Outras Histórias #35 | Maré: O cipoal

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Publicado em: 19 de outubro de 2021

Revisado em: 21 de outubro de 2021

No “cipoal” da Maré, o amontoado de sobrados se mistura a fios emaranhados e abriga famílias prontas para se ajudar.

 

 

 

Para escrever o roteiro de um espetáculo de dança idealizado pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo, dr. Drauzio passou alguns dias no conjunto de comunidades da Maré. Em suas andanças, ele descreveu a região como um “cipoal”, ou seja, um emaranhado de cipós, por causa da mistura de sobrado e fios que perpassam as ruas.

De semana, quando os adultos saem para trabalhar, as crianças mais velhas cuidam das mais novas e os vizinhos dão uma olhada para garantir que estão todos seguros. Aos domingos, é dia de faxina, e as casas colocam música alta que se confunde com o canto dos passarinhos e a movimentação de pessoas e de carros vendendo produtos milagrosos. Conheça mais sobre a rotina da Maré neste episódio do Outras Histórias.

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Olá. Nos dois últimos podcasts, eu falei sobre uma experiência que eu tive, anos atrás, na Favela da Maré. Um convite do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, que fez um espetáculo de dança, aliás um espetáculo lindo, que foi apresentado em vários Sescs pelo Brasil. E ele me pediu para escrever um texto desse espetáculo. Eu disse “olha, só posso escrever o texto, se eu conhecer a favela e conhecer esses adolescentes que vão ser os bailarinos”, e foi uma experiência maravilhosa.

Eu não só convivi com esses adolescentes, como também pude passear pela favela, andar, conhecer a favela inteira — logicamente escoltado por pessoas locais, porque a favela é dominada por duas facções rivais, que vivem numa guerra constante. E eu escrevi um texto sobre o aspecto geral da favela, que eu chamei de “O cipoal”, cipós.

Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir outras histórias.

Esse texto diz assim:

“As casas geminadas, parede com parede, sem deixar vão livre entre elas, exigem dos moradores descrição ao discutir problemas domésticos. Impossível ficar entre quatro paredes os desentendimentos entre marido e mulher, os xingamentos, os delírios de ciúmes, o som dos arroubos sexuais, do choro das mães que perderam filhos na guerra dos tráficos, das mulheres abandonadas e das que apanham dos bêbados que escolheram pra companheiros.

As histórias escutadas com o ouvido grudado na parede, alimentam a imaginação infantil e servem de munição pesada para as fofoqueiras que infestam os quatro cantos da Maré, preocupadíssimas com o destino alheio, loucas para encontrar a primeira que se digne a parar diante delas para ouvi-las:

— Fulana, imagina o que eu fiquei sabendo sem querer. — é assim que elas dizem.

Na ausência de regulamentação, o aproveitamento máximo do terreno é princípio urbanístico universal na Maré. O resultado é uma sucessão de sobradinhos, alimentados por uma rede infernal de fios mal esticados nos postes de rua, num emaranhado, um cipoal impossível de desembaraçar.

Até a fiação elétrica nem tanto, mas imaginar como fazem os operários da companhia telefônica pra identificar, no meio daquele cipoal todo, o fio que conduz os impulsos de determinada habitação, vai além do entendimento humano.

Excetuando-se alguns locais e os vestígios deixados pelos cachorros soltos, as ruas, as vielas e os becos da Maré são limpos; o interior das casas também. Como maridos e mulheres saem cedo e voltam tarde do trabalho, os cuidados rotineiros do lar ficam por conta das crianças mais velhas. Os maiores esquentam a comida que a mãe deixou pronta antes de sair pro trabalho, trocam fraldas e dão de comer aos pequenos.

Com medo da guerra entre os traficantes, muitos pais que passam o dia no serviço recomendam às filhas e aos filhos pequenos que tranquem a porta na volta da escola e proíbem as crianças de sair à rua.

Aos domingos, a faxina doméstica começa cedo, os tapetinhos vão para a janela, as colchas e os lençóis para o varal armado na laje e a água corre solta no piso de cerâmica. Os sons das vassouras e do bater dos rodos se misturam às músicas e o tom de alegria forçada dos locutores das rádios FM, que se esgoelam na disputa de audiência. Hinos protestantes, pagodes românticos e funk formam uma salada musical que confunde os ouvidos do transeunte.

O movimento de pessoas é intenso em certas áreas da favela. Nas ruas mais largas da Nova Holanda, que é um bairro da favela, em meio ao tráfego intenso de pessoas e crianças que jogam bola na rua, circulam, com extremo cuidado, caminhões de entrega, carros de passeio, lotações que anunciam “Bom Sucesso”, “Praça das Nações” e carros que fazem propaganda de produtos estranhos: “banha de peixe elétrico! Atenção, freguesia! A banha de peixe elétrico é boa pra a coluna, reumatismo, dor nas juntas e pra beleza da pele!”.

Logo cedo, os moradores penduram gaiolas do lado de fora e os passarinhos cantam para alegrar as ruas. São muitos, eles dizem que gente pobre é amante de passarinho; o canto deles traz lembranças da natureza que não existe aqui.

Além do grande número, a variedade de espécies é impressionante: canários do reino, canários da terra, canários belgas, roller, vermelhos, campainhas brancos, coleirinhas, cardeais, sabiás, bicos de lacre, pintassilgos, azulões, ‘passo’ pretos, galos da campina coloridos, periquitos australianos em algazarra, papagaios tagarelas e uma concentração grande de curiós cantores, que enchem os seus donos de orgulho.

A maioria das casas tem vasos com violetas, espadas de São Jorge, azaléias, samambaias e folhagens variadas pra compensar a falta de verde nas ruas. Sem árvores, a pintura das casas, os tijolos expostos e o cinza do reboque é que dão o colorido das ruas. Se elas fossem pintadas de cores mais vivas, a paisagem seria outra e os becos do Morro do Timbau — que é uma outra área da Maré, considerado por seus moradores como a Zona Sul da Maré, porque é o lado mais chique da favela — ficaria com ar de cidade italiana da Idade Média.

A poluição sonora é aparentemente livre. Cada um ouve o que quer, no volume que bem entender. Os moradores aceitam estoicamente ou são obrigados a fazer a música no salão do bar ao lado às sextas e sábados, até o dia clarear, num volume tão alto, que parece tocar dentro dos quartos da vizinhança. Ao redor dos locais em que acontecem os bailes funk, a mesma coisa: difícil alguém dormir.

As dificuldades financeiras e as proximidades dos vizinhos, por outro lado, criam uma forma de vínculo solidário, que há muito desapareceu dos grandes centros. Uma família olha os filhos da outra enquanto os pais não chegam; empresta um bujão de gás quando acaba o da vizinha; ajuda a carregar os móveis em dia de mudança; e empresta o canário para cruzar com o da casa em frente, em troco de um filhote se o acasalamento tiver sucesso.

Apesar dos problemas que todos enfrentam, de algum lugar aparece a ajuda em momentos de desemprego ou falta de saúde. As próprias vans, que fazem lotação pra cidade, se revezam em rodízio nos finais de semana, à disposição para atender à população gratuitamente em caso de emergência.

Em qualquer circunstância, não falta condução para transportar a mulher em trabalho de parto, a criança com a perna quebrada ou a pessoa de idade que teve um mal-estar súbito. A solidariedade se faz sentir justamente nos momentos mais necessários, como me disse um senhor:

— Aqui não falta uma boa alma para fazer companhia numa fila de hospital”.

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