Falta de um discurso único dos órgãos públicos, fake news e individualismo levam a população brasileira a encarar a covid-19 de formas extremamente opostas.
Enquanto algumas pessoas seguem à risca os protocolos de higiene e prevenção contra a covid-19, chegando até mesmo a desenvolver um certo medo de sair de casa e rever amigos e familiares, outras apenas negam o risco da pandemia e frequentam aglomerações sem máscaras, desrespeitando o distanciamento. Por que isso acontece?
Para Marina Pinheiro, professora da pós-graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), tamanha diferença tem a ver com a complexidade da pandemia.
“Quando a gente pensa em uma grande tragédia, como o rompimento de uma barragem, um terremoto ou um incêndio, há uma ameaça que atinge a todos de forma coletiva e homogênea: a lama, o prédio que desaba, o fogo. Já na pandemia da covid-19, a noção de risco ganha um contorno um pouco diferente”, afirma.
Segundo a psicóloga, o perigo é relativizado, já que as pessoas são afetadas de maneiras distintas, seja pelo nível de segurança do qual dispõem para sobreviver, como por exemplo, alguém que tem a oportunidade de ficar no home office e outra que precisa sair para trabalhar, ou pela forma como a doença se desenvolve em cada organismo, já que o vírus pode causar sintomas semelhantes aos de um resfriado ou até provocar a morte.
No Brasil, não houve orientação unificada
Em meio a essa relativização, os órgãos públicos brasileiros também não construíram, desde a chegada do Sars-CoV-2, um discurso único e homogêneo, causando divergências no cuidado com a vida.
Para pessoas em maior vulnerabilidade social, por exemplo, a pandemia tornou-se mais um risco entre os quais ela já se expunha diariamente, como altas taxas de violência, trabalhos informais, desemprego e acesso precário ao atendimento em saúde.
“É um cálculo que a pessoa nem sempre dispõe de todas as condições para realizar”, explica Marina. Sem uma orientação firme das instituições responsáveis por proteger a população e com a vasta disseminação de fake news sobre a pandemia, o indivíduo não tem certeza sobre o que é ou não uma ameaça, tentando mensurar o perigo somente com base nas próprias experiências.
“No momento em que não sabemos de nada, em que tudo é uma interrogação e, inclusive, em que tudo por ser muito relativo, o próprio corpo é utilizado como bússola na forma de lidar com a pandemia. A descrença e a desconfiança que estamos vivendo levam as pessoas a se arriscarem sem realmente conseguirem significar as ameaças que estão em jogo, para ela e para os outros. A lógica é reduzida à ideia de que ‘se eu pego ônibus todo dia para trabalhar e não tive a doença até agora, por que eu não posso ter o meu momento de lazer?’”, exemplifica a psicóloga.
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Fake news
Muito dessa desconfiança vem da chamada infodemia, que se espalhou pelo Brasil e pelo mundo nos últimos anos. A infodemia é marcada pelo excesso de informações, frequentemente falsas (fake news) e produzidas por fontes pouco confiáveis.
“As fake news são construídas para quê? Para gerar clamor social, abrandar a complexidade do que está acontecendo e demonizar aquilo que é considerado errado por quem a produz”, define Marina. Na situação atual, em que a pandemia se apresenta como uma questão bastante múltipla e complexa, as notícias falsas aproveitam-se da insegurança para se proliferar.
“Elas funcionam porque lidar com o complicado é angustiante. Saber não é um jardim das delícias. Então, elas atuam justamente nessa audiência pronta para acreditar em qualquer coisa que simplifique e dê soluções (não necessariamente verdadeiras) aos nossos problemas”, pontua.
De acordo com a psicóloga, esse bombardeio de informações faz com que seja difícil confiar em alguém, e é nesse momento em que as pessoas se entregam cegamente a uma causa, bandeira ou argumento – mesmo que completamente infundados.
Solidariedade x Individualismo
O confronto entre a reflexão sobre coletividade e a individualidade também é um dos fatores que podem explicar esse comportamento. “Vivemos em uma sociedade em que a meta é auto empreender, superar os nossos próprios esforços. O individualismo acaba virando o nosso modus operandi. E a pandemia desmascarou isso: o cuidado que eu tenho com o outro depende muito de como eu considero o cuidado comigo mesmo”, destaca.
Para Marina, a própria máscara, comprovadamente a melhor alternativa para nos proteger da covid-19, virou um símbolo de tensões em nossa sociedade. Ela mostra a diversidade de comportamentos que oscilam entre a solidariedade e o individualismo, o cuidado com o outro e consigo mesmo.
Como lidar com quem pensa tão diferente de mim?
Tamanha discrepância na forma de encarar a pandemia pode gerar discussões entre amigos e até brigas na família. Segundo Marina, o melhor caminho é o diálogo, mas sem nunca abrir mão do nosso autocuidado. “Isso não se negocia, é o valor da vida. Pode surgir a fake news que for, temos que sustentar a nossa posição e tentar gerar uma inquietação no outro. Surgiram tantas dúvidas sobre as vacinas e agora nós estamos vendo todo mundo se vacinar e os números da covid-19 caírem”, ressalta.
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