Crime continuado

Para ocupar o vazio que o sucesso das campanhas de combate ao fumo obtiveram no país, as indústrias tabagistas investiram no desenvolvimento do cigarro eletrônico. Leia no artigo do dr. Drauzio Varella.

close em mulher segurando cigarros convencionais em uma mão e cigarro eletrônico em outra

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Publicado em: 6 de novembro de 2023

Revisado em: 6 de novembro de 2023

O cigarro eletrônico foi lançado com o pretexto de que seria indicado para fumantes interessados em vencer a dependência de nicotina. No entanto, é mais uma estratégia da indústria do fumo para disseminar a dependência da nicotina. Leia no artigo do dr. Drauzio.

 

Descontada a escravidão, o cigarro foi o crime mais perverso da história do capitalismo internacional.

Se compararmos as mortes causadas por esses dois crimes abjetos, veremos que a indústria do fumo matou mais gente nos últimos cem anos do que a escravidão o fez em toda a história da humanidade.

Fumar encurta a duração da vida: em média, dez anos se for mulher e 12 anos se for homem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), neste século 21 o cigarro provocará cerca de 800 milhões de óbitos.

Veja também: 21 passos para largar o cigarro

No decorrer do século passado, a indústria do fumo investiu bilhões de dólares em campanhas publicitárias ao redor do mundo para associar o cigarro às práticas esportivas, ao sucesso profissional, à beleza das mulheres e ao charme dos homens ricos. Com essa estratégia traiçoeira, subornos e um lobby político milionário, corrompeu autoridades e calou a mídia. Qualquer notícia, matéria ou comentário que mencionasse um problema de saúde causado pelo fumo era punido com retaliação financeira.

A ciência provou a associação entre cigarro e câncer ainda nos anos 1950. A pressão das companhias, no entanto, impediu que essa informação fosse veiculada pela imprensa por mais de três décadas.

Quando o mundo se deu conta das inúmeras doenças ligadas ao fumo e dos custos para os sistemas de saúde, diversos países iniciaram campanhas educativas e criaram leis para proibir a publicidade pelos meios de comunicação de massa.

Embora anos mais tarde do que os países industrializados, o Brasil adotou uma série de medidas de combate ao fumo, consideradas exemplares pelos especialistas da OMS. Como consequência, a prevalência de adultos fumantes em nosso país caiu para menos de 10%. Hoje, fumamos menos do que os norte-americanos e do que em todos os países da Europa.

Atenta às transformações sociais que levaram à diminuição do número de fumantes e às perdas provocadas pelas mortes precoces dos consumidores, a indústria criou o cigarro eletrônico. Não fiquei surpreso; mais de 30 anos frequentando cadeias me ensinaram a não subestimar a perversidade do mundo do crime.

Há diversos produtos no mercado, mas todos dispõem de quatro componentes principais: um reservatório, um dispositivo de aquecimento, uma bateria e o bocal para inalar. O reservatório contém uma solução líquida de nicotina e diversos aromas agradáveis ao paladar infantil: chocolate, maçã, framboesa, além de mentol, para dar sensação de frescor.

Os eletrônicos foram lançados com o pretexto de que seriam indicados para fumantes interessados em vencer a dependência de nicotina. Veja se faz sentido, prezado leitor: uma indústria que acumulou lucros astronômicos com a venda de cigarros para dependentes de nicotina, fabrica um dispositivo para inalar nicotina com a finalidade de reduzir o número de fumantes. Haja ingenuidade para acreditar nessa gente.

Tal ação jamais foi comprovada em estudos científicos. Em compensação, o sucesso de vendas para o público infanto-juvenil foi avassalador. A apresentação na forma de pen drives e canetas e a crença de que se tratava de uma versão moderna do cigarro, livre do mau cheiro e dos malefícios associados a ele, provocaram uma explosão no consumo.

As crianças e os adolescentes de hoje fumam os eletrônicos – como eu e os do meu tempo fumávamos os cigarros convencionais – sem ter ideia do mal que fazem. Para eles, como para nós, é apenas uma fumaça inócua que nos ajudava a parecer adultos.

Acontece que os eletrônicos contêm doses altas de nicotina, droga que provoca a mais escravizadora das dependências químicas. Já disse várias vezes nesta coluna que é mais fácil largar do crack do que da nicotina, como aprendi nas cadeias. Crianças e adolescentes que começam a fumar a nicotina presente nos eletrônicos não conseguem parar.

O esforço de décadas de combate ao fumo está sendo atirado no lixo: criamos uma nova geração de dependentes de nicotina que não fumaria cigarros convencionais.

Neste momento, a indústria movimenta seu lobby de aluguel para que a Anvisa aprove os eletrônicos. Com a desculpa de trazer para o controle das autoridades sanitárias a qualidade dos produtos nocivos que comercializam, o que pretendem é conseguir autorização da agência para disseminar a dependência de nicotina no meio da criançada.

Exatamente o mesmo crime continuado cometido contra a minha e as gerações que me antecederam.

Veja também: Quais os efeitos do cigarro eletrônico no organismo?

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