A doença psicogênica de massa, nome oficial dado aos surtos coletivos, é conhecida desde a Idade Média
O dia 19 de maio de 2022 ficou marcado na história do sistema educacional do Recife, em Pernambuco. Naquela data, cerca de 40 estudantes de duas escolas diferentes apresentaram ao mesmo tempo sintomas como ansiedade, vômitos, desmaio, choro, tontura e falta de ar, em uma espécie de “surto coletivo”. Apesar de o caso ter sido assustador, como disseram os moradores locais na época, os bombeiros que prestaram atendimento verificaram que os sinais vitais dos alunos estavam estáveis.
O episódio, que ganhou repercussão em todo o Brasil, é um velho conhecido da ciência e tem um nome próprio na medicina: doença psicogênica de massa. Chamada antes de “histeria coletiva” – esse nome caiu em desuso -, a condição é caracterizada pela rápida propagação de sintomas em um determinado grupo sem uma causa orgânica definida.
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O psiquiatra, psicanalista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mário Eduardo Costa Pereira, conta que os surtos coletivos são reações em cadeia a determinados gatilhos, como ameaças, medos e pressões sociais. No caso das escolas do Recife, por exemplo, o estopim para a agitação em uma das unidades de ensino foi a prisão de um homem no local.
“A questão é como as pessoas respondem a algum gatilho. Imagine que entra um ladrão na escola, mas o professor e o aluno mais velho da classe ficam serenos. Nesse caso, a classe inteira tende a ficar tranquila. Mas se um bandido entra e há desespero total do professor e do aluno mais velho, a tendência é que todo mundo fique nervoso e exista contágio dos sintomas”, explicou.
Os conceitos-chave para entender o fenômeno, segundo o dr. Pereira, são a identificação, processo por meio do qual uma pessoa assimila aspectos de outra; o contágio, a tendência de um indivíduo ser ‘contaminado’ pelas emoções do outro; e a idealização, que é a “supervalorização do outro” associado a um “esgotamento recíproco de si mesmo”, conforme escreveu o pai da psicanálise, Sigmund Freud, em 1914.
Tipos de surtos coletivos
Na década de 1980, o psiquiatra britânico Simon Wesley, professor do King’s College London e um dos principais especialistas no tema, definiu dois tipos de doença psicogênica de massa: aguda e crônica. A primeira, escreveu no artigo “Histeria em massa: duas síndromes?”, publicado no periódico “Psychological Medicine”, é de curta duração, envolve ansiedade súbita e extrema após a percepção de uma falsa ameaça e normalmente desaparece dentro de 24 horas. O que ocorreu nas escolas do Recife se enquadraria nessa descrição.
Já o segundo tipo de surto coletivo, segundo Wesley, “é caracterizado pelo lento acúmulo de estresse reprimido, está confinado a um ambiente social intolerável e é caracterizado por dissociação, histrionismo (comportamento emocional que não parece sincero) e alterações na atividade psicomotora (tremores, espasmos e câimbras, por exemplo), geralmente persistindo por semanas ou meses”.
A história está repleta de casos com características típicas da segunda forma de surto coletivo. Talvez a situação mais assustadora seja a epidemia de dança em Estrasburgo, na França, em 1518. Naquele ano, uma mulher solitária saiu de casa e começou a dançar por vários dias. Dentro de semanas, centenas de pessoas se juntaram a ela e literalmente dançaram até morrer. Jornais e cronistas da época escreveram que 15 óbitos foram registrados todo o dia. O surto durou três meses.
Os pesquisadores por muitos anos tentaram entender o que causou o surto coletivo. A teoria mais aceita é que a dança mortal foi uma resposta da população às angústias daquela época, marcada por conflitos religiosos e sociais, problemas econômicos, fome e miséria. “Surtos coletivos são fenômenos que ficam no limite entre a psicopatologia, a sociologia e a política”, falou o dr. Pereira, da Unicamp.
Qualquer um pode ser afetado
Todas as pessoas estão suscetíveis a doenças psicogênicas de massa, independentemente do gênero e da idade, segundo a literatura médica. O mais comum, no entanto, é que os casos ocorram em grupos fechados, como alunos de uma escola, membros de uma determinada religião, trabalhadores da mesma empresa ou soldados de um grupamento militar.
Hoje em dia, de acordo com o dr. Pereira, os surtos são mais facilmente propagados por causa das redes sociais. “Com essa popularização das mídias sociais, é comum uma fake news ser compartilhada por várias pessoas e ser vista como verdade, como vimos ao longo da pandemia do novo coronavírus no caso da vacinação.”
No Brasil, um dos casos mais emblemáticos que mescla desinformação na internet e reações coletivas ocorreu no Acre, entre 2014 e 2017. Por causa de falsas informações sobre a vacina contra o HPV (papilomavírus humano), dezenas de jovens relataram sintomas como convulsões e desmaios que estariam associados à imunização. No início deste ano, o psiquiatra José Gallucci Neto, que atendeu vítimas do episódio, disse em entrevista a este Portal que o caso se tratava de uma doença psicogênica de massa, e não havia problema algum com os imunizantes.
Outros países também registraram surtos coletivos ligados à vacinação contra o HPV, como Colômbia, Estados Unidos, Dinamarca e Japão, segundo artigos publicados ao longo dos últimos anos.
As reações em massa, explicou o dr. Pereira, são potencialmente explosivas e as pessoas ao redor são facilmente afetadas. No entanto, falou, se o episódio estiver ocorrendo em um local pequeno, como uma escola, o ideal é tentar manter a tranquilidade e a calma. “Em um lugar menor é importante transmitir serenidade e ficar com a cabeça fria. Afinal, uma pessoa lúcida também tem um efeito contagiante.”
Sobre o autor: Lucas Gabriel Marins é jornalista e futuro biólogo. Tem interesse em assuntos relacionados à ciência, saúde e economia.