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Genética

Mulheres XY: o que é a síndrome da insensibilidade androgênica completa?

Publicado em 22/01/2025
Revisado em 22/01/2025

Antigamente chamada de síndrome de Morris, a síndrome da insensibilidade androgênica ocorre por causa de uma falha no receptor dos hormônios androgênicos.

 

Em 1953, o ginecologista e professor universitário John McLean Morris identificou e descreveu pela primeira vez uma condição rara observada em algumas de suas pacientes. Elas apresentavam características de uma mulher, como genitália externa feminina e desenvolvimento mamário, mas tinham também glândulas sexuais masculinas na parte interna do abdômen ou no canal inguinal. Conhecida até recentemente como síndrome de Morris, a condição passou a ser chamada de síndrome de insensibilidade androgênica completa (CAIS, na sigla em inglês). 

A médica Luciana Barros Oliveira, professora associada de Fisiologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutora em Endocrinologia Reprodutiva pela Harvard University, explica que a condição ocorre por causa de uma falha no receptor dos hormônios androgênicos (responsáveis pela produção de características sexuais masculinas), que os impedem de cumprir seu papel no organismo – ou seja, dar os traços masculinos para o indivíduo. 

“Uma forma simples de explicar é com o exemplo da chave em uma fechadura. Os hormônios funcionam como uma chave, e os receptores como uma fechadura. No caso da síndrome, a chave funciona e há produção dos hormônios, mas o problema está na fechadura, que não está funcionando e impede o hormônio de se ligar e realizar sua função. Como consequência, os efeitos dos hormônios masculinizantes (como testosterona e di-hidrotestosterona) não ocorrem, a masculinização durante a vida embrionária não acontece e o corpo se desenvolve com características 100% femininas”, diz. 

Na prática, portanto, o indivíduo tem o fenótipo (características externas) de uma mulher e genótipo (composição genética) de um homem – ou seja, tem um cariótipo (conjunto de cromossomos) 46,XY. Pessoas com a síndrome – que faz parte de um grande grupo de condições chamadas distúrbios de diferenciação sexual (DDS) – também são identificadas como intersexo. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), entre 0,05% e 1,7% da população nascem com essas características.

 

Por que a síndrome da insensibilidade androgênica ocorre?

A condição é causada por mutações no gene que codifica o receptor androgênico (uma proteína), localizada no cromossomo X. Um gene é uma seção específica do DNA que contém instruções detalhadas para a produção de proteínas, funcionando como uma espécie de “receita de bolo”. Quando ocorrem alterações nessa receita – como a adição ou remoção de “ingredientes” – o produto final, nesse caso o receptor, não é formado conforme o padrão moldado pela evolução.

Essas mutações podem ser hereditárias, transmitidas pela mãe, ou surgir espontaneamente. “Embora seja genética, em muitos casos a síndrome não é hereditária, sendo resultado de alterações novas que ocorreram exclusivamente naquele indivíduo”, explica a dra. Luciana, que menciona que fatores externos, como radiação ou exposição a substâncias químicas, podem contribuir para essas modificações, mas a influência exata desses elementos ainda está sendo estudada. 

Segundo a dra. Elaine Frade Costa, coordenadora da Comissão de Endocrinologia Ambiental da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), essa falha ocorre durante a embriogênese (processo de desenvolvimento de um embrião a partir do zigoto, a célula formada da junção entre espermatozoide e óvulo). 

“Até a 12ª semana de gestação, todos os fetos possuem características semelhantes, sendo que a diferenciação sexual começa por volta da 8ª semana. Então, até esse ponto, não há distinção significativa entre os fetos. Para a menina com essa condição ou para a sua família, a gente explica que, durante esse processo de diferenciação das genitálias masculina e feminina, ocorreu uma interrupção ou alteração que impediu a completa diferenciação para o lado masculino, direcionando o desenvolvimento para o lado feminino”, comenta. 

 

Tipos

A síndrome da insensibilidade androgênica pode ser completa, parcial ou leve. A forma completa, cujo nome era síndrome de Morris, é caracterizada pela genitália externa feminina, poucos pêlos pubianos ou falta total deles, vagina em fundo cego e ausência de útero, segundo estudos. Indivíduos costumam ter excelente feminização na puberdade, com mamas normais ou aumentadas, contornos corporais femininos e inexistência de acne. 

No entanto, nos últimos anos, os pesquisadores também identificaram variações na síndrome. Na forma parcial (PAIS, na sigla em inglês), a pessoa apresenta graus variáveis de masculinização, podendo ter genitália ambígua. Já na leve (MAIS, na sigla em inglês), os órgãos genitais são normalmente masculinos, com indivíduos geralmente inférteis. 

        Veja também: Conduta para lidar com pessoas intersexo no nascimento divide especialistas

 

Diagnóstico

A descoberta da síndrome da insensibilidade androgênica normalmente ocorre em dois momentos.

Na infância: Muitas vezes, a condição é identificada por meio de uma hérnia inguinal que na verdade corresponde a testículos não descidos. “Os pais podem levar a criança ao médico por causa de dois caroços palpáveis na região inguinal. Ao investigar, descobrimos que são gônadas em uma menina com genitália feminina”, diz a dra. Elaine.

Na puberdade: Meninas com a condição apresentam desenvolvimento de mamas e curvas corporais, mas não menstruam devido à ausência de útero. “Essas mulheres têm níveis de testosterona muito elevados, que são convertidos em estradiol, promovendo o desenvolvimento feminino. No entanto, procuram atendimento médico por amenorreia (ausência de menstruação)”, explica Elaine.

Em relação ao diagnóstico, segundo a dra. Luciana, a primeira etapa é realizar um exame cariótipo para verificar se a pessoa é 46,XX ou 46,XY. Em seguida, os médicos também fazem dosagem hormonal para observar os níveis de testosterona. O nível normal de testosterona é em torno de 900 ng/dL. Pessoas com essa síndrome, no entanto, tem níveis elevados que podem chegar a 3 mil, pois o receptor não funciona. 

Além disso, uma ultrassonografia pélvica é essencial para avaliar a genitália interna e entender a ausência de menstruação. “O exame permite verificar se há útero ou se a amenorreia é causada por sua ausência. Esse é um passo indispensável no diagnóstico de casos intersexo”, segundo a dra. Luciana.

 

Identidade de gênero

A  abordagem com a condição é multidisciplinar, envolvendo especialistas como psicólogos, assistentes sociais, endocrinologistas, geneticistas e cirurgiões. O primeiro passo é definir a identidade de gênero. A equipe trabalha em conjunto com a família para definir o melhor caminho a seguir. A dra. Luciana destaca que “a decisão é sempre compartilhada, mas quem cria a criança é a família, então eles precisam estar no centro desse processo”.

As mulheres com a forma completa da condição se identificam com o gênero feminino. “Todas as pacientes que tratamos com insensibilidade androgênica completa se identificam como mulheres. Nos casos de genitália atípica, comuns na forma parcial, a identificação pode variar. Não existe essa regra de que o indivíduo XY tem que ficar no sexo masculino”, fala a dra. Elaine. 

A dra. Luciana conta que suas pacientes também se identificam como mulheres. Porém, falou, discussões polarizadas sobre identidade de gênero e biologia ocorrem frequentemente na sociedade, especialmente em um cenário político e religioso cada vez mais acirrado. “A decisão sobre como se identificam depende de cada pessoa. O biológico, para a gente, pode ser secundário, porque envolve tantos fatores que não dá pra simplificar.”

 

Tratamento

De acordo com a dra. Elaine, a mulher com síndrome da insensibilidade androgênica tem vida normal e com qualidade de vida. Não há necessidade de reposição hormonal, desde que os testículos permaneçam no corpo, pois eles já produzem hormônios suficientes para o organismo funcionar adequadamente. Antigamente, os testículos eram removidos precocemente para prevenir câncer, mas pesquisas recentes mostram que meninas com a síndrome completa têm um fator de proteção que reduz esse risco.

A dra. Luciana diz que, por não sofrerem o efeito da testosterona no corpo, as mulheres com cariótipo 46,XY até apresentam vantagens em relação às mulheres com cariótipo 46,XX. “Eu às vezes brinco com as minhas pacientes que elas são as mulheres evoluídas do futuro, pois elas não têm cólica, elas não precisam fazer depilação, elas têm uma pele linda e um cabelo maravilhoso”.

No entanto, caso o testiculo seja retirado, é preciso fazer a reposição de estrogênio (produzido a partir da testosterona em um processo natural do organismo) para manter a saúde óssea, cardiovascular e o perfil lipídico, já que esses hormônios têm funções que vão além das características sexuais secundárias, de acordo com a dra. Luciana. 

Nas formas parciais da síndrome, disse a especialista, as intervenções têm sido evitadas ao máximo. Quando ocorrem, elas buscam ser as menos invasivas possíveis, permitindo maior flexibilidade no futuro. O consenso atual, diz, é priorizar a saúde e o bem-estar da criança ao longo do tempo, mantendo as opções abertas e respeitando ao máximo a sua autonomia futura. 

        Ouça: Terapia hormonal – DrauzioCast #182

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