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O cigarro e a boca | Entrevista

close de boca de homem soltando fumaça de cigarro
Publicado em 11/10/2011
Revisado em 11/08/2020

A fumaça do cigarro e seus componentes provocam ação direta na boca e em todo o organismo.

 

Alguns psiquiatras elaboraram longos estudos a respeito da sensualidade associada ao ato de fumar e estabeleceram uma relação entre o gestual de levar o cigarro à boca, o jogo dos lábios e as fases mais precoces da sexualidade.

Muitos são os motivos que podem levar uma pessoa ao hábito de fumar. No entanto, ninguém discute que a fumaça do cigarro e seus componentes – são mais de 4 mil substâncias nocivas – provocam ação deletéria não só na cavidade oral, mas em todo o organismo.

 

Veja também: O cigarro e o aparelho respiratório

 

AGRESSIVIDADE DA FUMAÇA DO CIGARRO

 

Drauzio – Quais os danos causados pela fumaça carregada de agentes químicos que o fumante joga na boca dezenas ou mesmo centenas de vezes ao dia?

Orlando Parisi – A primeira coisa a considerar é que na fumaça do cigarro não há apenas nicotina e alcatrão. Testes laboratoriais demonstram nela existirem centenas de compostos comprovadamente cancerígenos que agridem a mucosa da boca. Além disso, ela sai do cigarro muito quente. Portanto, os danos à mucosa não advêm apenas dos agentes químicos, mas também da agressão térmica resultante da alta temperatura em que a fumaça é absorvida.

Há, ainda, outra agravante. Associar tabaco a bebidas alcoólicas implica consequências dramáticas, porque o álcool ajuda a dissolver tanto a nicotina quanto as demais substâncias nocivas presentes no cigarro, aumentando sua concentração. Mais concentrados, esses compostos irritam a mucosa e favorecem o aparecimento de lesões na boca que, com o passar do tempo, podem tornar-se malignas. Quem já não viu um fumante, numa roda social, dar uma tragada, pegar um copo de uísque ou de outra bebida qualquer, levá-lo à boca, beber um gole, descansar o copo sobre a mesa e dar nova tragada sem dar-se conta do mal que está causando ao próprio organismo.

 

Drauzio — O cigarro é uma droga compulsiva, que provoca repetidas, intensas e desagradáveis crises de abstinência. Como ex-fumante, com toda a sinceridade, não acredito existir, hoje em dia, dependente de nicotina que não queira abandonar de vez o cigarro. Como orientar essas pessoas?

Orlando Parisi — De fato, deixar de fumar não é fácil. Já assisti a todos os tipos de tentativas e de fracassos. Por isso, encaminhamos essas pessoas para grupos de apoio nos quais encontrarão profissionais especializados para ajudá-las. Se já houver uma lesão pré-neoplásica, esse recurso assume valor inestimável, porque parar de fumar é questão de sobrevivência.

 

LESÕES PREDISPONENTES PARA O CÂNCER DE BOCA

 

DrauzioVocê poderia começar falando das lesões pré-malignas que aparecem na boca?

Orlando Parisi – O câncer da boca basicamente incide sobre a população masculina, na proporção de três homens para cada mulher. Por isso, o cuidado maior deve recair sobre os homens na quarta década de vida e tabagistas. Neles, toda a lesão branca ou vermelha que surgir na boca precisa ser vista e acompanhada por um médico. O termo científico para tais lesões é leucoplasias com eritoplasias. São placas brancas, bem delimitadas, com aspecto mais ou menos característico.

 

Drauzio — Elas aparecem mais frequentemente em que lugar da boca?

Orlando Parisi — Aparecem na mucosa da bochecha, na língua ou no assoalho da boca e todo o fumante que notar sua presença deve procurar auxílio médico o mais depressa possível.

Gostaria de ressaltar, porém, que se atribui maior importância a essas lesões predisponentes para a gênese do câncer nos Estados Unidos e na Europa do que nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Aqui, talvez por falta de rastreamento populacional, em 85% dos casos, quando a doença é diagnosticada, o tumor está em fase avançada localmente na boca ou já atingiu os gânglios do pescoço. A terapia indicada nesse estágio da evolução pressupõe cirurgias mais radicais com impacto negativo no resultado final, no alto custo e no comprometimento da aparência física.

 

Drauzio Essas lesões sangram necessariamente?

Orlando Parisi — Elas não sangram necessariamente. Na verdade, são muito heterogêneas na apresentação. Algumas formam um tumor na boca; outras, uma ferida ulcerada ou uma placa completamente assintomática. O aspecto é bastante variável. Por isso, qualquer coisa anormal que se note na boca, em especial na borda da língua, é motivo de preocupação e um médico deve avaliar o problema.

 

Drauzio — Os tumores de boca começam sempre por essas lesões ou eles podem instalar-se sem que elas surjam antes?

Orlando Parisi Às vezes, eles se instalam diretamente sem que o doente perceba a presença de uma lesão pré-existente.

De modo geral, estima-se que aproximadamente 90% dos portadores de tumores malignos de cabeça e pescoço ligados ao consumo de tabaco e álcool sejam tabagistas e 70% ingiram álcool com frequência.

EXAMES PERIÓDICOS COM ESPECIALISTAS

 

Drauzio — O fumante, mesmo que não tenha nada, de quanto em quanto tempo precisa ir a um especialista para examinar a boca?

Orlando Parisi — No mínimo, uma vez por ano, de preferência a cada seis meses, o fumante deve submeter-se a exame rigoroso da cavidade oral. No Brasil, quem examina a boca quase sempre é o dentista. Infelizmente, nem todas as faculdades de odontologia preparam esses profissionais para identificar lesões que predispõem ao câncer. Por outro lado, quantas vezes a pessoa vai a um clínico geral que a examina com cuidado, mas não usa o abaixador de língua para olhar a boca o que é uma pena, pois talvez esse fosse o rastreamento populacional mais barato e simples de fazer, já que requer apenas uma lanterninha, o abaixador de língua e o olhar atento de um profissional.

Desse modo, não são raros os pacientes que, pouco tempo depois de uma consulta médica, perceberam alguma coisa estranha na boca durante a higiene oral, ou, pior, pessoas com lesões embaixo da dentadura que procuraram o dentista e tiveram a prótese desbastada para acomodar melhor o tumor que crescia.

 

Drauzio — Já vi casos de doentes com tumor embaixo da língua, acompanhados por otorrinolaringologistas, que nunca a tinham levantado para verificar se havia algo diferente naquele lugar.

Orlando Parisi — Porque isso pode acontecer, é sempre bom repetir que qualquer coisa estranha que apareça na boca, principalmente na dos fumantes, deve ser vista com muita seriedade.

 

Veja também: Os micróbios e a boca

 

INCIDÊNCIA DO CÂNCER DE BOCA

 

Drauzio — No Brasil, o álcool é barato e muita gente bebe demais. É interessante notar, porém, que nem todos os fumantes têm o hábito de beber. No entanto, quem bebe, normalmente fuma muito. Qual o reflexo desse comportamento na ocorrência do câncer de boca?

Orlando Parisi De modo geral, estima-se que aproximadamente 90% dos portadores de tumores malignos de cabeça e pescoço ligados ao consumo de tabaco e álcool sejam tabagistas e 70% ingiram álcool com frequência. Na verdade, existem três fatores de risco principais para essa doença: tabaco, álcool e má higiene oral.

Não sei se existem dados confiáveis no Brasil inteiro, mas, na região metropolitana da cidade de São Paulo, ocorre a segunda maior incidência de câncer de boca do mundo. Só perdemos para a Índia. Em termos estatísticos, isso significa que em cada 100 mil pessoas, cerca de 19 desenvolvem câncer de boca.

Outro dado interessante baseia-se nas lesões predisponentes para o câncer de boca. No Estado de São Paulo, a estimativa é que haja 5 mil novos casos de câncer de boca por ano. Se considerarmos que a cada caso correspondem outros cinco de lesões predisponentes que podem demorar 20 anos para transformar-se num câncer, é possível imaginar que, em algum momento dessa etapa evolutiva da carcinogênese no Estado, haverá seiscentas mil pessoas com risco de desenvolver câncer ou com a doença já instalada.

 

Drauzio Haverá especialistas em número suficiente para atender tal demanda?

Orlando Parisi — Em termos estaduais, não sei avaliar, mas na cidade de São Paulo é grande o número de cirurgiões de cabeça e pescoço. O grande problema, porém, é que a população de risco pertence, em regra, a um extrato social economicamente mais desfavorecido, que enfrenta enormes obstáculos para receber um serviço de saúde de qualidade. Muitas vezes, quando esses pacientes são atendidos, as lesões já estão em fase bem avançada. Para se ter uma ideia, há números que evidenciam a gravidade da situação.

No norte da Europa e nos Estados Unidos, os programas de rastreamento populacional não obtiveram resultados significativos na redução da curva de mortalidade ou da incidência do câncer de boca, mas conseguiram diagnosticar 85% das lesões ainda na fase pré-maligna, evitando que muitas evoluíssem mal. Aqui, ao contrário, os mesmos 85% representam as lesões malignas que chegam para começar o tratamento em estágio avançado. Por isso, defendo que uma política firme e determinada de rastreamento alcançaria resultados importantes na prevenção do câncer de boca.

Basicamente, o cigarro provoca uma inflamação crônica na mucosa que, irritada, favorece o aparecimento de lesões predisponentes.

AUTOEXAME E POPULAÇÃO DE RISCO

 

Drauzio Você acha que o autoexame, isto é, a pessoa examinar a própria boca diante do espelho, abaixando a língua com uma colher e erguendo-a em seguida, ajudaria na prevenção da doença?

Orlando Parisi Acho útil, mas é pouco provável que o autoexame ajude a pessoa a diferenciar as lesões benignas das malignas por causa da heterogeneidade de aspecto dessas lesões. Em relação ao câncer de mama, por exemplo, é fácil explicar à mulher a importância de apalpar o próprio seio e, notando algum caroço, procurar imediatamente o médico. Na boca, entretanto, não existe um único sinal característico de lesão maligna. Por isso, insisto: percebendo alguma coisa anormal na boca, a pessoa deve procurar um médico.

Acredito, também, em campanhas de esclarecimento cujo objetivo seja convencer os fumantes acima de 40 anos e as pessoas com história de parentes próximos que tiveram câncer de cabeça, pescoço ou de boca, da necessidade de exames periódicos, uma vez que há certa propensão familiar para essa espécie de tumor.

Outra população particularmente de risco é a que já teve algum tipo de câncer de cabeça ou pescoço e está curada. A recidiva costuma ocorrer em mais ou menos 5% dos pacientes a cada ano que passa. Por isso, o acompanhamento médico tem de ser permanente nesses casos.

 

Drauzio — É importante frisar que dr. Parisi está se referindo exclusivamente ao câncer nesse local. Isso não vale para outros tumores. Por exemplo, quem se curou de um tumor de estômago e está curado, dificilmente terá outro câncer gástrico. Nos tumores de cabeça e pescoço, em 5% dos casos ao ano, existe a possibilidade de um segundo tumor primário desenvolver-se nas proximidades do lugar que já foi tratado. Por isso, mesmo os pacientes já curados não podem descuidar-se.

 

ERRADICAÇÃO DO CÂNCER DE BOCA

 

Drauzio — O que aconteceria se, num passe de mágica, o cigarro desaparecesse da face da Terra?

Orlando Parisi Na área médica, o desemprego seria muito grande, porque haveria menos doentes para atender, já que o cigarro responde pelo surgimento de inúmeras doenças.

No caso específico dos tumores de boca, sem dúvida, eles seriam muito raros. E isso é apenas parte da equação. Diminuiria, também, a incidência de câncer de pulmão e de doenças do aparelho cardiorrespiratório, para não mencionar as outras patologias decorrentes da adição do fumo.

Se todos levassem a sério os danos que causa à saúde, o cigarro estaria proibido no mundo inteiro. Mas há quem defenda a não intervenção sobre o tabagismo. O argumento está nos impostos que sobre ele incidem, uma fonte de arrecadação nada desprezível. A mais otimista das análises, porém, indica que para cada real gerado pelo tabaco, o governo gasta R$1,60 com a saúde dos fumantes. São cifras cruas que consideram tão-somente as despesas com saúde sem levar em conta outros gastos maiores. Por exemplo, quanto despendeu a sociedade para formar o indivíduo que morre de câncer no apogeu profissional, aos 50 e poucos anos? Quanto vale o tempo que os doentes perdem de trabalho produtivo?

 

APARÊNCIA DA BOCA DO FUMANTE

 

Drauzio — Só de olhar a boca de uma pessoa, você é capaz de dizer se ela é fumante ou não?

Orlando Parisi — Sempre há alterações significativas na boca do fumante. A primeira é a halitose. O mau hálito dos fumantes tem características muito peculiares. Depois existem os problemas dos dentes e das gengivas.

Basicamente, o cigarro provoca uma inflamação crônica na mucosa que, irritada, favorece o aparecimento de lesões predisponentes. Constatado o problema, a pessoa deve ser avisada do risco que está correndo se continuar fumando.

 

Drauzio Você nota essas alterações mesmo em fumantes jovens de 18 ou 20 anos?

Orlando Parisi — É claro que as alterações são menores em quem fuma há pouco tempo. No entanto, quanto mais longa a exposição ao tabaco, mais evidentes elas serão. Cada indivíduo tem uma capacidade diferente para desenvolver ou não um câncer ligado à dependência de nicotina. Na realidade, já se tentou correlacionar linearmente tempo e exposição ao tabaco para justificar o surgimento de um tumor, mas não se chegou a nenhum resultado preciso, porque o metabolismo dos agentes carcinogênicos do cigarro difere de pessoa para pessoa. Sabe-se que certos indivíduos herdaram características genéticas que os tornam menos vulneráveis aos efeitos do cigarro. Todo doente, aconselhado a parar de fumar, conta a história de um tio que viveu até os 90 anos fumando dois maços por dia. Esse privilégio de alguns está longe de transformar-se numa regra e não garante, em hipótese alguma, que o risco não exista para os outros membros da família.

 

USO DE PRÓTESES DENTÁRIAS

 

Drauzio Além do cigarro e das concentrações de casos em certas famílias, há outras causas do câncer de boca? As próteses, que ferem repetidamente a boca, por exemplo, podem provocar o aparecimento de um tumor?

Orlando Parisi — Esse é um dado polêmico. Antigamente se acreditava que havia uma correlação linear entre o mau ajuste das próteses dentárias e o câncer de boca. Todavia, recentemente, foram divulgados estudos criteriosos que não conseguiram comprovar essa hipótese. Pessoalmente não acredito nela, uma vez que, suspendendo o atrito traumatizante, a ferida muitas vezes cicatriza. O problema está no fato de que, em geral, convive com prótese mal ajustada o indivíduo sem condições de usufruir assistência dentária adequada. Além disso, seu uso pode estar associado ao tabagismo e ao alcoolismo, estes, sim, fatores de risco para o câncer em geral e o câncer da boca em particular. A prótese defeituosa pode causar ferimentos que, continuamente expostos às agressões químicas e térmicas provocadas pelo cigarro, transformam-se em lesões predisponentes. Esse é um perigo real a que se expõem inúmeras pessoas.

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