O racismo estrutural e institucional dentro dos serviços de saúde é uma das possíveis explicações.
A violência obstétrica pode ocorrer no acompanhamento antes, durante ou após o parto, seja com a mãe ou com o recém-nascido. Ela acontece quando os profissionais de saúde negam atendimento, não informam corretamente a paciente sobre os procedimentos e possíveis usos de medicamentos, impedem o direito à presença de um acompanhante, desrespeitam as escolhas da gestante, ofendem verbalmente, ameaçam e até cometem violências físicas.
Essas violências podem ocorrer com qualquer mulher, mas a raça influi diretamente no risco de sofrer violência obstétrica. O racismo faz com que algumas práticas discriminatórias sejam comuns no dia a dia da população negra e afeta, também, o atendimento às gestantes negras (pretas e pardas, de acordo com as definições do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE).
“O serviço privado atende pacientes majoritariamente brancas, e essas mulheres estão mais sujeitas à violência obstétrica por cesáreas desnecessárias e uso de ocitocina [hormônio que promove as contrações uterinas]. Em compensação, as mulheres negras em sua maioria são atendidas pelo SUS, e estão sujeitas a outros tipos de violências”, explica Marjorie Chaves, coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (PopNegra), mestre em história e doutoranda em política social pela Universidade de Brasília.
A elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, criada em 2009, foi um avanço no debate acerca do tema, mas sua implementação ainda não foi feita em todo o país. Dados levantados pela organização de mídia Gênero e Número revelam que somente 28% dos municípios do país haviam colocado a política em prática em 2019.
“O Estado reconhecer que existe racismo estrutural é importante para a gente discutir a saúde da população negra. Mas houve desmontes de 2016 pra cá, nos governos Temer e Bolsonaro”, aponta a coordenadora do Observatório.
Dor
“Existe um estereótipo da mulher negra parteira, que suporta a dor. Ignora-se as reclamações [da parturiente] e muitas vezes se força uma situação desconfortável”, afirma a coordenadora. É o que corrobora o estudo “A cor da dor”, realizado pela Fiocruz em 2017, que analisou entrevistas e avaliação de prontuários de 23.894 mulheres brasileiras.
Em casos em que foi realizada a episiotomia, um corte abaixo da vagina para facilitar o nascimento do bebê em partos normais, as mulheres negras receberam menos anestesia local quando comparadas às mulheres brancas.
De forma geral, a Organização Mundial da Saúde faz um alerta sobre a realização deliberada de episiotomias sem a real necessidade e com o intuito de acelerar o processo de parto, assim como sobre a execução de cesáreas desnecessárias no país.
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Mortes obstétricas
É considerada morte obstétrica aquela que ocorre durante a gravidez, o parto ou o puerpério. As mulheres negras têm duas vezes mais riscos de morrer durante o parto, de acordo com dados do Ministério da Saúde de 2008 a 2017, obtidos pela Gênero e Número.
“Esse é um dado que precisa ser analisado de forma sociológica. Existem muitos motivos que podem levar a isso, desde a falta de informação pré-natal até a condição de saúde da gestante”, alerta Marjorie. De acordo com o estudo da Fiocruz, as mulheres negras tiveram menos orientação sobre o início do trabalho de parto e possíveis complicações da gravidez.
A situação também se agravou com a chegada da pandemia. O Brasil é o país com maior número de mortes maternas por covid-19 no mundo. O risco de uma mulher grávida ou puérpera falecer pela infecção é de 7,2%, equivalente a três vezes o risco da população geral (2,8%).
“Se você pensar que a maior parte das mortes das gestantes por covid ocorre com pessoas atendidas pelo SUS, consequentemente as mulheres negras são maioria”, explica a doutoranda.
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Ofensas e violência física
Além do racismo estrutural, as mulheres negras também são vítimas de violência física e ofensas verbais nos consultórios. Marjorie Chaves afirma que esse tipo de racismo ocorre na mesma proporção em outros setores da sociedade, não só no meio da saúde, e nem sempre é de forma explícita, o que dificulta a identidicação.
Um levantamento feito pela Revista AzMina com mais de 100 mulheres identificou que 67,2% disseram ter sido vítimas de racismo durante o atendimento médico e 16,4% afirmaram que isso talvez tenha sido. Mais da metade dos casos ocorreu no atendimento obstétrico e ginecológico.
“Sabemos que no nível individual, quase sempre o agressor passa impune. Mas é importante que ele seja denunciado caso seja identificado”, recomenda Marjorie. Além dos meios comuns, a Ouvidoria do SUS pode ser contatada pela internet ou pelo número 136.
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Racismo institucional
Apesar das denúncias serem importantes, o racismo na saúde vai além dos profissionais. É uma questão estrutural e institucional, que influencia desde a formação dos médicos, que não recebem informações específicas sobre a população negra, até a construção e aplicação de políticas públicas em torno do Sistema Único de Saúde.
Iniciativas como o Observatório da Saúde da População Negra são essenciais para produzir pesquisas e análises sobre o tema. Entretanto, houve um corte de verbas do Governo Federal que impossibilitou dar continuidade nos projetos iniciados.
Mesmo assim, o Observatório segue realizando oficinas com médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde, sensibilizando-os sobre o racismo na área. “A maior dificuldade é os profissionais da saúde entenderem que não é uma crítica pessoal, é uma questão de estrutura e instituição”, explica Marjorie.
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