Dificuldade para interagir com os colegas, problemas no aprendizado e baixa autoestima são alguns dos impactos psicológicos da obesidade infantil.
Uma em cada 10 crianças brasileiras com mais de 5 anos está com sobrepeso. Entre elas, 3,1 milhões têm obesidade. As consequências da obesidade infantil são conhecidas: maior risco de desenvolver diabetes tipo 2, hipertensão, níveis elevados de colesterol, problemas ortopédicos, entre outras comorbidades. Mas há ainda um outro efeito, talvez até mais persistente, que costuma ficar em segundo plano: os prejuízos à saúde mental.
Crianças com obesidade sofrem preconceito desde muito cedo
“Na infância, o processo de socialização é um agente primordial. É no contexto escolar que acontecem as primeiras interações com pessoas de fora do núcleo familiar, em que a criança estende seus laços sociais com colegas de classe, amigos e professores”, destaca a psicóloga Mileny Violante, especialista em transtornos alimentares pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
É também nesse momento que aparecem as diferentes percepções sobre a criança que está acima do peso.
A estudante Júlia Lopes, hoje com 21 anos, conta que sempre foi uma criança grande. A obesidade sempre foi um problema na família, por isso, os pais e familiares nunca a trataram de forma diferente por conta do seu peso. Nem mesmo quando os hábitos desregulados de alimentação e a falta de exercícios físicos a levaram a desenvolver obesidade infantil.
Foi na escola que ela começou a perceber algumas atitudes estranhas e ouvir comentários incômodos.
“Diretamente, ninguém me tratava diferente. Mas quando a gente pensa e olha para trás, eu lembro de olhares na aula de Educação Física, por exemplo. Como quem diz: ‘mas você vai conseguir fazer isso? Será que você tem essa capacidade, por causa do seu tamanho?’”, relata.
Certa vez, quando Júlia foi em um piquenique promovido pela escola, a cadeira de plástico em que ela tentou se sentar quebrou. Na hora, um colega de sala começou a rir. Mesmo sem ele dizer nada, a estudante se sentiu muito incomodada. “Não foi um comentário. Mas essa risada, essa zoação com a minha cara…”, diz.
A psicóloga Mileny afirma que, dependendo da forma como a situação for conduzida dentro da escola, a criança pode sofrer preconceito, exclusão ou até mesmo bullying. Alguns estudos mostram que a discriminação começa a partir dos 2 anos de idade, muitas vezes evoluindo para provocações, intimidações, estereotipagens e marginalização.
Como o preconceito com crianças com obesidade afeta as interações sociais?
Essa forma de tratamento impacta diretamente na saúde mental da criança, a começar pelo comprometimento da socialização.
Júlia sempre foi uma criança mais introvertida, mas a obesidade acabou agravando essa característica. “Eu não me sentia confortável em fazer coisas que, na teoria, eram normais. Se todo mundo queria brincar de pega-pega, eu não brincava, porque não tinha fôlego para correr muito. No balé, todas as menininhas conseguiam fazer coisas diferentes, como espacatos, e eu não conseguia. Então eu ficava mais quieta no meu canto”, lembra.
A fim de se proteger de atitudes ou comentários negativos, a criança com obesidade infantil busca lugares seguros, como a própria casa, onde pratica menos brincadeiras ativas e se torna mais sedentária.
“O retraimento pode ainda aumentar a tendência a comer demais, agravando a obesidade e reduzindo a qualidade de vida”, ressalta Mileny.
A longo prazo, a criança pode se tornar um adulto com a autoconfiança abalada e uma timidez excessiva, prejudicando-a tanto no âmbito social quanto no âmbito profissional.
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Como a obesidade infantil interfere no aprendizado?
A exclusão também tem efeitos na evolução do aprendizado infantil. Crianças com sobrepeso ou obesidade têm quatro vezes mais probabilidade de desenvolver problemas de aprendizado em relação àquelas com peso ideal para a idade. Tanto pela dificuldade de se sentirem confiantes dentro do espaço escolar quanto pela distinção sofrida na hora de fazer as atividades.
“Nas atividades que exigem agilidade ou na participação em brincadeiras e esportes, geralmente a criança se isola ou é excluída por ser considerada mais lenta”, afirma Mileny.
Essa situação pode provocar atrasos no desenvolvimento, além de baixa autoestima, baixa autoconfiança e um sentimento constante de menos valia.
“Hoje, eu não acredito que eu seja capaz de realizar certas atividades por eu ter sido uma criança obesa e ter escutado muito que não conseguiria realizá-las quando era menor. Correr na esteira, por exemplo, é uma coisa que até hoje eu acho que eu não sou nem um pouco capaz. Porque quando eu era pequena, eu não conseguia correr a quadra na aula de educação Ffsica”, afirma Júlia.
Obesidade infantil x autoestima
Essa percepção inadequada das próprias capacidades não é o único aspecto afetado da autoestima. Para a maior parte das crianças com obesidade, a autoestima fica fragilizada por muitos e muitos anos ao longo da adolescência e até da vida adulta.
“É necessário observar como a criança se vê, como ela percebe a sua aparência física. A imagem corporal é um componente importante, porque a sua distorção e a dificuldade de percepção do seu mundo interior podem conduzir a sérios distúrbios alimentares na adolescência, como anorexia, bulimia ou compulsão alimentar”, alerta a psicóloga.
Os transtornos emocionais também estão ligados à obesidade, como depressão, ansiedade e os sentimentos excessivos de tristeza, agressividade e irritabilidade.
Tudo isso fica muito intensificado pela comparação com a magreza dos amigos e a exposição a mídias que exacerbam a busca pelo “corpo perfeito”, dietas milagrosas e medicamentos promissores, causando frustração e desespero em alcançar um padrão inexistente. Júlia foi muito afetada por todos esses estereótipos irreais quando começou a usar as redes sociais.
“São coisas que eu não percebia quando era menor, mas que se mostraram quando estava com os meus 15 anos. Eu lembro que quando comecei a usar mais o Instagram, eu via meninas da minha idade, como a Jade Picon, com um corpo escultural. Ela sempre foi magra, linda, com uma pele ótima. Eu tinha muita acne, nunca fui magrela, nunca tive barriga chapada. Aí eu pensava: ‘Poxa, a gente tem exatamente a mesma idade. O que deu errado em mim que não deu nela?’”, ela se perguntava.
Ao longo de muito tempo, Júlia chorava por ter que comer, por não conseguir manter uma rotina saudável e por não ter motivação para ir à academia. Ela chorava ao se olhar no espelho, porque não gostava do que via.
“Eu ficava me culpando por não ser daquele determinado padrão. E tudo influenciado por coisas e experiências que eu tive quando era menor. Hoje em dia, estou muito melhor, só sigo pessoas que realmente me inspiram e contribuem para a minha aceitação. Mas ainda tenho meus dias ruins que eu olho no espelho e odeio tudo”, desabafa.
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Qual é o papel dos pais na saúde mental das crianças com obesidade?
No caso de Júlia, como a tendência a ganhar peso era comum na família, todos os seus parentes tratavam a questão com naturalidade. No entanto, essa não é a realidade de muitas crianças, que, além da autocobrança, ainda sofrem com a insatisfação dos pais a respeito do peso dos filhos.
Nesse sentido, uma boa comunicação entre pais e filhos é essencial para proteger a autoestima das crianças e incentivar a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis.
“Alguns comportamentos precisam ser ressignificados, focando no indivíduo e não no corpo. Por exemplo, no lugar de dizer ‘nossa, que bom que você perdeu peso’, diga ‘estou muito feliz em te ver’. A criança precisa receber estímulos positivos e ser valorizada por cada conquista”, destaca a psicóloga.
Dizer que a criança é preguiçosa, concentrar-se nos excessos ou chamar a atenção para as doenças que ela poderá adquirir com o tempo podem acabar gerando sentimento de culpa e ter o efeito contrário.
Segundo Mileny, o melhor caminho é a família se unir em torno de um mesmo objetivo: uma boa saúde física e mental para todos. Para a reestruturação da vida alimentar da criança, os pais podem apostar nas seguintes estratégias:
- trazer à mesa alimentos mais saudáveis;
- fazer refeições em família;
- não permitir intervenções externas que causem distração na hora de comer;
- praticar atividades físicas em grupo;
- lembrar que a criança também tem sentimentos, emoções e vontades;
- manter o diálogo sobre o peso de forma aberta e respeitosa;
- e buscar ajuda de profissionais especializados.
Uma equipe multidisciplinar, que inclua psicólogos, nutricionistas comportamentais, pediatras e, se necessário, psiquiatras, pode ajudar nesse momento. Os professores e membros da comunidade escolar também devem se fazer presentes, promovendo, por exemplo, programas psicossociais de inclusão das crianças com obesidade através de atividades em conjunto ou que abordem como ter uma alimentação mais equilibrada.
“O tratamento da obesidade infantil é árduo e os pais precisam participar ativamente de todas as mudanças, que não ocorrem de forma rápida. É um processo que exige paciência e um acompanhamento constante”, finaliza Mileny.
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