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Alimentação

Você conhece o Guia Alimentar para a População Brasileira?

Publicado em 17/04/2024
Revisado em 20/09/2024

Criado em 2006 e reeditado em 2014, o guia é referência mundial em termos de educação alimentar e políticas públicas.

 

A desigualdade no Brasil é tão profunda que o país só saiu do Mapa da Fome em 2014 e, sem as devidas manutenções e atenções públicas, acabou voltando em 2022. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) coletados neste mesmo ano e publicados no relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” (SOFI), o Brasil tinha cerca de 70 milhões de pessoas em insegurança alimentar moderada, que precisavam reduzir qualidade e/ou quantidade de alimentos, e 21 milhões sem ter o que comer todos os dias.

No entanto, de acordo com estudo recente feito pelo Instituto Fome Zero, a retomada de programas federais como o Bolsa Família conseguiu tirar cerca de 13 milhões de pessoas da insegurança alimentar grave ainda em 2023. A atual meta é tirar o Brasil do Mapa da Fome até 2030.

Uma das ferramentas tidas por especialistas como fundamentais para a criação e manutenção das políticas públicas na luta contra a fome é o Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB). “Em sua primeira edição, lançada em 2006, o GAPB apresentou uma abordagem focada em recomendações baseadas na composição nutricional e em porções de alimentos. No entanto, diante da necessidade de consonância dessas diretrizes com novas evidências científicas, o Ministério da Saúde iniciou em 2011 o processo de atualização do guia, que foi publicado em 2014. O processo de revisão para a 2ª edição foi realizado em diferentes etapas, com direito a consulta pública e reuniões de escuta que possibilitaram a participação de pesquisadoras/es, sociedade civil organizada e setor privado”, explica Kelly Alves, atual coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde.

Patricia Jaime, que ocupou este cargo justamente no período de 2011 a 2014, lembra da diferença entre a primeira e segunda edição do guia. “O de 2006 foi muito importante para propor debates sobre alimentação e nutrição, mas tinha ainda uma abordagem limitada, centrada nos nutrientes, sem outras características do consumo alimentar que se associam com a saúde, como nível de processamento de alimentos, as combinações de alimentos (preparações culinárias ou refeições) e modos de comer (comer em comensalidade, acompanhado, por exemplo). Além disso, era um documento mais técnico, sentimos falta de algo mais didático”. Ele completa dizendo que “o guia lançado em 2014 é orientado cientificamente pela classificação NOVA de alimentos, desenvolvida por pesquisadores brasileiros e reconhecida internacionalmente pela ONU”.

Professora associada da Faculdade de Saúde Pública e integrante do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), ambos da Universidade de São Paulo (USP), Patricia considera a classificação NOVA como uma grande quebra de paradigmas em termos de educação alimentar. “É uma classificação que agrupa os alimentos segundo o nível de processamento: in natura ou minimamente processados (alimentos frescos ou com pouquíssimas transformações); ingredientes culinários processados (substâncias extraídas de alimentos in natura); processados (ações industriais simples, como adição de sal e açúcar); e ultraprocessados, alimentos submetidos a diversos processos industriais, como a fragmentação das substâncias (por exemplo, isolar proteínas) e modificações químicas (tal qual adição de conservantes e aditivos para alterar cor e sabor).”

Evitar ultraprocessados sempre que possível é a principal recomendação do Guia. “A dieta da população brasileira – arroz, feijão, mas não só, também as castanhas, o açaí, etc. – é naturalmente saudável. Ter um documento que potencialize os nossos hábitos alimentares, sendo indutor de políticas públicas e instrumento para a educação nutricional, é fundamental para uma sociedade mais saudável”, diz Patricia.

        Veja também: Entenda o perigo de consumir alimentos ultraprocessados

Tanto Patricia quanto Kelly também concordam que algumas descobertas do Guia são particularmente revolucionárias (mesmo que não sejam novidades em si): alimentação não é só ingestão de nutrientes; uma alimentação adequada e saudável é intrínseca a um sistema alimentar sustentável; os guias alimentares produzem mais autonomia nas escolhas dos indivíduos sobre como se alimentarem; os saberes vêm de diferentes lugares.

Mas é preciso estar atento aos ultraprocessados, pois a extensão e o propósito do processamento a que alimentos são submetidos determinam, por exemplo, outros atributos com potencial de aumentar o risco de obesidade e de várias outras doenças relacionadas à alimentação. “Em sua segunda edição, o guia contribui ainda mais para ampliar o acesso à informação sobre escolhas alimentares mais saudáveis, em uma linguagem que seja compreendida por todas as pessoas e que leve em conta os aspectos sociais, políticos e a cultura local”, explica Kelly.

Ela ainda acrescenta que “o Guia contribui também para a autonomia dos sujeitos nas escolhas alimentares; estimula novas reflexões sobre a relação das pessoas com os alimentos e a comida, na defesa de um sistema alimentar mais justo, equitativo, saudável, sustentável e solidário; mostra que a alimentação saudável não pode ser atribuída meramente a escolhas individuais e que muitos fatores de natureza física, econômica, política, cultural ou social podem influenciar nas escolhas alimentares dos indivíduos”.

O Guia Alimentar para a População Brasileira procura estimular a educação alimentar para indivíduos e famílias. Mas sua grande importância, de acordo com Kelly, é a de ser um instrumento “para orientar a prática dos profissionais de saúde, educação, assistência social, entre outros, além de subsidiar o processo de elaboração e implementação de políticas públicas sobre, por exemplo, alimentação escolar e enfrentamento da fome”.

Este é o uso do Guia que mais empolga Patricia Jaime, pois ela acredita que o documento deve mesmo ser um indutor de políticas públicas. “Municípios e estados podem utilizar o Guia, a exemplo da cidade do Rio de Janeiro, que proibiu o comércio de ultraprocessados nas escolas. Em âmbito federal, já tem orientado as políticas públicas de segurança alimentar, como demonstra o decreto assinado em março do Ministério do Desenvolvimento sobre a Cesta Básica que excluiu itens como biscoitos recheados e macarrões instantâneos. Além disso, reforçamos a importância de considerar o Guia no processo da Reforma Tributária, e tributar ultraprocessados.”

Como política pública, os ensinamentos do Guia podem alcançar muito mais pessoas e, mesmo dez anos após sua reedição, tudo segue muito atual, sobretudo porque as evidências que o embasam ficaram ainda mais cientificamente robustas. “Recentemente, um estudo feito por pesquisadores dos Estados Unidos, França, Irlanda e Austrália e publicado na revista científica “The BMJ” demonstrou que os ultraprocessados podem gerar mais de 30 agravos à saúde, incluindo morte precoce, depressão, diabetes e câncer. Além disso, políticas públicas inspiradas no documento – como é o caso da nova rotulagem [de produtos alimentícios] – já demonstram efeitos positivos: uma pesquisa apontou que 56% das pessoas perceberam o alerta nas embalagens e, destes, 46% desistiram da compra ou pretendem reduzir o consumo“, explica Patricia.

O Guia Alimentação da População Brasileira tem sido referência mundo afora. “O primeiro a usar a classificação NOVA foi o Brasil, depois vieram Uruguai, Equador, Peru, Costa Rica, Colômbia, Argentina, Chile e México. Há também países fora da América Latina que utilizam o conceito de alimentos ultraprocessados em suas recomendações alimentares populacionais, tais como Bélgica, Canadá e França”, finaliza Patricia.

        Assista: Rita Lobo explica porque comida ultraprocessada faz mal – DrauzioCast #214

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