Ambientes acolhedores, diálogo com a família e estratégias sensoriais fazem a diferença no processo de adaptação escolar de alunos com autismo ou com outros transtornos do neurodesenvolvimento.
A volta às aulas ou a mudança de escola podem ser momentos desafiadores para qualquer criança, mas no caso das neurodivergentes, como as que estão no espectro autista, esse processo costuma exigir cuidados e estratégias mais individualizadas. Afinal, cada transição envolve novos ambientes, regras, rotinas e pessoas desconhecidas.
Apesar de avanços legais, como a Lei Brasileira de Inclusão, a verdadeira inclusão no ambiente escolar ainda caminha a passos curtos. Segundo o Censo Escolar 2023, mais de 636 mil alunos autistas estão matriculados na educação básica, o que representa 35,9% das matrículas na educação especial.
Embora a maioria das escolas brasileiras não esteja preparada para receber esses alunos, a boa notícia é que, com o apoio adequado, é possível garantir uma adaptação mais acolhedora e eficiente.
A seguir, reunimos orientações de especialistas que explicam os caminhos possíveis para isso.
O que significa ser neurodivergente?
Neurodivergência é um termo usado para descrever pessoas cujo desenvolvimento neurológico e funcionamento cognitivo diferem do que é considerado “típico”. Esse conceito reconhece que há diferentes formas de processar informações, interagir com o mundo e aprender.
Entre os principais transtornos que se enquadram nesse espectro estão o transtorno do espectro autista (TEA), o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) , dislexia, dispraxia, discalculia e outros transtornos do neurodesenvolvimento.
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Principais desafios enfrentados no ambiente escolar
Ao ingressar em uma nova escola, crianças autistas enfrentam uma série de desafios, muitos deles invisíveis aos olhos dos demais. De acordo com Débora Mendes, terapeuta ocupacional certificada em integração sensorial de Ayres e sócia fundadora da clínica Terapeutas do Brincar, em São Paulo, as dificuldades podem surgir de vários aspectos:
- Ambientais: lidar com novos sons, cheiros, luzes e espaços exige tempo;
- Pedagógicos: o plano de ensino precisa ser personalizado, com atividades adaptadas conforme o PEI (Plano de Ensino Individualizado);
- Sociais: novas amizades, figuras de autoridade e interações exigem construção de vínculos;
- Rotina: cada escola funciona de um jeito, aprender o que muda e se adaptar pode ser um grande esforço.
Para ajudar nessa fase, é essencial que a família compartilhe com a escola informações sobre os potenciais do aluno e as dificuldades e estratégias que já funcionam em outros ambientes. “Pistas visuais, antecipação de mudanças na rotina e estratégias sensoriais são alguns recursos que podem reduzir os impactos dessa transição”, completa Débora.
Cada criança é única, com características, vivências e modos de se relacionar com o mundo próprios. Algumas têm mais dificuldade na comunicação verbal, outras apresentam comportamentos que desafiam as normas sociais. Isso exige um olhar atento da escola e uma escuta ativa da família para que a adaptação seja feita.
“A escola é um espaço que proporciona desenvolvimento cognitivo, comunicação e convívio social, elementos fundamentais para uma pessoa no espectro. Construir um ambiente acolhedor e adaptado exige a colaboração de todos os envolvidos”, afirma Grazielle Bonfim, psicóloga especialista em análise do comportamento aplicada (ABA) da Genial Care, em São Paulo. Ela ainda destaca a importância de buscar uma escola com profissionais capacitados e de manter uma comunicação constante entre família e instituição.
A escola como espaço de desenvolvimento global
Mais do que um local de aprendizagem acadêmica, a escola é o espaço onde a criança é desafiada a colocar em prática diversas habilidades desenvolvidas em casa ou nas terapias. “Quando bem adaptada, a escola se torna um ambiente potente para o desenvolvimento emocional, motor e cognitivo da criança”, ressalta Débora. Vivências bem estruturadas favorecem a autonomia, a socialização e o fortalecimento de habilidades essenciais para a vida em sociedade.
A adaptação escolar de crianças autistas vai além da socialização. A construção de vínculos com professores e colegas, o reconhecimento do espaço físico e da rotina escolar são processos fundamentais para que essa criança se sinta segura e, assim, possa aprender e se desenvolver.
Estratégias terapêuticas personalizadas: não existe fórmula mágica
Um erro comum, segundo Débora, é aplicar estratégias terapêuticas padronizadas sem considerar a individualidade da criança. “Antes de qualquer estratégia, é preciso entender quem é essa criança e quais são suas reais necessidades naquele contexto escolar.”
Para crianças com dificuldades sensoriais, por exemplo, o uso de uniformes mais confortáveis, adaptações no espaço físico da sala e o uso de recursos como abafadores de som podem ser úteis. Já para as que enfrentam desafios de socialização, histórias, treinos de interação e mediação direta por um adulto são ferramentas eficazes. “A estratégia precisa fazer sentido para a criança. Caso contrário, pode causar frustração para todos os envolvidos.”
Já nas salas de aula, sugestões como as da profissional Grazielle ajudam a transformar o dia a dia de alunos com necessidade de suportes específicos. Algumas dicas práticas são:
- Estabeleça uma rotina consistente: crianças com TEA geralmente se sentem mais confortáveis com uma rotina estruturada;
- Comunicação visual: materiais visuais, como calendários, tabelas de horários e cartões com ilustrações, podem ajudar a criança a compreender melhor o que esperar durante o dia. Esses recursos são especialmente úteis para crianças com dificuldade em processar informações verbais;
- Converse sobre as expectativas: prepare a criança para o que ela encontrará na escola. Explique, de forma clara e simples, como será o ambiente, quem estará lá e o que ela fará ao longo do dia. Usar histórias ou livros que abordem a temática escolar também pode ajudar;
- Estimule o interesse da criança: muitos interesses específicos e objetos de hiperfoco podem ser aproveitados para garantir a motivação e o engajamento da criança nas atividades acadêmicas. Pais e cuidadores podem inserir esses temas em casa, além de compartilhar com os professores para que eles possam ser usados em sala de aula;
- Envolva toda a comunidade escolar: a inclusão não é responsabilidade apenas do professor. Garanta que toda a equipe, incluindo coordenadores, auxiliares e funcionários, esteja ciente das necessidades da criança e seja capacitada para lidar com situações específicas relacionadas ao TEA;
- Promova a empatia entre os colegas: estimular atividades que promovam a convivência e a empatia entre os alunos é essencial para combater preconceitos e criar um ambiente acolhedor.
Outras dicas complementares são:
- Use figuras e gestos para se comunicar com alunos não verbais;
- Permita o uso de objetos de apego para autorregulação sensorial;
- Apresente a rotina do dia com antecedência;
- Reduza estímulos visuais que não forem necessários;
- Não force a participação e proponha aproximações suaves, respeitando os limites do aluno;
- Valorize os talentos da criança e ofereça apoio onde ela mais precisa.
Grazielle também defende que a inclusão de crianças autistas é um processo que exige cuidado, adaptações e suporte. “Mais do que qualquer estratégia, é essencial compreender que a escola é um espaço vital para o desenvolvimento e incluir crianças neurodivergentes nestes espaços é fundamental. Ao garantir suporte e acolhimento, criamos um ambiente propício para aprendizado, diversidade e bem-estar.”
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A importância do tripé: saúde, escola e família
A colaboração entre profissionais da saúde, educadores e familiares é parte do sucesso da adaptação escolar. Débora defende um modelo de parceria contínua entre os três núcleos. “Cada um tem um olhar e uma competência diferente. O mais importante é encontrar um canal de comunicação que funcione de verdade, seja por meio de reuniões regulares, troca de relatórios ou conversas periódicas.”
O acolhimento e a escuta das necessidades da criança e da família são o ponto de partida. O papel da escola é garantir uma estrutura que favoreça a aprendizagem, respeitando os limites e potencializando as capacidades de cada criança. O diálogo constante com os profissionais de saúde e a família é indispensável nesse processo.
A adaptação escolar de crianças neurodivergentes é um processo que exige tempo, sensibilidade e trabalho em equipe. Cada criança é única, e entender suas necessidades individuais é o primeiro passo para garantir uma experiência escolar positiva.
Diagnóstico precoce e intervenção: um diferencial na adaptação escolar
Nos últimos anos, muitas famílias só percebem sinais de que algo está diferente no desenvolvimento da criança quando ela está na instituição de ensino. “A escola tem sido o primeiro ambiente de convivência com pares da mesma idade. É ali que muitas diferenças aparecem e os encaminhamentos começam”, afirma Débora.
O diagnóstico precoce e a intervenção terapêutica adequada são fundamentais para que a criança chegue mais preparada ao ambiente escolar. Isso permite não apenas um planejamento mais eficaz das estratégias de adaptação, como também garante mais segurança para a criança nesse processo.
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