O CMV pode tanto causar apenas um mal-estar como comprometer órgãos do sistema nervoso central. Saiba mais nesta entrevista sobre citomegalovírus.
O citomegalovírus (CMV) pertence à família dos herpesvírus, a mesma dos vírus da catapora, do herpes simples, do genital e do herpes-zóster. O mais conhecido de todos é o herpes simples que provoca uma feridinha na boca, que muitos atribuem a uma possível febre intestinal.
Quando CMV penetra no organismo causa uma série de manifestações clínicas que variam muito de uma pessoa para outra. Às vezes, são doenças que não vão além de um discreto mal-estar e febrícula, sintomas comuns nas gripes e resfriados. Outras vezes, são doenças graves, que comprometem o aparelho digestivo, os pulmões, o sistema nervoso central e a retina.
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Nas pessoas saudáveis, a infecção inicial costuma ser assintomática. Algumas, porém, desenvolvem um quadro parecido com o da mononucleose infecciosa. O fato é que, uma vez infectadas, o citomegalovírus nunca mais abandona seus organismos. Fica ali, de forma latente, e qualquer baixa nas condições imunológicas do hospedeiro pode reativar a infecção.
CARACTERÍSTICAS
Drauzio – Quais são as principais características do citomegalovírus?
João Silva de Mendonça – O citomegalovírus pertence à família dos herpesvírus e traz consigo uma característica constante em todos eles: quem se infecta, passa a ter o vírus como companheiro definitivo pelo resto da vida. Fica portador de uma infecção crônica em estado de latência.
Na fase aguda da infecção, o citomegalovírus pode provocar algumas manifestações clínicas. Depois, permanece latente, mas, no futuro, pode comportar-se como oportunista, provocando doenças mais sérias e preocupantes, porque sua reativação está diretamente ligada à deficiência imunológica do hospedeiro.
TRANSMISSÃO
Drauzio – Como o CMV é transmitido?
João Silva de Mendonça – A transmissão do vírus pode ocorrer por diferentes formas: por via respiratória (tosse, espirro, fala, saliva, secreções brônquicas e da faringe, todas elas servem de veículo para eliminar o vírus e permitem a transmissão entre as pessoas) por transfusão de sangue e por transmissão vertical da mulher grávida para seu concepto intraútero. A transmissão também pode ocorrer por via sexual e, embora sem grande destaque nesse aspecto, ele se comporta como causador de uma doença sexualmente transmissível.
O adoecimento não é a regra. Na maior parte das pessoas infectadas, a doença é inaparente ou pode ser confundida com doenças benignas e de curta evolução.
Drauzio – Objetos como xícaras, copos, talheres, também podem ser veículos de transmissão do citomegalovírus?
João Silva deMendonça – Com menos frequência, mas é possível, uma vez que o CMV não se mostra susceptível a ponto de ser destruído pelas condições ambientais.
Drauzio – Você disse que o citomegalovírus é mais resistente, que sobrevive mais tempo no ambiente e pode ser transmitido pelas secreções brônquicas, pela saliva e por via sexual. Há algum jeito de escapar da infecção causada por esse vírus?
João Silva de Mendonça – Creio que não. É quase impossível viver sem ser infectado pelo CMV. Avaliações feitas em pessoas adultas mostram que a maior parte delas, em algum momento, foi infectada pelo citomegalovírus.
SINTOMAS
Drauzio – Qual é o período de incubação do vírus nos casos em que provoca manifestações clínicas?
João Silva de Mendonça – O período de incubação não é claro. Pode variar entre muitos dias e algumas poucas semanas.
Drauzio – Uma vez adquirida, a infecção pode passar despercebida?
João Silva de Mendonça – Pode ser inaparente desde o início. Ou seja, ao adquirir o vírus, a pessoa não terá obrigatoriamente a fase aguda de uma enfermidade. Prosseguirá sem sintomas nem manifestação nenhuma de doença e o vírus permanecerá em fase de latência a menos que, no futuro, uma deficiência imunológica do hospedeiro favoreça a oportunidade para sua reativação.
Drauzio – Se a infecção provocar manifestações clínicas, quais os principais sintomas?
João Silva de Mendonça – Na fase aguda, a manifestação clínica da infecção pelo citomegalovírus tem o nome pomposo de citomegalomononucleose, porque os sintomas são semelhantes aos da mononucleose infecciosa: febre, gânglios infartados, sobretudo no pescoço, comprometimento da garganta, do fígado e do baço, presença de linfócitos atípicos no hemograma.
Drauzio – Qual é a porcentagem dos adquirem o vírus e desenvolvem quadros clínicos semelhantes aos da mononucleose?
João Silva de Mendonça – O adoecimento não é a regra. Na maior parte das pessoas infectadas, a doença é inaparente ou pode ser confundida com doenças benignas e de curta evolução. Aqueles que vão ao médico e recebem o diagnóstico, em geral apresentam citomegalomononucleose, doença mais prolongada e duradoura, e representam não mais do que 10% do total de infecções.
IgM positivo sugere uma fase inicial de infecção agudíssima, porque ele é o primeiro anticorpo produzido, embora seja mal qualificado, mal formado. Já o IgG é o mais eficiente anticorpo de defesa e permanece no organismo da pessoa infectada para sempre.
Drauzio – Nos 10% que ficam doentes, qual e a duração média dos quadros que se caracterizam por gânglios infartados, febre, dor de garganta, aumento do fígado e do baço?
João Silva de Mendonça – A duração média da citomegalomononucleose é medida em várias semanas e, eventualmente, em alguns poucos meses. Neste último caso, os pacientes mantêm uma febrícula residual, por volta de 37,5º C, 37,6º C. Essa febre de lenta resolução e que pode persistir por meses, preocupa muito os pacientes que temem desenvolver um problema mais grave e de difícil tratamento.
Drauzio – Quando foi descrita a síndrome da fadiga crônica, aquela que se caracteriza por cansaço anormal, de longa duração e sem nenhuma justificativa, o citomegalovírus foi citado como possível responsável pela doença. Isso realmente acontece?
João Silva de Mendonça – A síndrome da fadiga crônica continua mal descrita. Alguns mecanismos de identificação dessa síndrome servem para avaliações epidemiológicas e não para efeito de diagnóstico, razão pela qual vários agentes infecciosos foram citados como hipoteticamente seus causadores. O citomegalovírus foi um deles, mas é improvável que tenha participação, pelo menos destacada, nessa doença.
DIAGNÓSTICO DE CITOMEGALOVÍRUS
Drauzio – Você disse que a mononucleose infecciosa e a toxoplasmose, por exemplo, podem provocar sintomas que se confundem com os da infecção pelo citomegalovírus. Como é feito o diagnóstico diferencial para ter certeza de que se trata desse vírus e não de outro?
João Silva de Mendonça – Felizmente, existe um exame laboratorial específico para pesquisar anticorpos contra o citomegalovírus. Os mais comuns pertencem à classe IgG (imunoglobulina G) e IgM (imunoglobulina M). Os anticorpos IgM estão presentes apenas na fase aguda da infecção e os IgG, que aparecem também na fase aguda, persistem por toda a vida da pessoa, constituindo o que se chama de cicatriz sorológica.
Drauzio – Vamos imaginar que o exame de sangue indique anticorpos IgG fortemente positivos e os IgM, negativos. O que indica esse resultado?
João Silva de Mendonça – Ele indica que a fase aguda já foi superada. No entanto, se o tipo IgG for ainda muito alto, pode-se suspeitar – mas nem de longe ter certeza – que a fase aguda não ficou para trás há muito tempo. E mais: presença de IgG positivo e de IgM negativo não permite correlacionar a infecção pelo citomegalovírus com o episódio da doença vigente.
Drauzio – E quando a pessoa tem IgM positivo e IgG negativo?
João Silva de Mendonça – IgM positivo sugere uma fase inicial de infecção agudíssima, porque ele é o primeiro anticorpo produzido, embora seja mal qualificado, mal formado. Já o IgG é o mais eficiente anticorpo de defesa e permanece no organismo da pessoa infectada para sempre.
AGENTES OPORTUNISTAS
Drauzio – Apesar de os sintomas da fase aguda desaparecerem, os citomegalovírus permanecem no organismo da pessoa infectada por toda a vida. Em que situações podem agir como oportunistas e reativar o quadro infeccioso?
João Silva de Mendonça – A reativação do quadro infeccioso pressupõe obrigatoriamente a deficiência imunológica. Atualmente, o exemplo mais característico de deficiência imunológica progressiva é o da infecção pelo HIV, o vírus da aids. Quando o grau desse tipo de deficiência atinge determinado ponto, está criada a oportunidade para os agentes na fase de latência reativarem-se. Por isso, o citomegalovírus é uma das principais ameaças à vida desses pacientes. Felizmente, hoje, podemos contar com tratamento específico para citomegalovírus rebeldes e recorrentes, se persistir o estado de imunodeficiência.
Drauzio – Como se manifesta a doença provocada pelo CMV em imunodeprimidos?
João Silva de Mendonça – Os sintomas variam, porque o citomegalovírus pode comprometer diferentes topografias do corpo humano. Estão entre os órgãos visados, por exemplo, boca, garganta, faringe, esôfago, estômago, intestino grosso e intestino delgado. As lesões frequentemente são ulceradas e muito dolorosas. Quando o vírus compromete a faringe e o esôfago, provoca doenças de difícil resolução, que exigem diagnóstico e tratamento específicos.
No entanto, a complicação mais comum provocada pelo CMV nos pacientes com aids é a coriorretinite, um comprometimento da coriorretina com prejuízo visual, que pode levar à cegueira se não houver tratamento para recuperar a competência imunológica do doente.
Drauzio – No início da epidemia da aids, muitos pacientes ficaram cegos por dificuldade de os médicos reconhecerem a presença do citomegalovírus no globo ocular.
João Silva de Mendonça – É verdade. Mas existem muitos pacientes que conseguiram ultrapassar essa dificuldade e chegaram à fase da terapêutica específica de alta potência contra o HIV. Esses recuperaram, pelo menos parcialmente, a competência imunológica e ficaram livres do risco de reativação do citomegalovírus, embora permaneçam sequelas dos processos infecciosos anteriores que se traduzem em prejuízos variáveis da visão.
Drauzio – As reativações do citomegalovírus em portadores do HIV provoca o aparecimento de úlceras que podem surgir em toda a extensão do aparelho digestivo. Quando acontecem no tubo digestivo alto, os sintomas são dor na passagem dos alimentos ou mesmo dor espontânea. Quando essas úlceras acometem o intestino, quais são os sintomas?
João Silva de Mendonça – A diarreia é o principal sintoma. O número de evacuações diárias compromete o bem-estar do paciente, sua qualidade de vida e seu estado geral, em virtude das perdas orgânicas que diarreias arrastadas provocam.
Drauzio – No começo da epidemia da aids, muitos pacientes magérrimos, caquéticos, eram portadores também de manifestações da infecção pelo citomegalovírus.
João Silva de Mendonça – O citomegalovírus ajudava a provocar esse quadro consuptivo.
Drauzio – Além das infecções oculares e do tubo digestivo, que outros danos o citomegalovírus pode provocar no organismo?
João Mendonça – Pode comprometer o fígado e o sistema nervoso central no nível do cérebro e da medula. Comprometimento medular pelo citomegalovírus pode levar à perda funcional dos membros inferiores (paraplegia), por exemplo, e a quadros graves de mielite e encefalite.
Drauzio – E os pulmões, também são vulneráveis?
João Silva de Mendonça – Não existem ainda evidências claras de que o citomegalovírus possa ser um vírus oportunista que acometa os pulmões. Embora encontrado em biópsias pulmonares, não é certo que esteja evolvido nesse comprometimento, uma vez que outros oportunistas também estão presentes.
TRATAMENTO
Drauzio – Em que consiste o tratamento da primeira infecção pelo citomegalovírus na fase aguda da doença?
João Silva de Mendonça – Nessa fase, não se usa antiviral. O tratamento é apenas sintomático e de sustentação. Recomenda-se repouso se a inflamação do fígado for importante e o paciente estiver astênico, cansado. Nada mais do que isso, e espera-se que a doença siga seu curso natural, de resolução espontânea.
Drauzio – Por que não se usa antiviral na fase aguda?
João Silva de Mendonça – Porque a benignidade da doença não justifica o uso de um medicamento potencialmente muito tóxico, aplicado por via intravenosa, que exige internação hospitalar do paciente ou, pelo menos, atendimento do tipo homecare.
Drauzio – Quando deve ser indicado o uso do antiviral?
João Silva de Mendonça – O antiviral fica reservado para as formas graves da doença. Existem dois tipos de antivirais: o Ganciclovir e o Foscanet, este mais tóxico ainda do que o anterior. A grande preocupação é com a toxicidade sobre os glóbulos sanguíneos e os rins que esses medicamentos provocam. Por isso, exigem cuidado na administração intravenosa e acompanhamento clínico criterioso.
Drauzio – Qual é a duração do tratamento?
João Silva de Mendonça – O tratamento deve ser mantido por pelo menos um mês. São aplicações diárias, o que é um complicador, mas a gravidade da doença justifica esse tipo de intervenção.
Drauzio – Além da aids, quais as situações de imunodeficiência em que as reativações da infecção pelo citomegalovírus podem acontecer?
João Silva de Mendonça – Todas as doenças neoplásicas, seja pelo tratamento imposto, seja pela própria doença, podem precipitar a reativação das infecções pelo citomegalovírus.