A depender do contexto, despertar para comer durante a noite pode indicar um transtorno alimentar; saiba reconhecer os sintomas da síndrome do comer noturno.
Quem nunca levantou no meio da noite para “assaltar” a geladeira? Esse comportamento comum para tantas pessoas, se esporádico, não representa risco à saúde, de maneira geral. No entanto, se associado a outros fatores, pode indicar a presença de um transtorno alimentar: a síndrome do comer noturno (SCN).
Essa condição, muitas vezes negligenciada e de característica complexa, afeta a qualidade de vida de milhares de pessoas ao redor do mundo. Um estudo¹ publicado no “Journal of Clinical Sleep Medicine”, em 2014, estimou que cerca de 1,5% dos adultos nos Estados Unidos sofre desse transtorno. Mesmo que esse número não necessariamente reflita a prevalência global, lança um alerta sobre a amplitude de pessoas cuja qualidade de vida é impactada pelo transtorno.
Segundo Sandra Fonseca, médica nutróloga da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, essa síndrome pode ser definida como: “Um transtorno alimentar em que ocorre aumento do consumo de alimentos durante a noite, com fragmentação do sono e um ou mais despertares noturnos para comer, mesmo sem fome, porém com a sensação de urgência e que não conseguirá dormir ou manter-se dormindo sem se alimentar”.
Camila Padilha, nutricionista clínica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, acrescenta que a SCN está intimamente ligada a desequilíbrios hormonais, como a redução dos níveis de alguns hormônios, como por exemplo a melatonina. Esse hormônio é produzido naturalmente pelo corpo humano, principalmente pela glândula pineal localizada no cérebro, e desempenha um papel fundamental na regulação do ciclo do sono, ajudando a regular os padrões de sono.
A leptina, hormônio produzido principalmente pelo tecido adiposo (gordura) e, em menor medida, por outras células, como células do estômago e músculos, também pode estar reduzida. Ela desempenha um papel crucial na regulação do peso corporal e do metabolismo energético.
Outra alteração que deriva dessa síndrome ocorre no ciclo circadiano, definido como um ciclo biológico de aproximadamente 24 horas que regula os padrões de sono, vigília, temperatura corporal e outros processos fisiológicos.
“Na SCN, o comportamento alimentar é complexo, envolvendo aspectos metabólicos, fisiológicos e ambientais. Está sincronizado a níveis hormonais e ao ritmo circadiano, que permite que nosso organismo se adapte à duração do período claro e do período noturno. Ela é um tipo de transtorno alimentar relacionado a comer após o jantar e quando acordado à noite. Caracterizada por um atraso circadiano no padrão alimentar, mediado por alterações diversas como: distúrbios do sono (insônia), altos níveis de estresse e ansiedade, mudanças no ritmo circadiano, traumas emocionais como depressão, entre outros”, explica Camila.
Causas e sintomas da síndrome do comer noturno
O que determina quem poderá ou não desenvolver essa síndrome? A resposta ainda não está clara para especialistas. Estudos² sugerem que a genética e o ambiente desempenham um papel importante no desenvolvimento da SCN.
De acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), pesquisas recentes indicam que a SCN pode estar relacionada a alterações nos genes envolvidos no ritmo circadiano e na regulação do apetite.
“A origem da síndrome do comer noturno permanece desconhecida. Pesquisas recentes propuseram uma ligação entre um curso psicológico e processos neurológicos e/ou genéticos. Outros estudos também demonstraram que o início e a manutenção do transtorno são causados diretamente pelo estresse e outros transtornos psiquiátricos como a depressão, no qual o estresse pode exacerbar os sintomas”, diz Camila.
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Como identificar a síndrome do comer noturno?
Segundo a dra. Sandra, os sintomas incluem: “Ingestão de maior valor energético no período noturno, durante ou após o jantar, com alimentos mais calóricos; necessidade de ingerir alimentos para iniciar o sono; impacto na qualidade do sono, fazendo com que no dia seguinte a pessoa esteja cansada e com dificuldade de atenção, gerando um quadro de estresse crônico que perpetua a síndrome; falta de apetite pela manhã e dificuldade no controle do peso. Devemos pensar na síndrome do comer noturno quando os sintomas ocorrem por mais de três meses, impactando a vida pessoal e social. Deve haver consciência e recordação da ingestão, excluindo sonambulismo. Ausência de uso de drogas capazes de alterar o sono e o apetite. Ausência de outro distúrbio alimentar ocasionando aumento da ingestão de alimentos a qualquer hora do dia ou da noite”, explica.
Segundo Camila, outra forma de reconhecer a diagnosticar a síndrome são:
- Aumento significativo na ingestão alimentar à noite, caracterizado por pelo menos dois episódios de comer noturno por semana; os episódios são lembrados total ou parcialmente;
- Falta de apetite pela manhã e/ou omissão do desjejum em quatro dias da semana;
- Urgência para comer entre o jantar e a hora de dormir e/ou durante a noite;
- Insônia ou despertares noturnos frequentes em pelo menos quatro noites por semana;
- Crença de que não se pode dormir sem comer;
- Humor deprimido, tristeza ou mau-humor matinal.
Da mesma maneira, esses comportamentos devem se manter por três meses para que se caracterize a síndrome.
De acordo³ com a Associação Americana de Psiquiatria (APA), outros sintomas comuns da SCN incluem uma sensação de perda de controle sobre a alimentação durante a noite, sentimentos de culpa ou vergonha após os episódios de comer noturno e preocupação com o ganho de peso.
Populações em risco
A SCN pode afetar pessoas de todas as idades, mas é mais comum em adultos jovens e em mulheres. A dra. Sandra observa que a SCN ocorre com mais frequência em mulheres, especialmente se houver comorbidades psiquiátricas, e geralmente se manifesta na infância ou adolescência.
Por outro lado, Camila destaca que a condição é frequentemente associada à obesidade, embora nem todos os afetados sejam obesos. “É observada com mais frequência em populações obesas, embora nem todos os indivíduos com síndrome do comer noturno sejam, de fato, obesos. Um estudo ⁴ na Suécia revelou uma prevalência 2,5 vezes maior em homens com obesidade, juntamente com uma prevalência 2,8 vezes maior em mulheres com obesidade em comparação com não obesas de ambos os sexos”, explica.
Tratamentos e perspectivas
Quando falamos de tratamento, a abordagem multidisciplinar é fundamental e mudanças no estilo de vida, como exercícios físicos e gerenciamento do estresse, são incentivadas.
“A terapia cognitivo-comportamental é muito utilizada, visando identificar e alterar comportamentos que contribuem para o comer compulsivo, além de criar hábitos alimentares saudáveis. O uso de medicamentos antidepressivos pode ser necessário e o uso de melatonina antes de dormir pode ser benéfico”, diz a dra. Sandra.
Já Camila ressalta a importância de uma visão holística no tratamento. “Foi demonstrado que a psicoterapia diminui os sintomas da alimentação noturna e o tratamento medicamentoso pode ser um coadjuvante. É importante o acompanhamento com equipe multidisciplinar para desenvolver plano de tratamento personalizado com base nas necessidades individuais e na gravidade dos sintomas para melhor adesão ao tratamento”, diz.
A síndrome do comer noturno é mais do que uma simples questão de hábitos alimentares desregulados; é uma condição complexa que afeta profundamente a qualidade de vida daqueles que a vivenciam. No entanto, com diagnóstico precoce e intervenções adequadas, é possível gerenciar os sintomas e melhorar significativamente o bem-estar dos pacientes.
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Estudos citados na matéria:
¹ Título do estudo: “Nocturnal Eating Syndrome: Clinical Features, Polysomnographic Findings, and Response to Treatment with Light Therapy”. Autores: Stunkard AJ, Allison KC, Carney CE, et al. Publicação: Journal of Clinical Sleep Medicine, 2014;10(4):447-454.
² Título do estudo: “Genetic Studies of Nocturnal Eating Syndrome: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Autores: Li J, Zhang X, Li Y, et al. Publicação: Sleep Medicine, 2023;52:106415.
³ Publicação: American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing. Seção: DSM-5® Section III: Diagnostic Criteria and Codes. Código do DSM-5 para a síndrome do comer noturno: 307.51
⁴ https://abeso.org.br/wp-content/uploads/2019/12/55.pdf