Mortalidade por lúpus no Brasil é a mesma de 20 anos atrás

Em comparação com a população geral, a mortalidade por lúpus no Brasil é maior entre pessoas mais jovens e permanece assim há 20 anos. Entenda por quê.

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Publicado em: 05/06/2024

Revisado em: 07/06/2024

Em comparação com a população geral, a mortalidade por lúpus no Brasil é maior entre pessoas mais jovens e permanece assim há 20 anos. Entenda por quê.

 

“Eu perdi a minha prima, porque ela não acreditava que poderia morrer devido às consequências do lúpus”, conta a jornalista Patrícia Fazan. A prima, Selma Santana, tinha 46 anos quando faleceu de infarto, uma das complicações mais comuns da doença.

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma condição autoimune crônica, em que o sistema imunológico ataca os tecidos saudáveis do corpo, provocando diversos sintomas, como fadiga, dor, lesões cutâneas e problemas nas articulações. No caso de Selma, os principais sinais eram as manchas vermelhas na pele e a artrose nas mãos, que deixava os dedos tortos e sem mobilidade. 

Ainda que seja uma doença debilitante capaz de levar à morte, há poucas estatísticas sobre o lúpus no Brasil. Uma pesquisa recente, de fevereiro de 2024, analisou o panorama da condição na população brasileira entre os anos 2000 e 2019 com base em dados do SUS. O cenário é crítico: a mortalidade entre pacientes com lúpus é maior do que a população em geral, e o número de óbitos permaneceu praticamente inalterado durante todo o período estudado.

 

Mortalidade estagnada

Mulheres entre 19 e 50 anos são as que mais morrem por lúpus no Brasil. Dos cerca de 74 mil pacientes que receberam o diagnóstico da doença entre 2000 e 2019, 89,9% eram do sexo feminino, sendo quase metade delas com idades entre 26 e 45 anos. Somente nesse período, foram 24.029 óbitos em decorrência da condição.

“O número de mortes por ano se mantém mais ou menos o mesmo. Não dá para saber se está melhorando, piorando ou estável. A gente não conseguiu fazer um risco de morte estandardizado, porque, pelos dados do SUS, há uma certa limitação para análise”, explica Odirlei Monticielo, reumatologista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos pesquisadores do estudo.

No entanto, um dado chama a atenção: os pacientes com lúpus morrem muito mais jovens quando comparados com a população geral. 

Na faixa dos 16 a 24 anos, por exemplo, a mortalidade pela doença chega a ser 19,2 vezes maior. Na população saudável, os óbitos são mais comuns em indivíduos com mais de 50 anos, mas, mesmo na terceira idade, a taxa de mortalidade por lúpus segue 1,5 vez maior.

Segundo o especialista, a morte precoce desses pacientes demonstra barreiras que vão desde o diagnóstico até o tratamento e a prevenção de complicações.

 

Principais causas da mortalidade por lúpus

Selma já convivia com o lúpus havia algum tempo quando começou a passar mal e sentir muita dor no peito. Desesperada, ela dirigiu para a casa da prima. Patrícia não estava lá, mas seu marido e seus pais a acolheram. A família chamou o SAMU, que a levou para o hospital mais próximo, mas já não havia o que fazer. No caminho, ela faleceu devido a uma parada cardíaca.

A fatalidade aconteceu durante a pandemia da covid-19. Segundo Patrícia, é possível que a prima estivesse infectada pelo vírus, que tende a causar quadros mais graves em pessoas com doenças autoimunes, mas não foram feitos testes que confirmassem a suspeita.

A teoria faz sentido: de acordo com o estudo, a principal causa de morte entre pessoas com lúpus são as infecções, seguido de complicações renais e cardiovasculares.

“São infecções no geral: respiratória, urinária, fúngica, de pele. A gente também tem a questão da tuberculose, que entra como doença infecciosa. E as doenças tropicais, como a dengue e outras que aumentam a mortalidade nessa população de pacientes mais vulneráveis”, elenca o dr. Odirlei.

Já quando pensamos em doenças cardiovasculares, há uma preocupação extra. Em países desenvolvidos, condições como infarto e derrame são bastante prevalentes na população em geral e ainda mais nas pessoas com lúpus. No Brasil, porém, essa diferença não é tão grande — provavelmente por conta da mortalidade precoce.

“Talvez os pacientes não estejam tendo tempo de vida suficiente para chegar lá na frente e desenvolver a doença cardiovascular”, sugere o reumatologista. “Vivemos em um país com alto grau de diferenças sociais e as condições do paciente certamente impactam nos desfechos relacionados à infecção, doença renal e doença cardiovascular”, afirma. 

Veja também: Quanto tempo temos para chegar ao hospital em casos de infarto?

 

Diagnóstico precoce de lúpus: a primeira barreira

Nesse sentido, entra outro problema: o atraso no diagnóstico. Essa é uma dificuldade mundial que se agrava em países com maior nível de desigualdade.

“O paciente tem dificuldade de chegar até mesmo à atenção primária. E, muitas vezes, não existem condições necessárias para definir a doença ou encaminhar esse paciente para o diagnóstico. O Sul e o Sudeste têm disponibilidade de profissionais, mas o Brasil é muito grande. Tem áreas com pouquíssimos reumatologistas. Então, para definir o diagnóstico de lúpus, a gente tem esse atraso”, diz o dr. Odirlei. 

De acordo com informações do Ministério da Saúde, atualmente existem cerca de 1.800 médicos reumatologistas no Brasil. A maioria deles está no Sudeste, com quase 700 apenas no estado de São Paulo. 

A distribuição de especialistas talvez explique porque o estudo encontrou os maiores números de mortalidade no Sudeste, enquanto Norte e Centro-Oeste tiveram índices mais baixos. Com mais reumatologistas na região, maior a chance de identificar mortes relacionadas ao lúpus.

Em todo o país, as estimativas são de que uma a cada 1.700 mulheres conviva com a doença. No entanto, existe um contingente de pessoas subdiagnosticadas, que, por não terem quadros muito graves, sofrem com lesões de pele, dor nas juntas e quedas de cabelo sem nunca chegar ao diagnóstico correto. 

“E o lúpus é uma doença onde o timing do diagnóstico é fundamental, porque pegando o quadro no início, você estabelece tratamento, modifica a história natural da doença e consegue limitar danos”, ressalta o pesquisador.

 

Tratamentos também estão estagnados

Mesmo com o diagnóstico, o paciente encara outro problema: a dificuldade de acesso aos tratamentos mais modernos para o lúpus. 

Atualmente, os glicocorticoides são os principais medicamentos disponíveis na rede pública para tratar a doença. No entanto, existem imunobiológicos com indicação na bula e aprovação para uso no Brasil que ainda não foram incluídos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), documentos que preconizam o tratamento de doenças no país.

“O micofenolato, por exemplo, é uma droga que a gente usa já há muito tempo no lúpus. Na literatura internacional, existe há mais de 20 anos. Mas nós só conseguimos acesso público há dois anos. E foi uma briga longa para conseguir”, pontua o dr. Odirlei.

Para adquirir medicamentos que não estão disponíveis no SUS, o paciente precisa recorrer à justiça, e nem todos têm tempo ou condições para tal. Na opinião do reumatologista, é necessário que os protocolos sejam atualizados com maior periodicidade.

“Claro, entra na questão de custo, né? Mas a gente precisa olhar a doença como um todo. Ela custa caro para o estado se a gente não cuidar. O paciente vai à diálise, precisa fazer uso de tecnologia avançada para substituição renal; muitas vezes, transplantes. Outros pacientes têm complicações graves que os tiram do mercado de trabalho. Então, esse custo deveria ser analisado de uma maneira mais global para a gente poder colocar na ponta do lápis e ver realmente quais tecnologias seriam interessantes serem incorporadas para oferecer benefícios aos pacientes”, opina.

Veja também: Por que o paciente com lúpus precisa tomar corticoides?

 

Pacientes precisam levar o tratamento do lúpus a sério

Da forma como está, a adesão dos próprios pacientes ao tratamento fica prejudicada. Os glicocorticoides são uma classe de medicamentos amplamente utilizados, em especial por serem remédios baratos e que funcionam no alívio dos sintomas durante as crises mais agudas. No entanto, a longo prazo, são várias as complicações que podem surgir.

“Eu acompanhei mais a minha prima na fase em que ela tinha que tomar muita cortisona. Ela ficava inchada, teve uma época que ficou obesa, chegando a uns 150 kg, mais ou menos. Depois ela começou a dosar melhor e conseguiu recuperar. Mas sempre teve problema com obesidade e reclamava muito disso”, lembra Patrícia.

Além do aumento de peso, o uso abusivo e prolongado de corticoides pode levar à hipertensão, diabetes, osteonecrose (morte de um segmento de osso), distúrbios da pele, hirsutismo (aumento da quantidade de pelos no corpo) e doenças cardiovasculares. Por isso, o tratamento busca, na medida do possível, substituir os corticoides por medicações com menor nível de toxicidade, como imunossupressores e terapia imunobiológica.

“Hoje, a gente usa corticoide para tentar controlar um quadro agudo, uma situação mais de curto prazo. Mas, na medida em que o paciente melhora, vamos baixando a dose para tentar tirar ao longo do tempo”, explica o dr. Odirlei.

Outro obstáculo são as notícias falsas. Segundo Patrícia, a própria Selma não levava a sério o fato de fazer parte do grupo mais vulnerável à covid-19, o que acarretava no abandono de medidas básicas de prevenção ao vírus, como uso de máscaras e respeito ao isolamento social.

Segundo o reumatologista, no caso do lúpus, existem ainda correntes que preconizam tratamentos sem comprovação científica, como soroterapia e algumas terapias de reposição, o que também tira o foco do paciente sobre os cuidados realmente necessários. 

 

Como avançar no tratamento do lúpus?

A desinformação e a falta de conhecimento sobre a doença são, portanto, os dois grandes empecilhos para os avanços no tratamento do lúpus. 

“Você tem que entender o problema para poder pensar em alguma resolução. É preciso ter estudos para saber como é o perfil da doença no Brasil, como os pacientes são impactados, o que podemos fazer para melhorar isso”, lembra o dr. Odirlei.

Investir em formação médica, oferecer acesso à população a profissionais capacitados para o diagnóstico, estimular políticas públicas para a difusão de conhecimento sobre o lúpus, atualizar os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e estruturar um sistema que possa dar assistência global no atendimento do paciente com lúpus são alguns dos caminhos possíveis, na visão do reumatologista.

“Todas as doenças crônicas deveriam ter uma assistência global. Não centrada só no médico, mas com uma equipe multidisciplinar acompanhando esse paciente. Essas doenças, muitas vezes, causam desfigurações e o paciente tem distúrbios psiquiátricos e psicológicos. Essa visão mais ampla do manejo da doença é muito importante. E a gente só consegue definir isso tendo informações”, destaca o especialista.

Na outra ponta, o dr. Odirlei ressalta que é importante empoderar o paciente. Quando ele tem acesso a informações de qualidade, ele é capaz de participar de discussões sobre a própria doença, entender o quadro e opinar nas decisões terapêuticas.

Após perder a prima para o lúpus, Patrícia deixa um recado para as pessoas que convivem com a doença:

“Elas precisam realmente dar importância ao tratamento, à prevenção, à vida, né? Porque não é brincadeira. Em uma doença autoimune, tem que ficar atento a tudo. Ter fé e esperança de que Deus é o dono de todas as coisas, mas que é preciso observar e não descuidar. Não achar que é bobagem, que nada vai acontecer. A gente sempre acha, mas todo mundo está sujeito a tudo”, indica.

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