No conjunto de comunidades da Maré, são as mulheres que mantêm as famílias unidas – não importa o que aconteça.
Esse podcast faz parte de um conjunto de podcasts sobre a Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Eu conheci a favela, andei pelas ruas da favela, logicamente escoltado por habitantes locais, porque lá o tráfico é pesado, e num convite do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, que organizou um espetáculo maravilhoso de dança com os adolescentes da Maré.
Ee me convidou para escrever o texto, e eu aproveitei não só para conhecer esses meninos e meninas — e os pais deles muitas vezes —, mas também para andar mesmo pela favela, e depois escrever uma série de textos. Nesse eu faço uma homenagem às mulheres da Favela da Maré e às mulheres das favelas de um modo geral. O texto diz assim:
“Na solidariedade ao sofrimento alheio e no controle da unidade familiar, as mulheres são imbatíveis. Quase todas trabalham fora, em bairros distantes, duas ou três conduções em empregos humildes, mal remunerados que lhes consomem o dia inteiro e parte da noite. Ainda assim, encontram energia para acordar de madrugada, ir para o fogão preparar as refeições do dia, servir o café, acordar e vestir as crianças para deixá-los na escola antes de tomar o primeiro ônibus.
Muitas são o homem da casa. O companheiro foi embora ou se separou, outras são mães solteiras, mas em muitas e muitas casas, os filhos só contam com elas. Na volta, elas terminam jantar, ajudam os filhos nos deveres escolares, dão banho, levam todos pra cama e só depois das dez da noite que elas podem pensar um pouco em si mesmas, mas já com o despertador ajustado pras quatro da manhã.
Quando são casadas com homens responsáveis, de caráter, cooperativos, que dividem as tarefas cotidianas, fica mais fácil. Caso contrário, que é a situação da maioria, fazem tudo sozinhas e ainda se sentem obrigadas a cuidar do companheiro, que não para em emprego, bebe demais, fuma maconha o dia inteiro ou se envolve com os bandidos.
Com tantos afazeres e medo de sair às ruas, por causa dos tiroteios, muitas dessas mulheres vivem do trabalho pra casa, e só saem para ir à igreja, visitar um parente doente ou reunir-se com os familiares em datas festivas. Organização doméstica, educação dos filhos, controle das despesas, conselhos e carinho são tarefas femininas. Quando precisam defender a integridade do lar, reagem como feras. Elas mesmo dizem:
— Aqui, mulher, quando briga, é por causa de homem cobiçado ou de filho maltratado.
Nessas ocasiões, duas mulheres raramente chegam às vias de fato. Limitam-se aos xingamentos e aos piores desaforos possíveis a rival, diante da curiosidade das crianças, que espreitam, silenciosas, o mundo dos adultos.
Eventualmente, outras mulheres podem se envolver e tomar partido das contendoras, aumentando as dimensões do conflito, mas a regra geral é oposta a essa. Uma moça me disse:
— Sempre aparece uma vizinha mais ajuizada, pra pôr pano quente.
Pra evitar consequências imprevisíveis, os homens nunca se intrometem. Em briga de mulher, homem que é homem, não mete a colher, como elas mesmo dizem.
Por força de separação, viuvez ou gravidez indesejada, é grande o número de mulheres que são chefes de família. Criam os filhos com a maior dificuldade, e quando poderiam desfrutar a tranquilidade de ver os crescidos, são obrigadas a assumir a responsabilidade da criação dos netos, trazidos ao mundo pelas filhas adolescentes.
Como nas demais comunidades pobres do Brasil, não são poucos os bebês assim nascidos na Maré. Das 90 mil crianças nascidas no ano de 2001, na cidade do Rio de Janeiro inteira, quase 20% eram filhas de mães que tinham entre 10 e 19 anos. E é mais ou menos isso a realidade do SUS no Brasil: cerca de 20% das crianças nascidas são filhas de mães com menos de 20 anos de idade.
O impacto econômico de mais uma criança para alimentar, vestir e educar na vida dessas avós prematuras, que há muito custo conseguiu equilibrar o orçamento mensal, é devastador. Por outro lado, os afazeres com o recém-nascido, interrompem o estudo e encurtam os horizontes profissionais da jovem mãe, agravando ainda mais o futuro econômico da família.
Algumas dessas meninas que chegam à maternidade quando ainda brincam com bonecas, incapazes de dar um salto abrupto pra maturidade, negligenciam os cuidados com o filho. Crianças rejeitadas dessa forma, mais tarde estarão em risco de desenvolver autoestima rebaixada e comportamento social agressivo.
A maioria dessas adolescentes que dão à luz, no entanto, pressionadas pelas necessidades sem fim das crianças, queimam etapas do desenvolvimento pessoal e experimentam amadurecimento precoce, sem chegar a viver as fases fundamentais da adolescência — isso vai ter consequências futuras imprevisíveis pro equilíbrio psicológico.
Mas, de qualquer forma, toda a estrutura social é mantida pelas mulheres. São elas que tomam todas as providências, são elas que cuidam das pessoas doentes, são elas que ajudam as outras que se ajudam mutuamente. As mulheres são as pessoas que mantêm as famílias unidas no ambiente mais pobre.”
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