Como foi viver durante a ditadura militar

Drauzio Varella

Drauzio Varella é médico cancerologista e escritor. Foi um dos pioneiros no tratamento da aids no Brasil. Entre seus livros de maior sucesso estão Estação Carandiru, Por um Fio e O Médico Doente.

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Vencedor do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog, o dr. Drauzio destaca a importância de proteger a democracia brasileira.

 

Em recohecimento a sua vasta contribuição em conhecimentos na área da saúde, o dr. Drauzio Varella recebeu o Prêmio Vladimir Herzog. A premiação recebe o nome do jornalista torturado e assassinado pela ditadura militar brasileira, após comparar voluntariamente para prestar esclarescimentos nas dependências do DOI-CODI.

O dr. Drauzio conta como era a opressão durante o regime e relembra uma vez em que foi convocado a se apresentar ao DOPS sem nenhuma justificativa.

Não pode assistir agora? Acompanhe a transcrição a seguir:

Esta semana eu recebi o Prêmio Vladimir Herzog. Fiquei muito feliz com isso. O Vladimir Herzog era o chefe de jornalismo da TV Cultura nos anos 70. E, um dia, ele recebeu uma carta pra se apresentar no Dops, em São Paulo. Ele não tinha nada a temer, não fazia parte da luta armada, de nada. Ele foi, se apresentou, horas mais tarde, ele foi dado como morto por ter se suicidado nas dependências do Dops. Teria se pendurado na janela e tava enforcado com o próprio cinto. A família conhecia bem ele, claro, achou que era um absurdo, os jornalistas também, foi todo mundo atrás e chegou à conclusão que ele tinha sido assassinado nas dependências do Dops. E, a partir daí, ele virou um baluarte em defesa da verdade, da imprensa e da importância dos jornalistas. Quer dizer, um homem totalmente inocente, assassinado pela ditadura militar nas dependências de um órgão público, como era o Dops.

Vou contar uma história pessoal. Nos anos 70, eu era professor de cursinho, eu era contra a ditadura, eu e muitos ou a maioria dos jovens eram contra a ditadura, achavam que aquilo era uma excrescência, que o Brasil tinha que ser um país democrático.

Um dia, um amigo me procura e diz: “Olha, Drauzio, eu acho que você deveria fugir porque você vai ser preso”. Esse é o problema das ditaduras, você está sempre sob ameaça. Como não existe lei, você pode ser preso a qualquer momento, não tem habeas corpus, não tem nada, não tem nem chance de entrar em contato com um advogado. Eu disse: “Mas por quê? Eu não tenho nenhuma participação em nenhum movimento político, eu nunca pertenci a nenhuma organização política, muito menos à luta armada”. E, depois, você faz o quê? Eu era menino, tinha, aí, 30 anos nessa época. “Vou fugir? Vou fugir, vão achar que eu tenho alguma coisa pra esconder e eu não tenho. E, depois, vou viver como, não é? Como é que eu mantenho a família? Como é que, enfim…”

Eu fiquei muito preocupado com isso, mas passaram-se duas, três semanas eu relaxei. “Ah, sabe, tamo todo mundo vivendo um tempo de paranoia.”  Passadas três ou quatros semanas, eu recebo um comunicado do Dops. Eu dava aula em cursinho e chegou no cursinho, não me entregaram ou ficou lá perdido. Quando me entregaram, já faltava um ou dois dias pra eu me apresentar. Eu até fiquei feliz porque, se tivessem me entregado isso uma semana, dez dias antes, eu teria passado esse tempo sem dormir.

Aí, passei esse um ou dois dias assustado, mas me apresentei. Cheguei lá na hora, fui ao Dops, me encaminharam pra uma sala. Nessa sala, tinha um militar com patentes, aqui, eu não sei qual era o cargo dele, entreguei o documento. Ele falou: “Não, pode sentar que o coronel já vai atender o senhor”. Eu fui e sentei e fiquei esperando e nada. O tempo foi passando, passando, passando. Quando tinha umas duas horas e meia ou três horas que eu tava esperando, eu voltei pra falar com ele. Falei: “Olha, ainda vai demorar muito?” “Não, não, não, o coronel já vai atender o senhor”. Não deu dois, três minutos, ele foi lá, não vi ele falar por telefone com ninguém, me pegou, me levou pra sala do coronel. “Ô, por que que esse cara me deixou esperando por tanto tempo assim, né?” Você já entra num clima ruim, você não tem o que esconder, mas dá sempre uma preocupação.

Aí, entrei, tinha um militar sentado. “Por favor, senta aí. Qual é o seu problema?” Eu falei: “Não, eu não tenho problema nenhum. Eu recebi um comunicado pra me apresentar e tô fazendo isso.” Era o mesmo comunicado que o Vladimir Herzog tinha recebido. Ele pegou, olhou, abriu um livro preto, assim, parecia esses livros de contabilidade antiga e ficou virando as páginas, tava cheio de nomes ali, anotados com caneta tinteiro. Olhou, levou um tempão e me disse: “Não, não há nenhum problema aqui com o senhor.” Eu falei: “Mas e por que que eu recebi, então, essa intimação?” Ele falou: “Ah, provavelmente, algum engano”. “Um engano?” Ele falou: “É, um engano. Aqui não tem nada”. “Então, posso ir embora?” “Claro, pode ir.”

Eu saí, nem apertei a mão dele pra ele não ver que eu tava com a mão gelada, né. Levantei, saí, atravessei a salinha, onde é a sala de espera ali e fui pra rua. Quando eu saí, eu falei: “Eles vão me sequestrar”. Porque era uma das artimanhas, nesse período ditatorial. Eles chamavam uma pessoa, a pessoa se apresentava, quando ela saía, ela era sequestrada, jogada dentro de um carro e levada pros centros de tortura. Isso era rotina porque dessa maneira os serviços de repressão ficavam protegidos. Falavam: “Não, ele veio aqui, foi embora. Se aconteceu alguma coisa com ele, foi na rua.” E eu saí, olhando pra todo mundo que vinha no sentido contrário, olhando pra trás, olhando pros carros que passavam e finalmente passou um táxi. Eu entrei no táxi rapidamente, dei o meu endereço, mas fiquei olhando pros carros em volta também. Eu devia estar tão assustado que o motorista do táxi falou: “O senhor tá com algum problema?” Eu falei: “Não, tá tudo bem”. Mas foi paranoia minha, não tinha ninguém me seguindo e ninguém me abordou.

Ditadura é assim, gente, a qualquer momento você pode ser preso, torturado e até desaparecer, tenha você culpa ou não. Com o Vladimir Herzog, foi assim. Um jornalista que não tinha nenhuma participação na luta contra a ditadura, que foi preso, torturado e assassinado nas dependências do Dops.

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