Potências Negras informa que 63% das mulheres negras já passaram por situações de discriminação em processos seletivos. Outra informação importante é a diferença salarial. A última edição da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios mostra que a remuneração de trabalhadores negros é, em média, 45% menor do que a dos funcionários brancos.

Arthur Lima é fundador da plataforma AfroSaúde e estuda a saúde da população negra. Para ele, os dados mencionados refletem a construção do país sustentada pelo racismo:

“Toda a base do mundo do trabalho que vivemos hoje foi construída por um perfil específico: os homens brancos. As discriminações geralmente começam nos processos seletivos, onde as características das pessoas negras são apontadas como não pertencentes a determinado lugar: seja o cabelo crespo, os dreads, as tranças ou simplesmente porque é um corpo preto adentrando aquele espaço. E as violências permanecem com as invalidações e os silenciamentos”.

Brancos ocupam cerca de 90% dos cargos de gerência das 500 maiores empresas do Brasil, de acordo com o Instituto Ethos. Heitor Marques Santos, analista de desenvolvimento de pessoas na EmpregueAfro, avalia que o racismo estrutural é o principal motivo para a manutenção das desigualdades também no mercado de trabalho:

“A falta de representatividade — não só na liderança, mas também no quadro de colaboradores — leva a consequências negativas nos espaços de relacionamento. Recebemos denúncias de piadas e microagressões racistas referentes aos traços negroides e religiões de matriz africana. Outro ponto são estigmas atribuídos sobre as pessoas negras da equipe; é comum atribuírem às pessoas negras o rótulo de arrogantes quando não são subservientes”.

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Como o racismo afeta a saúde mental dos trabalhadores

A discriminação racial é reconhecida como potencializadora do surgimento de doenças e síndromes que prejudicam a saúde psicológica, como ansiedade, depressão e burnout. Arthur Lima informa que as consequências da exposição ao racismo podem ser notadas de forma imediata ou ao longo dos anos:

As principais consequências de fato estão relacionadas à saúde mental. As chances de uma pessoa desenvolver quadros mais severos de ansiedade e depressão são grandes por conta do impacto da violência sofrida e por medo de aquilo se repetir, o que deixará o indivíduo em constante estado de alerta no trabalho”, informa. O pesquisador questiona a falta de segurança nas empresas: “Se o ambiente de trabalho também é perigoso, como podemos viver e de fato ser quem nós somos no mundo?”.

O burnout, distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico provocados por condições de trabalho desgastantes, foi reconhecido no início de 2022 como uma doença ocupacional. “Os sintomas mais frequentes são pensamentos negativos, dor de cabeça, insônia, dificuldade para se concentrar em qualquer atividade, lapsos de memória, pessimismo generalizado e sensação de fracasso e desesperança”, define Heitor Santos. 

O psicólogo acrescenta que a tentativa de adequação aos ambientes com maioria de pessoas brancas gera uma sobrecarga prejudicial à saúde mental dos profissionais negros. O impacto do racismo no dia a dia dos trabalhadores pode ser observado com algumas ações:

  • Autocríticas excessivas sobre a sua performance e resultados;
  • Comparações frequentes com outras pessoas;
  • Autossabotagem por medo de resultados não satisfatórios.

A psicóloga Luísa Parreira analisa que a sociedade brasileira coloca negros em diversas situações de desvantagens em relação às pessoas brancas: salários, oportunidades, violência, autoestima. Tudo isso impacta a saúde mental em várias esferas da vida que vão além do trabalho. É difícil para muitas pessoas negras identificarem as situações de racismo justamente porque essa opressão tem mudado e criado novas formas:

“É muito comum a gente ver pessoas negras dizendo: eu sinto algum desconforto, incômodo em um espaço ou em alguma relação, mas não sei dizer exatamente onde está o problema. Mas a relação está tensa, o ambiente está tenso. Elas trazem para si a dúvida”, explica. 

Mesmo que a pessoa não tenha passado por alguma situação de racismo, ver colegas e até pessoas desconhecidas serem afetadas por isso também gera grande sofrimento, sensação de insegurança e medo, e impacta diretamente a saúde mental. E isso tem nome: trauma vicário, que é quando você não sofreu diretamente uma violência mas testemunhou alguém que passou por ela. 

Veja também: O que fazer ao ser vítima de racismo durante um atendimento médico?

 

Sinais do racismo no ambiente de trabalho

A psicóloga Mayara Gonçalves, especialista em gestão de recursos humanos, e Davi Akintolá, jornalista e estudioso das relações raciais, elaboraram um pequeno guia para identificar o racismo no ambiente corporativo. Eles afirmam que é possível fazer o exercício de reconhecer estas atitudes a partir da própria experiência ou observando o tratamento dado aos colegas brancos e negros.

  • Descredibilização: o questionamento não vem em relação ao trabalho, mas sim em relação à pessoa. O ataque é pessoal.
  • Policiamento de tom: o que você diz é muito importante, mas não pode ser dito “desta forma”.
  • Apagamento: você tem espaço para falar, mas, após a sua fala, todas as pessoas fazem silêncio e mudam de assunto.
  • Salvacionismo branco: a exigência de uma gratidão despropositada, como se a sua competência e o seu trabalho não justificassem a sua permanência e o seu salário.
  • Dois pesos e duas medidas: a régua da tolerância ao erro diminui. Os requisitos para promoção aumentam.
  • Reconhecimento vazio: você é incrível. Mas sem aumento, sem promoção, sem avanço na carreira.
  • Sua entrega nunca é suficiente: nem mesmo quando alcança a meta. Nesse caso, não alcançou como deveria.
  • Inclusão simbólica: ser o único naquele espaço. Isolamento dos seus pares.
  • Esvaziamento da posição: quando finalmente você se senta na cadeira de liderança, o prestígio, o respeito, a autonomia e a autoridade não vêm junto.

Assim, fica o questionamento: o que pode ser feito para mudar essa realidade? Heitor Santos sugere que o antirracismo e a diversidade devem ser promovidos pela construção de processos seletivos mais inclusivos, mudança de cultura na empresa e ações que vão garantir a permanência de pessoas negras.

E o compromisso pelo fim do racismo no ambiente de trabalho deve ser preocupação também das pessoas brancas, de acordo com Santos. O psicólogo orienta as medidas que devem ser tomadas ao presenciar uma injúria racial ou situação de racismo:

“É importante acionar os canais de denúncia da organização e o setor de recursos humanos, mesmo que de forma anônima. Por vezes, pessoas negras se sentem inseguras e sozinhas para agir. Angela Davis (filósofa norte-americana) diz que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. E caso a denúncia siga fora do ambiente corporativo, é possível obter reparações e indenizações”, explica. 

 

Suicídio entre os jovens negros

Setembro Amarelo é o mês dedicado à conscientização da saúde mental e prevenção ao suicídio. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra — publicada em 2009 pelo Ministério da Saúde — reconhece que o racismo é um problema que dificulta o acesso aos serviços de saúde e também é um fator de agravamento tanto da saúde física quanto da mental. 

No Brasil, as taxas de suicídio entre a população negra vêm aumentando especialmente entre os adolescentes. Uma pesquisa do Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília analisou os dados de suicídio de 2012 a 2016 na base da dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e concluiu que:

  • Em 2016, o risco de suicídio foi 45% maior em adolescentes e jovens negros comparados aos brancos;
  • No mesmo ano, entre as mulheres adolescentes e jovens, o risco de suicídio foi 20% maior que entre brancas;
  • Adolescentes (10 a 19 anos) negros apresentaram um risco 67% maior de suicídio.

Parreira informa que o suicídio é um fenômeno multideterminado. Ou seja, não é determinado por apenas um motivo, e nenhum suicídio é igual ao outro. Ao mesmo tempo, a psicóloga informa que é possível analisar esse fenômeno de forma coletiva, uma vez que os números mostram que os jovens negros estão sofrendo mais com esse problema:

“Coletivamente falando, por que os jovens negros têm mais chances de suicídio? Vivem em condição de maior vulnerabilidade, a exclusão é muito grande. O mundo está dizendo: você não é bem-vindo, não haverá trabalho nem segurança, você não pode sair de casa, você vai tomar baculejo toda vez. O suicídio entre jovens negros é mais que uma questão individual”, conclui a psicóloga Parreira.

 

Sobre o autor: Jhonatan Dias é jornalista independente e colabora com o Portal Drauzio Varella. Escreve principalmente sobre pesquisas em saúde, tecnologias e bem-estar.

Conteúdo desenvolvido em parceria com a Afrosaúde

Veja também: Como ajudar uma pessoa que está pensando em suicídio?

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