Como cães treinados podem ajudar pessoas com doenças crônicas a prevenir crises de saúde e a ganhar mais autonomia e segurança no dia a dia.
Imagine um cão que consegue identificar uma crise iminente de hipoglicemia em um paciente diabético ou auxiliar alguém durante uma convulsão.
Esse cenário, que parece de filme, é uma realidade graças aos cães de assistência, que podem ser definidos como cachorros especificamente treinados para fazer mais de uma tarefa para mitigar os efeitos da deficiência de um único indivíduo.
Equipados com um olfato incrivelmente aguçado (cães têm uma capacidade olfativa 10 mil vezes maior¹ do que seres humanos de perceber odores) e treinados para interpretar sinais que passam despercebidos aos humanos, esses animais desempenham um papel vital no cuidado à saúde de pessoas com doenças crônicas.
Além de aumentar a segurança física, os cães de assistência trazem benefícios emocionais significativos, proporcionando comodidade e independência a seus tutores.
As mudanças no corpo e como os cães treinados as percebem
Durante crises de saúde, o corpo humano emite sinais específicos, mas muitas vezes sutis demais para serem percebidos por pessoas não treinadas. Em pacientes diabéticos, por exemplo, flutuações nos níveis de glicose no sangue podem causar sudorese, tremores, tontura e, em casos mais graves, perda de consciência. Já nos casos de epilepsia, sinais como auras – alterações sensoriais que antecedem uma crise – e até mudanças químicas no odor corporal podem ocorrer.
Os cães, com seu olfato e atenção excepcionais, são capazes de identificar, quando treinados, alguns desses sinais antes que uma crise se desenvolva totalmente. “No caso do diabetes, o cão pode detectar alterações químicas no odor corporal, como o cheiro frutado que indica hipoglicemia (níveis de glicose abaixo de 70)”, explica Adriana Torres, adestradora em BH, com formação em cães de assistência pela Atlas Assistance Dog (Estados Unidos). Essa habilidade permite que os cães alertem seus tutores com antecedência, oferecendo uma janela de tempo valiosa para agir e evitar consequências graves. Além do olfato, os cães detectam mudanças sutis no comportamento humano, como alterações na postura, na respiração e na frequência cardíaca.
A adestradora Janaina Ganze, adestradora do Vale da Neblina, no Rio Grande do Sul, com formação em cães de assistência pela Discan (Espanha), explica que há todo um processo na seleção de cães que cumprirão esse papel de assistência. Trata-se de cachorros de alta performance, que seguem um treinamento planejado conforme a função que exercerão. O programa, conduzido por profissionais qualificados, respeita diretrizes internacionais e utiliza adestramento positivo, começando com a análise das necessidades e rotina do usuário. “O processo se inicia pela conversa com o usuário, entendendo a sua necessidade, seu diagnóstico, local em que reside, membros da família, se existem outros animais e informações importantes, como sua rotina diária e locais onde este cão irá lhe acompanhar”, explica.
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Treinamento: de cachorro comum a salva-vidas
O treinamento de um cão alerta médico para identificar crises de saúde é um processo longo e detalhado, que pode levar de 18 meses a dois anos. O processo começa pela seleção criteriosa do cão, considerando não apenas a raça, mas também características individuais de temperamento e saúde. Alguns tipos de labradores, golden retrievers e poodles são os cachorros mais utilizados, devido ao equilíbrio emocional e à capacidade de aprendizado. No entanto, cães sem raça definida também podem ser aptos, desde que atendam aos critérios necessários.
Dante Camacho, adestrador profissional, explica que o treinamento geralmente começa com a exposição a amostras de suor ou saliva do tutor coletadas durante crises. Essas amostras são associadas a recompensas, como petiscos ou elogios, e os cães são ensinados a sinalizar a detecção do odor com comportamentos específicos, como tocar o tutor com a pata, cutucar com o focinho ou buscar um objeto, como um kit de emergência. “Uma vez munidos dessas amostras, ensinamos o cão pareando o odor dessas amostras com recompensas. A seguir, ensinamos o cão a indicar a amostra correta, apresentando um comportamento de indicação específico. O cão aprende que, ao notar o odor, deve apresentar esse comportamento de indicação para ser recompensado”, afirma Camacho.
“É importante alertar que existe uma diferença entre cães de alerta médico, que avisam a pessoa sobre uma alteração química que pode gerar uma reação indesejada com antecedência, e o cão que é treinado para reagir de maneira específica para ajudar a pessoa uma vez que a reação acontece, ou seja, ele não necessariamente prevê o evento”, complementa.
Além do treinamento olfativo, os cães passam por um processo de socialização e aprendizado de habilidades básicas, como responder a comandos, se comportar em ambientes públicos e lidar com estímulos variados. Essas etapas garantem que o cão esteja preparado para atuar em qualquer situação, aumentando sua eficácia como assistente.
“Pacientes com doenças crônicas que apresentam flutuações significativas nos sintomas, como diabetes tipo 1 e epilepsia, por exemplo, podem se beneficiar do auxílio de um cão treinado. No entanto, cada caso deve ser avaliado individualmente por um profissional de saúde. Os cães treinados podem ser uma ferramenta valiosa no manejo de doenças crônicas, proporcionando aos pacientes maior segurança e independência. No entanto, é importante ressaltar que o cão não substitui o tratamento médico e deve ser visto como um complemento. Pacientes com alergias, fobia a cachorros, imunossupressão podem apresentar contraindicação para esse tipo de abordagem, por exemplo”, destaca a dra. Polyana Piza, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Embora o principal objetivo dos cães de assistência seja a segurança física, eles também proporcionam um impacto emocional profundo, destaca a dra. Piza. “Há muitos anos os cachorros são destinados ao auxílio do ser humano tanto física quanto emocionalmente. A presença do cão pode proporcionar conforto emocional ao paciente, reduzindo o estresse e a ansiedade.”
Desafios enfrentados no Brasil
Apesar de seu potencial transformador, o treinamento de cães de assistência enfrenta desafios significativos, especialmente no Brasil. Um dos principais obstáculos é a falta de regulamentação e de instituições especializadas. “Não há cursos de formação de treinadores no país, e muitas pessoas têm expectativas equivocadas sobre o processo”, explica Anice Nascimento, coordenadora do projeto O Sorriso de Monalisa, em São Paulo, com formação em cães de assistência pela Bocalan Argentina.
Outro desafio é o custo elevado para o treinamento de um cão de assistência, tornando-o inacessível para grande parte da população. Em alguns países, como os Estados Unidos, instituições oferecem cães gratuitamente para pessoas com deficiência, graças a financiamentos públicos e privados. No Brasil, essa realidade ainda está distante, mas há esforços para mudar o cenário, como iniciativas da Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC) para regulamentar o setor.
Além disso, há um trabalho educacional a ser feito para conscientizar a sociedade sobre o papel desses cães. Muitas pessoas não entendem que os cães de assistência não são bichos de estimação comuns e, por isso, devem ser respeitados em suas funções, sem interrupções ou distrações. Outro aspecto a ser apontado é sobre a influência das redes sociais e alguns canais de informações. Adriana Torres explica que “há um desconhecimento da população, que frequentemente chega até nós com expectativas equivocadas. É comum, por exemplo, que alguém queira treinar um cão que já possui, mas que muitas vezes não tem a socialização ou as características necessárias para desempenhar essa função. Outra situação comum é a procura por ‘um cão já treinado’, sem entender que cada cão é único e precisa ser escolhido e treinado especificamente para atender às necessidades de uma única pessoa”, finaliza.
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FONTE:
¹ Valle, V. B. do. (2022). A capacidade e a precisão olfativa dos cães a serviço do homem. RC-ESPM, 1(4), 50–67. https://doi.org/10.5935/2178-4590.20220023