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Psiquiatria

Por que o Brasil vive uma epidemia de uso abusivo de zolpidem?

Publicado em 24/04/2024
Revisado em 20/09/2024

O medicamento tem alto potencial de dependência e sua suspensão abrupta pode gerar até convulsões.

 

O zolpidem, remédio usado para tratamento de insônia, chegou ao Brasil em meados da década de 1990. Naquela época, era vendido como uma solução mais rápida, eficiente e com menor potencial de abuso na comparação com os benzodiazepínicos, até então os mais usados no tratamento do distúrbio do sono. Após quase 30 anos, no entanto, o país se viu imerso naquilo que muitos médicos chamam de “epidemia da droga Z”. 

Em entrevista para esta reportagem, especialista relata casos de pacientes que se tornaram dependentes no medicamento e chegaram a tomar entre dez e 56 comprimidos por dia, muito mais do que o recomendado. De acordo com a bula, adultos com menos de 65 anos deveriam ingerir apenas um comprimido no dia, equivalente a 10 mg, sempre com acompanhamento médico. Em estudos, há relatos de pessoas que consomem doses ainda mais elevadas, entre 170 e 240 comprimidos ao longo de 24 horas.

O zolpidem pode viciar porque tem uma meia-vida curta, segundo o médico Roberto Ratzke, professor de psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e diretor clínico do Hospital Heidelberg, em Curitiba. A meia-vida se refere ao tempo que uma medicação demora para 50% de sua dose ser eliminada pelo organismo. “Quanto mais curto e mais rápido o efeito, menos tempo fica no corpo e mais vicia. É por isso que a cocaína e o crack viciam tanto”, diz. 

O remédio começa a induzir o sono entre 15 e 30 minutos após a ingestão. Por isso, a pessoa em tratamento deve tomá-lo momentos antes de dormir, próximo da cama. O efeito ocorre porque o medicamento se liga ao receptor GABA (Ácido gama-aminobutírico), principal neurotransmissor (mensageiro químico que transmite informações) inibitório do sistema nervoso central, causando o rebaixamento da consciência. O álcool também se conecta a esse mesmo neurotransmissor.

De acordo com o dr. Ratzke, o zolpidem deveria ser usado por períodos curtos de no máximo três ou quatro semanas, especificamente para a insônia. Em alguns casos mais graves da condição, explica, o tratamento poderia chegar a alguns meses, sempre com acompanhamento profissional. Mas as pessoas começaram a usar por períodos prolongados, gerando a dependência, e para outros fins diferentes da insônia. 

Como o medicamento também promove um efeito não desejado de alívio de ansiedade e bem-estar, muita gente começou a tomar o remédio antes de reuniões, apresentações e até como droga recreativa.  

        Veja também: É insônia ou ansiedade?

 

O ínicio do problema 

Parte do estopim do uso abusivo do zolpidem, segundo parte da comunidade médica nacional, foi a flexibilidade no acesso. Até o final da década de 1990, a droga integrava a lista de “remédios tarja preta” do Ministério da Saúde. Para conseguir comprá-la, os pacientes deveriam apresentar na farmácia uma receita azul, mais difícil de se conseguir. 

Em dezembro de 2001, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou o medicamento do grupo da “tarja preta” e estabeleceu que os indivíduos poderiam adquirir o medicamento com uma receita de controle especial, aquela emitida em duas vias, uma para paciente e outra para farmácia. Na prática, ela é menos rigorosa. 

Além disso, a patente do zolpidem – que foi liberado pelo Food and Drug Administration (FDA), órgão que aprova os medicamentos e tratamentos nos Estados Unidos, no início da década de 1990 – expirou em 2007. Como consequência, pelo menos dez empresas diferentes aqui no Brasil começaram a produzir genéricos do medicamento, o que gerou uma explosão na produção e nas vendas.

A Anvisa informou à reportagem que pouco mais de 13 milhões de caixas de zolpidem foram vendidas em 2018. Em 2019 e 2020, 18 milhões de caixas foram comercializadas em cada ano. A partir de 2021, o número anual de vendas se manteve acima dos 20 milhões. Em meados daquele ano, um levantamento da Consulta Remédios, plataforma que permite comparar preços, mostrou que o zolpidem foi o medicamento mais procurado durante a pandemia do novo coronavírus.

Para o dr. Ratzke, a entrada dos genéricos fez com que as empresas investissem pesado em propagandas com médicos e usuários, o que ajudou a aumentar o acesso. “Quase todos os laboratórios que têm zolpidem genérico e similares dão cartões de desconto para que a pessoa compre uma caixa e receba um cupom de desconto de 95% na segunda caixa, que sai por menos de cinco reais”, relata. 

 

Riscos do uso abusivo de zolpidem

Um dos possíveis efeitos colaterais do uso controlado de zolpidem é a amnésia anterógrada, um tipo de perda de memória que ocorre quando a pessoa não consegue se lembrar de acontecimentos recentes. Há relatos de pessoas que ligam para outras, comem, fazem compras pelo celular e até saem dirigindo sem perceber. No TikTok, há pelo menos 4.354 posts sobre efeitos colaterais com a hashtag zolpidem.

Quando usado em doses acima do recomendado, no entanto, os sintomas são mais graves, de acordo com o dr. Alexandre Pinto de Azevedo, médico psiquiatra do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) e membro da Associação Brasileira do Sono (ABS).

“O principal risco físico é a dependência da substância. Mas há outras repercussões como insônia rebote, prejuízo de atenção e concentração, tonturas e riscos de quedas, prejuízo nas habilidades profissionais e acadêmicas. Além disso, quando instalado um quadro de dependência, também podem ocorrer comportamentos inapropriados para conseguir a medicação, que é vendida oficialmente com retenção de receita”. 

Um estudo publicado em 2014 no “Journal of Addictive Diseases” relatou que, entre 2003 e 2010, na França, houve aumento de “prescrições suspeitas que possivelmente indicam abuso”, e o zolpidem foi o medicamento mais associado à falsificação de receitas.

        Veja também: Zolpidem pode causar apagão? O que você precisa saber antes de tomar o medicamento

 

Tratamento para a dependência

O comportamento de dependência pode se instalar quando o paciente experimenta sintomas físicos e psicológicos no momento em que tenta interromper o uso sem supervisão médica. Azevedo conta que é importante ressaltar, no entanto, que o remédio permanece como indicado no tratamento da insônia em todas as diretrizes de tratamento (nacional e internacional), desde que seguindo as orientações devidas.

Dependendo da quantidade usada diariamente, a maneira adequada de lidar com a dependência em zolpidem é por meio do internamento para desintoxicação, segundo o dr. Ratzke. Isso porque a descontinuação abrupta pode desencadear sintomas de abstinência, como tremores, sudorese, náusea, sensação de ansiedade e palpitações, além de convulsões. No hospital onde trabalha, três pacientes apresentaram episódios convulsivos, conforme relatado em estudo

“O risco é muito grande de você tirar no nível ambulatorial e a pessoa convulsionar. Então um paciente, por exemplo, que usa esses 1.700 miligramas por dia, não tem jeito de você tratar fora do hospital, entende? Teria que ser ou num hospital psiquiátrico, ou em um hospital clínico com suporte. O internamento para desintoxicação em geral dura 28 e 30 dias para dependências químicas”, explica o médico.

Durante o tratamento, segundo o especialista, o zolpidem é trocado inicialmente pelo diazepam, um benzodiazepínico de meia-vida longa (ou seja, fica mais tempo no corpo) e é mais fácil de retirar depois. O período para começar a vencer uma dependência, no entanto, é de três meses, conforme o Instituto Nacional de Abuso de Drogas (Nida, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. 

 

Quem é mais afetado?

A maioria dos casos de dependência descritos de zolpidem envolve pessoas do sexo feminino, normalmente com idade entre 35 e 50 anos, com comorbidades psiquiátricas associadas, como ansiedade e depressão. O fato de mulheres sofrerem mais com insônia pode estar relacionado à prevalência delas entre quem faz uso abusivo do medicamento. Segundo ABS, a insônia atinge 73 milhões de pessoas.

Um estudo da Fundação Nacional do Sono dos Estados Unidos de 2023 aponta que pessoas do sexo feminino apresentam mais distúrbios do sono do que os homens por causa dos hormônios. Sobrecarga gerada pelo excesso de trabalho, atividades domésticas e cuidados familiares também pode estar associada ao problema, segundo outro estudo do ano passado publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), focado em mulheres idosas.

O dr. Ratzke diz que outro grupo afetado pelo uso indevido são os profissionais de saúde. Como o remédio foi vendido como algo que não causava problemas, os médicos não somente passaram a prescrevê-lo bastante, mas também a tomá-lo. “O que a gente vê é muita dependência do zolpidem de médicos, farmacêuticos e enfermeiros, porque acabam tendo um acesso relativamente fácil e o remédio tem aquela ilusão de que não vicia.”

 

Como lidar com o problema? 

A prevenção do uso abusivo começa com a prescrição médica responsável, segundo o dr. Azevedo. “Realizando uma suficiente entrevista médica para avaliar as características individuais de cada paciente, além de um diagnóstico preciso do subtipo de insônia, adequa-se a indicação medicamentosa à apresentação clínica da insônia e pode-se reduzir muito o risco de dependência ou uso abusivo.”

Ele diz também que usualmente o zolpidem deve ser evitado em pacientes em tratamento psiquiátrico ainda não estabilizado, como em transtornos de humor e ansiedade, pessoas com transtorno de personalidade e com histórico de uso abusivo ou dependência de substâncias ilícitas ou ilícitas. “São indivíduos mais vulneráveis a utilizar a dose da medicação maior do que o proposto por estarem emocionalmente mais vulneráveis, pelas características outras de impulsividade ou mesmo pela tendência ao comportamento de abuso.”

O dr. Ratzke conta que, do ponto de vista regulatório, o ideal seria a Anvisa voltar a colocar o medicamento na lista de tarja preta. Além disso, opina, os laboratórios  que produzem genéricos deveriam acabar com a distribuição de “amostras quase grátis” do remédio. “Porque o fato de a pessoa ter que desembolsar o dinheiro para ir comprar já é um limitador. Se ela ganha de graça, já favorece muito o abuso.”

Questionada sobre a categoria do medicamento e o aumento dos casos de dependência, a Anvisa disse que o zolpidem já está em um grupo de controle que visa propiciar a vinculação estrita entre o acesso “à substância e sua necessidade terapêutica, sob a prescrição e orientação do profissional médico”.

A agência reguladora diz também que, como organismo competente para o aperfeiçoamento das medidas de controle, “detém em seu processo de trabalho contínuo a revisão de ações aplicáveis para que subsista essa correlação (acesso-necessidade)”. Além disso, informa estar “atenta a qualquer sinal de segurança que enseje medidas que visem minimizar riscos para a população brasileira”.

        Veja também: Zolpidem: como usar da forma correta?

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