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Como lidar com o luto por suicídio?

Os tabus que envolvem o suicídio podem dificultar a vivência do luto para os sobreviventes. Saiba o que é possível fazer para seguir em frente. 
Publicado em 20/09/2023
Revisado em 20/09/2023

Os tabus que envolvem o suicídio podem dificultar a vivência do luto para os sobreviventes. Saiba o que é possível fazer para seguir em frente. 

 

Em 14 de março de 2017, Marina Guedes Máximo faleceu 20 dias depois de tentar tirar a própria vida. Foi naquela madrugada que a mãe, Terezinha Máximo, sentiu o peso do luto por suicídio.

Poucos meses antes, Marina, com 19 anos, havia sido diagnosticada com depressão e ansiedade. O diagnóstico, porém, não foi bem aceito: os remédios não faziam o efeito esperado e ela precisou trocar de psiquiatra algumas vezes. No início de 2017, ela já falava em suicídio e foi internada por três dias em um hospital psiquiátrico, passando depois para a internação domiciliar. A mãe conta que Marina dizia preferir morrer do que viver daquele jeito.

Em 22 de fevereiro do mesmo ano, a filha tentou o suicídio. Nos dias que passou hospitalizada, Marina voltou do coma e afirmou aos pais que não queria mais morrer. Terezinha viu nos olhos da filha o arrependimento após uma medida desesperada. No entanto, infelizmente, ela não resistiu. 

A mãe, então, se deparou com a dor do luto e uma infinidade de perguntas sem respostas.

 

“Como eu vou sobreviver sem a Marina?”

“Como eu vou sobreviver sem a Marina? Eu até falei essa palavra sem saber que quem perde alguém para o sucídio se torna um sobrevivente. Como eu vou voltar para a minha casa sem ela? Para que eu vou continuar a trabalhar? Qual é o sentido disso tudo?”, perguntava-se Terezinha logo após a morte da filha.

A sensação inicial era de que ela iria enlouquecer. Terezinha tinha que se lembrar do essencial para a sobrevivência, como comer, dormir e beber água. Parecia que não voltaria a se sentir um ser humano funcional, pois estava presa em um “universo” de muita dor e confusão.

“Depois da morte da Marina, eu fiquei achando que eu não fosse mais viver uma vida normal. Eu só pensava no assunto, não conseguia fazer as coisas direito. Eu tinha sentimentos que eu não sabia nem nomear na época. Mas no luto por suicídio, as pessoas se afastam. E as que ficam, tem essa coisa de querer tirar a dor de você de toda forma. Elas diziam: ‘não fala dela’, ‘não chora’. Eu me sentia invalidada”, relembra a mãe. 

Terezinha havia esbarrado em um ponto importante: o tabu que cerca o suicídio e as pessoas enlutadas por ele.

 

Luto por suicídio x luto por outras causas de morte 

Existem semelhanças e particularidades no luto por suicídio e no luto por outras causas de morte.

“O que a gente vai encontrar de semelhante? O enlutado tem que se adaptar à vida sem a pessoa que partiu. Aí surgem sentimentos que podem e muito frequentemente vêm num misto de saudade, tristeza, raiva, alegria de relembrar os sentimentos bons, etc. E também as dúvidas: ‘será que se algo tivesse sido diferente, a pessoa ainda estaria aqui?’”, explica Mariana Ros Stefani, psicóloga, educadora e integrante do Vita Alere, instituto de prevenção e pósvenção ao suicídio.

Já em relação às especificidades, no luto por suicídio, todo esse contexto pode aparecer de forma muito mais intensa. As dúvidas são diversas: “o que eu poderia ter feito?”, “o que eu deixei de fazer?”, “será que eu deixei passar algum sinal?”, entre outras. E isso pode gerar vários sentimentos ainda mais conflituosos.

A raiva, por exemplo, é comum nos relatos de quem perdeu alguém para o suicídio, perguntando-se porque a pessoa amada resolveu tomar essa atitude sabendo da dor que causaria nos amigos e familiares. Em seguida vem a culpa, tanto por estar sentindo raiva em um momento como esse quanto por achar que poderia ter feito algo para impedir a morte. 

“A leitura social que se tem do luto por suicídio ainda é muito diferente e, infelizmente, marcada por tabus. Isso pode mudar o suporte social que a pessoa recebe. Se em outras situações, ela teria o suporte de alguém perguntar ‘o que eu posso fazer por você?’, no luto por suicídio, esse cuidado dá lugar a ‘como você deixou isso acontecer?’”, destaca a psicóloga.

Foi exatamente o que aconteceu com Terezinha. Mesmo quando ela procurava outras mães que haviam perdido seus filhos de forma trágica, como um acidente, ela ouvia explicações que para ela não faziam sentido, como “foi Deus que quis”, “estava escrito” ou “estava na hora”.

“As pessoas não chegam na má intenção, elas acham que estão ajudando, mas falam coisas como ‘fecha a porta do quarto para você não ver que está vazio’ ou ‘finge que ela está viajando’. Não é assim que funciona”, afirma Terezinha.

E em meio a todo esse sofrimento, outra pergunta fica martelando na cabeça dos sobreviventes: por que a pessoa decidiu tirar a própria vida?

Veja também: Suicídio em 7 perguntas | Carlos Cais

 

As causas do suicídio

“O suicídio é um fenômeno multifatorial. Não tem uma causa única. O que existe são fatores predisponentes e precipitantes. Os fatores predisponentes são o conjunto de coisas que vai criando um caldeirão em que as ideações suicidas tomem forma e eventualmente evoluam para a morte por suicídio. Pode ser um tanto de coisa: fatores econômicos, culturais, religiosos, sociais, momentos de vida, tudo que estiver colocando a pessoa em sofrimento”, explica Mariana. “E os fatores precipitantes são o que funcionam como gatilho, é a gota d’água que muita gente compreende errado e fala que foi a causa. Nunca é uma situação só, é uma combinação de fatores”, continua a psicóloga.

No tratamento dos sobreviventes enlutados, a especialista conta que é difícil fazê-las compreender isso de forma racional, mas é muito importante que essa ideia seja interiorizada para combater pensamentos como “eu tinha que ter feito alguma coisa” ou “fui eu quem causou isso”.

Ademais, nem todo suicídio vai ter sinais prévios claros. Muitas vezes, os indícios só são compreendidos depois. 

Logo após a morte de Marina, Terezinha se questionava muito. Na tentativa de ajudar a filha, ela dizia coisas para levantar o seu astral e planejava viagens para tentar fazê-la mudar de ares. Hoje, no entanto, ela acredita que essas atitudes não eram o acolhimento e o espaço que a jovem precisava.

“As coisas que eu não sabia e hoje eu sei fizeram com que eu me sentisse culpada. Mas, da mesma forma, eu compreendo que eu fiz todo o possível dentro das condições que eu tinha na época. Isso também me leva a ter certo conforto. O suicídio da Marina aconteceu porque ela tinha vários fatores que levaram a isso”, diz a mãe.

Segundo a psicóloga, trabalhar esse pensamento é uma forma de aliviar a pressão de que os enlutados deveriam ter percebido ou sabido exatamente o que fazer e o que não fazer. 

“E atenção, eu não estou querendo dizer que a pessoa tem que fingir que nada aconteceu. Mas ficar indo atrás de descobrir qual foi o momento da virada de chave pode gerar muita dor e talvez não vá trazer a resposta que ela procura, porque essa resposta não existe”, ressalta Mariana.

 

E quando há cartas de suicídio?

A situação pode se tornar ainda mais delicada quando a pessoa deixa uma carta de suicídio. A principal recomendação é entender em que momento essa carta deve ser lida, mas, muitas vezes, não existe essa possibilidade por ela ser encontrada junto ao corpo. Sendo assim, a psicóloga indica cautela.

“É fazer uma leitura que não seja de procurar respostas, sabe? Tem cartas que foram escritas no momento de um ímpeto e até de uma raiva. Podem ir justamente no sentido contrário, culpando alguém. É preciso entender que isso pode estar escrito, mas não necessariamente é assim que as coisas funcionam”, alerta a especialista.

Além disso, é importante compartilhar o que quer que a carta suscite em quem leu, assim como todos os outros sentimentos que vêm à tona após a morte por suicídio.

Veja também: Como identificar possíveis sinais de risco de suicídio?

 

Como viver o luto por suicídio de forma mais saudável?

Para esse compartilhamento, o enlutado pode procurar amigos e familiares próximos que estejam dispostos a oferecer um conforto — seja falar sobre o ocorrido ou ter companhia para assistir a um filme e espairecer.

No entanto, mesmo com as pessoas mais acolhedoras, pode ser difícil falar sobre alguns sentimentos, como o de raiva. Até aquelas que sabem como oferecer ajuda chegam a um limite muito próprio. É aí que entra a terapia.

“O que a terapia tem de diferente? A escuta qualificada. Uma escuta que não julga, um espaço muito livre para a pessoa mergulhar fundo nas suas questões mais íntimas. É onde ela pode falar daquilo quantas vezes quiser. Ela pode chegar semana após semana e contar como foi encontrar o corpo, por exemplo. O terapeuta vai estar lá para acolher e revisitar”, detalha Mariana.

A especialista lembra que procurar ajuda psicológica não significa que o enlutado seja fraco, esteja vivendo o luto de forma errada ou esteja condenado a se sentir daquela forma para sempre. Falar sobre o que está sentindo, pelo contrário, auxilia a trabalhar a dor da perda para que ela não seja tão opressora assim.

Para Terezinha, buscar terapia após a morte de Marina foi essencial. Além disso, ela encontrou em grupos de apoio a clareza que precisava para organizar esse turbilhão de emoções.

“Eu, meu filho e meu marido nos vimos sozinhos. Eu busquei ajuda em um grupo de apoio, porque queria ouvir outras pessoas falando como conseguiram continuar vivendo depois de uma perda dessas. Foi lá que eu comecei a ver que eu não estava sozinha. Outras pessoas entendem o que sinto. Eu não estava enlouquecendo”, lembra.

Hoje, seis anos após a perda da filha, Terezinha Máximo é presidente da Abrases, a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio. A partir do seu convívio com quem passou pela mesma situação, ela dá dicas para enfrentar esse momento tão difícil:

  • Permita-se sentir: não existe um tempo certo para viver o luto, que é um processo por si só cheio de idas e vindas. É fundamental se permitir sentir as suas reações, como ter saudades, sofrer, chorar, ter raiva ou sentir medo; 
  • Busque maneiras de expressar os sentimentos: colocar para fora a dor e procurar entendê-la, seja com a ajuda de pessoas queridas, de terapia ou de outros meios, pode ajudar muito. No caso de Terezinha, o caminho encontrado foi a espiritualidade e a escrita, que deu origem ao blog Nomoblidis, que quer dizer “não me esqueça”. Outras pessoas apostam em álbuns de memórias. Cabe ao enlutado descobrir o que faz bem para si mesmo;
  • Não tome decisões precipitadas: em meio à dor e à pressão de outras pessoas, muitos enlutados se mudam de casa ou dão os pertences de quem morreu. Além de poder provocar prejuízos financeiros, essas são decisões que devem ser tomadas no próprio tempo e apenas quando a pessoa tiver certeza;
  • Não se automedique: principalmente no início, quando o enlutado sente dificuldade em realizar tarefas básicas de sobrevivência, como dormir, ele recorre a medicamentos sem prescrição médica. Mas esse é um hábito perigoso que provoca graves problemas de saúde. Se estiver com alguma dificuldade, procure a orientação de um médico;
  • Evite o abuso do álcool e outras drogas: como uma forma de escapar da realidade, o consumo de álcool e outras drogas pode acabar gerando adição. Procure ficar longe dos excessos;
  • Não se compare a outras pessoas enlutadas: o luto é muito individual, então evite ficar pensando que há algo de errado em você por não estar fazendo as mesmas coisas que outra pessoa com o mesmo ou menos tempo de luto. Cada um irá vivê-lo da sua forma;
  • Fale sobre o suicídio: romper o silêncio que envolve o suicídio é uma forma de não reduzir a pessoa ao ato final dela e também de prevenir que os enlutados desenvolvam ideações suicidas. Esses sentimentos podem surgir, e não falar sobre elas não fará com que desapareçam. Lembre que, mesmo que alguém próximo tenha morrido por suicídio, esse não é um destino inescapável. Existem outras alternativas para lidar com o sofrimento e a primeira delas é procurar ajuda.

 

O luto é uma montanha-russa

No grupo de apoio, Terezinha brinca que o luto é como uma montanha-russa: um dia, você está lá embaixo. Depois vai subindo, subindo e, de repente, desce de uma hora para outra. Esses altos e baixos fazem parte do processo que, segundo ela, não é de superação. É de acomodação da dor.

As datas comemorativas ainda são estranhas e causam certa tristeza. Segundo a psicóloga Mariana, isso é comum. Aniversários e reuniões de família podem não ser mais vistos como motivo para festa. O que cada família deve fazer é entender quais celebrações ainda fazem sentido para se reconectar com a memória de quem morreu.

“Se a pessoa tinha o hábito de ir acampar em uma época do ano, talvez essa seja uma forma de sentir sua presença e homenageá-la, lembrando dos momentos bons. E, novamente, sempre respeitando o tempo da família”, recomenda a especialista.

De acordo com Mariana, o luto é encontrar formas de seguir a vida em conexão com a pessoa que partiu, mas entendendo que não vai ser igual a antes.

“Eu nunca mais fui a mesma Terezinha de 2017, mas estou aprendendo a lidar. As pessoas perguntam: ‘você sente felicidade?’. Eu não vou ser feliz como eu era antes, mas eu tenho momentos de felicidade, sim. Não tenho mais ela presente fisicamente, mas eu também me permito desfrutar das coisas boas da vida. Se me convidam para uma festa, eu vou. Só não danço ainda. Continuo aos poucos. Viver um dia de cada vez é uma coisa que parece óbvia, mas, nesse processo, a gente realmente sabe o que é”, conclui Terezinha.

Veja também: Quando o luto exige ajuda profissional

 

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