Abstinência sexual não serve como política pública de saúde | Coluna

adolescentes reunidos tirando selfie. abstinência sexual não é política pública

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A abstinência sexual não pode ser estratégia isolada para reduzir as altas taxas brasileiras de gravidez na adolescência.

 

É consenso entre especialistas de diversas áreas que a gravidez na adolescência deve ser evitada. Profissionais de saúde apontam que as mulheres que têm filhos entre 15 e 19 anos sofrem um risco maior de desenvolver hipertensão na gravidez, que pode resultar em pré-eclâmpsia e eclâmpsia, condições graves que põem em risco a vida da mãe e do feto.

Em entrevista a este Portal, a médica Evelyn Eisenstein, membro do Departamento Científico de Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), afirmou que cerca de 20% da mortalidade infantil no Brasil decorre do óbito precoce de bebês nascidos de mães nessa faixa etária. Há ainda o risco maior de desenvolver infecções, de prematuridade, síndromes hemorrágicas, entre outros.

Do ponto de vista socieconômico, as adolescentes que engravidam apresentam taxas mais altas de evasão escolar, o que leva, conforme mostram diversos estudos, ao aumento dos riscos de desemprego, à dependência financeira dos familiares, à perpetuação da pobreza e da educação limitada. “Muitas adolescentes têm o segundo filho apenas 2 anos após o nascimento do primeiro”, revela a ginecologista e obstetra Albertina Duarte, coordenadora do Programa Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo.

Veja também: Entrevista sobre gravidez na adolescência

No Brasil, houve 435 mil nascimentos de mães de 15 a 19 anos em 2018, segundo o Ministério da Saúde. Em 2016, a taxa de natalidade de gravidez na adolescência no país foi de 68,4 para cada mil adolescentes dessa faixa etária, a enorme maioria pobre e negra, segundo a Organização Mundial da Saúde. A taxa mundial é de 44 para cada mil adolescentes, bem mais baixa que a brasileira.

Assim, os esforços para reduzir o índice de meninas grávidas são bem-vindos. Apesar disso, vários especialistas e entidades de saúde se manifestaram contrários à sinalização da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, de que indicaria a abstinência sexual como política pública do governo para prevenir a gravidez entre jovens. O barulho foi tanto que no dia 3/2/20, quando a Campanha Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência foi lançada publicamente de fato, a palavra “abstinência” não foi sequer citada pelo governo federal.

Ainda assim, o conteúdo da campanha “Adolescência primeiro, gravidez depois – tudo tem seu tempo” tampouco menciona o uso de contraceptivos e continuou a gerar críticas de especialistas, que citaram os problemas enfrentados por Uganda e Estados Unidos, países que colocaram em prática a chamada estratégia ABC (sigla em inglês), que propõe a abstinência sexual, a fidelidade e o uso de preservativo como política pública para reduzir gravidez e HIV.

 

Uganda

 

No início da década de 1990, Uganda apresentava uma alta taxa  de infecção pelo HIV: 15% da população desse país africano vivia com o vírus. Em 2001, esse índice caiu para 5%. Análises precipitadas não tardaram a apontar a estratégia ABC como principal responsável pela queda.

No entanto, o infectologista da USP Rico Vasconcelos afirma que é importante considerar outras medidas tomadas pelo governo ugandês. De fato, um estudo revela que a partir de 1986 o país investiu em campanhas de educação e conscientização, melhorou a segurança do seu sistema de transfusões de sangue, aumentou o número de testes de HIV e incluiu estratégias de aconselhamento, de prevenção de transmissão materno-fetal e de equidade de gênero.

A entidade Human Rights Watch também aponta que há poucas evidências de que a estratégia de abstinência tenha sido responsável por reduzir a incidência de HIV em Uganda. Além disso,  investir apenas na abstinência como prevenção deixa, segundo a organização, a população mais pobre, as mulheres vítimas de violência doméstica, as trabalhadoras sexuais, homens que fazem sexo com homens e outras populações mais vulneráveis sem opção para evitar a gravidez e as IST.

“Sempre que na história da epidemia do HIV a gente achou que uma estratégia sozinha ia resolver tudo, a gente quebrou a cara. É preciso partir do reconhecimento de que pessoas vivem contextos diferentes de vida e necessitam de estratégias de prevenção diversas”, afirma o dr. Rico.

De fato, essa também é a orientação da Sociedade Americana para Saúde e Medicina Adolescente. Em nota divulgada em 2017, a Sociedade criticou a política de abstinência por não ser baseada em evidências e recomendou estratégias combinadas para reduzir IST e gravidez precoce.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também não recomenda a abstinência para diminuir a alta taxa de gravidez de adolescentes em Uganda, que atinge 1/4 das adolescentes do país.

 

Abstinência falha

 

Nos Estados Unidos, cerca de 12% das jovens afirmam praticar a abstinência sexual, em geral por motivos religiosos. A administração do ex-presidente George Bush investiu cerca de 1,5 bilhão na política de abstinência sexual como único método para reduzir a gravidez fora do casamento e as IST.

No entanto, uma meta-análise revelou que não há evidências que a estratégia de abstinência tenha contribuído para retardar o início da vida sexual ou para reduzir o número de parceiros entre adolescentes.

O professor de sociologia da Universidade de Massachusetts, nos EUA, Anthony Paik liderou um renomado estudo que revelou que adolescentes que se comprometeram a adiar o início da vida sexual e quebraram a promessa tinham mais risco de engravidar e contrair HPV do que adolescentes que não prometeram abster-se sexualmente.

No entanto, a maioria dos jovens que dizem ser abstêmios não cumpre a promessa. Os achados do estudo mostram que as jovens que não pensam na abstinência como meio de prevenção tendem a ter mais informações sobre sexo e acerca de métodos anticoncepcionais.

Nenhum especialista é contrário a que se adiei o início da vida sexual. Para viver uma sexualidade plena é necessário autonomia, e é difícil imaginar que adolescentes muito jovens possam desenvolvê-la em sua plenitude. O que a maioria afirma é que essa não pode ser a única estratégia de redução da gravidez precoce, pois não serve para todos.

 

São Paulo

 

O estado de São Paulo é um bom exemplo de como aliar acesso à saúde e à informação bem direcionada para reduzir os índices de gestação precoce. A incidência de gravidez na adolescência no Estado caiu 50% em 20 anos, de acordo com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “Iniciativas de conscientização coletiva e a consolidação de serviços específicos para o público adolescente, a exemplo das Casas do Adolescente, bem como a distribuição gratuita de preservativos e contraceptivos em todo o estado, foram fundamentais para a redução dos casos”, revela a dra. Albertina, que trabalha com adolescentes há 40 anos.

“A gravidez nessa faixa ocorre por vários motivos, é algo multifatorial. É característico dessa fase ter pouca habilidade para lidar com a vida sexual e a vida como um todo. Adolescente é contestador, sempre que a política envolve a proibição, eles relutam em aceitá-la”, completa a ginecologista.

 

Sociedade Brasileira de Pediatria e OMS

 

A Sociedade Brasileira de Pediatria lançou no início de 2020 um documento científico em que afirma: ‘Compreende-se que a abstinência das relações sexuais pode ser uma escolha saudável para os adolescentes desde que seja uma decisão pessoal deles e não uma imposição ou única opção oferecida, respeitando-se seu direito à autonomia. Embora teoricamente protetoras, as intenções de abstinência geralmente falham, pois a mesma não é mantida e estes programas não são eficazes para retardar o início das relações sexuais ou alterar comportamentos de risco”.

A Sociedade reitera que a educação é essencial para melhorar a saúde individual e coletiva. “Nesse sentido, é importante considerar a educação abordando sexualidade e saúde reprodutiva, tanto no meio familiar quanto na escola, com abordagem científica, e nos programas de promoção à saúde com a criação de espaços de comunicação e implementação das políticas públicas.”

Na mesma linha, a OMS sugere como medidas de prevenção da gravidez na adolescência em países em desenvolvimento que se diminua os índices de casamento para menores de 18 anos, incentive-se o uso de métodos anticoncepcionais e se reduza a taxa de estupro e de aborto inseguro. A Organização sequer menciona a abstinência em suas diretrizes.

De fato, o que a literatura baseada em evidências e os países que têm baixo índice de gravidez na adolescência mostram é que educação formal e sexual, acesso a serviços específicos a esse público, a contraceptivos e a abortamentos seguros ajudam a reduzir a ocorrência de gestação precoce. Nesse sentido, não há muito o que inventar.

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