Mononucleose (febre do beijo) | Entrevista

Ilustração digital de homem com mão na garganta e destaque em vermelho indicando dor.

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Publicado em: 10 de outubro de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

O tratamento da mononucleose é fundamentalmente sintomático. Veja a entrevista completa com especialista.

 

Também conhecida como a doença do beijo, a mononucleose costuma acometer os adolescentes, quando despertam para a vida sexual. Provoca febre, enfartamento dos gânglios do pescoço e das axilas, comprometimento do fígado e do baço, entre outros sintomas.

O vírus responsável pela doença é o Epstein-Barr, da família Herpesviridae, transmitido pela saliva contaminada num contato íntimo entre as pessoas, daí o nome doença do beijo.

O diagnóstico pode ser feito por um exame de sangue específico. Quando adultos fazem esse exame, a maioria fica sabendo que foi infectada pelo vírus e teve a doença no passado sem se dar conta de sua atividade, pois os sintomas foram confundidos com os de infecções banais comuns na infância e na adolescência. Em alguns casos, porém, os quadros são mais intensos e prolongados, a febre é alta e custa a desaparecer, o que assusta muito os pacientes e seus familiares.

 

TRANSMISSÃO DO VÍRUS

 

DrauzioÉ justificada a fama de doença do beijo que a mononucleose tem?

João Silva de Mendonça – É uma fama justificada. Tendo em conta que a saliva é um dos veículos de eliminação do vírus, o beijo facilita sua transferência para a pessoa que ainda não foi infectada. Além disso, como a mononucleose tem pico de incidência entre os 15 e os 25 anos, ou seja, entre adolescentes e adultos muito jovens, o beijo está diretamente implicado na transmissão do vírus pelo menos nas populações socioeconômicas mais diferenciadas.

 

Drauzio – Para o vírus ser transmitido é necessário haver contato íntimo entre as pessoas, ou ele pode ser transmitido pelas gotículas de saliva que eliminamos ao falar ou a tossir como acontece na tuberculose, por exemplo?

João Silva de Mendonça – O vírus da mononucleose é muito sensível às condições ambientais, de maneira que permanece viável por curto intervalo de tempo, o que dificulta sua transmissão se não houver contato muito estreito entre as pessoas. Essa é a razão pela qual a doença não é vista, a não ser excepcionalmente, em condições de surto simultâneo dentro de uma família. Na maioria das vezes, ocorrem casos esporádicos, com alguns portadores transitórios em determinado meio, de tal sorte que a pessoa com mononucleose não tem notícia de outro caso no círculo em que convive.

 

Drauzio – Por que outras vias o vírus Epstein-Barr da mononucleose pode ser transmitido?

João Silva de Mendonça – Excepcionalmente, pode ser transmitido por transfusão de sangue, e mais excepcionalmente ainda, por via transplacentária, se a gestante adquirir o vírus durante a gravidez.

 

Drauzio – Existe transmissão sexual documentada?

João Silva de Mendonça – Não existe. Esse vírus não faz parte da lista dos que causam as infecções sexualmente transmissíveis (IST).

 

POTENCIAL DE INFECÇÃO

 

Drauzio – Quando um adolescente não infectado entra em contato com a saliva de uma pessoa contaminada pelo vírus, qual caminho esse vírus desenvolve no organismo?

João Silva de Mendonça – A porta de entrada é a mucosa da boca e a faringe da pessoa que não teve contato anterior com o vírus, mas as células do tecido linfoide são o alvo da infecção pelo Epstein-Barr, que faz parte da família do herpesvírus. Admite-se, também, que ele possa infectar as células epiteliais da faringe e que essa infecção explique por que esse vírus esteja implicado no aparecimento do carcinoma da nasofaringe.

 

Drauzio – Portanto, o mesmo vírus que provoca a mononucleose, em algumas pessoas mais susceptíveis, pode provocar doenças malignas…

João Silva de Mendonça – Como boa parte dos herpesvírus, o Epstein-Barr traz consigo certo potencial oncogênico e relaciona-se com o carcinoma de nasofaringe (mais prevalente nas populações orientais) e com alguns tipos de linfoma. Aliás, esse vírus foi identificado pela primeira vez na África, em crianças com linfoma de Burkitt, ou linfoma africano. Hoje, ele parece estar envolvido com outros tipos de linfomas, como é o caso dos linfomas da célula T.

 

Drauzio – Depois de atingir a faringe e infectar o tecido linfoide, qual o destino do vírus?

João Silva de Mendonça – Nos linfócitos classificados como linfócitos B, há um receptor específico para esse vírus. Neles, o Epstein Barr se prolifera e invade a corrente sanguínea, provocando viremia, pois espalha-se por todo organismo humano onde existam células linfoides. Portanto, a doença dissemina-se pelo fígado, baço, medula óssea e gânglios linfáticos.

 

Drauzio – Qual é o período de incubação do vírus, isto é, do momento em que ocorreu a infecção até surgirem os primeiros sintomas quanto tempo leva?

João Silva de Mendonça – O período de incubação não é definido com exatidão. Deve situar-se entre quatro e seis semanas em média. Nas crianças pequenas, costuma ser um pouco mais curto, de duas semanas aproximadamente. A partir de um caso índex, quem é contaminado pela saliva pode adoecer várias semanas depois, o que dificulta a ocorrência de casos concomitantes.

 

SINTOMAS

 

Drauzio – Quais são os principais sintomas da mononucleose?

João Silva de Mendonça – A febre é sintoma obrigatório da doença. O comprometimento de toda a garganta e da faringe é intenso, com formação de placas brancas e exsudato (líquido com alto teor de proteínas e leucócitos) que lembram as lesões da candidíase (sapinho) e da difteria, doença comum no passado, mas pouco frequente hoje em dia. Os gânglios linfáticos avolumam-se, particularmente os do pescoço, e a infecção também pode provocar alterações no fígado e no baço.

Característico da mononucleose, porém, é o enorme aumento do número de linfócitos no sangue e, o que é muito sugestivo, a aparência anormal que uma parcela deles adquire. São os chamados linfócitos atípicos que, detectados no hemograma realizado rotineiramente nas doenças infecciosas, valorizam a possibilidade de tratar-se de mononucleose infecciosa.

Drauzio – O sinal de Hoagland também é um sintoma importante na mononucleose infecciosa. Você poderia caracterizá-lo?

João Silva de Mendonça – As pálpebras superiores ficam inchadas, a fenda palpebral diminui, o que dá ao paciente a aparência quase de um oriental, com os olhos bem fechadinhos. Esse sintoma foi descrito pelo coronel Hoagland que o identificou em recrutas militares dos Estados Unidos.

 

Drauzio – O exantema também faz parte dos quadros de mononucleose?

João Silva de Mendonça – O exantema ocorre, talvez, em 8%, 10% dos casos. No entanto, essa taxa salta para 80%, 100%, se o paciente for erroneamente tratado com antibióticos, especialmente os do grupo da ampicilina e da amoxilina, até porque a garganta muito inflamada e a presença de exsudatos podem levar um médico menos avisado a confundir mononucleose com amidalite purulenta.

 

Drauzio – Quer dizer que a ampicilina e a amoxilina disparam o aparecimento do exantema?

João Silva de Mendonça – Disparam, de tal forma que usamos esse dado como indicação diagnóstica. Ou seja, o aparecimento de uma erupção cutânea importante num paciente com doença febril, supostamente com amidalite, depois que tomou amoxilina, tem peso para o diagnóstico de mononucleose infecciosa.

 

Drauzio – Quais as características da febre nos quadros de mononucleose?

João Silva de Mendonça — Em geral, a febre fica por volta de 38º, 39º, mas há casos com hiperpirexia, em que a febre alcança 40º, mas essa não é a regra. Diferentes das doenças bacterianas, as doenças virais provocam febre contínua, que persiste por 24 horas, certamente com oscilações e elevação maior da temperatura no final da tarde e começo da noite.

O normal é a febre desaparecer em cinco dias, uma semana, mas pode perdurar por semanas, mesmo que o paciente esteja tomando erradamente antibiótico, e isso preocupa os familiares e o doente.

 

Drauzio – Em quanto tempo o quadro clínico deve regredir?

João Silva de Mendonça — A regressão é lenta. O mal-estar e a indisposição levam algumas semanas para passar e os gânglios, um ou dois meses para retornarem ao tamanho normal.

 

INFECÇÃO NA INFÂNCIA

 

Drauzio – Há um exame de sangue especifico para diagnosticar a mononucleose. Quando adultos fazem esse exame, muitas vezes, se verifica que a grande maioria, aproximadamente 90%, teve a doença no passado, sem se dar conta de que estiveram doentes. Como você explica esses casos?

João Silva de Mendonça – A explicação tem como base as investigações de soroprevalência e as análises de correlação com o adoecimento. Nas populações menos favorecidas sob o ponto de vista socioeconômico, a aquisição do vírus é muito precoce. O pico da doença ocorre na infância, entre cinco e dez anos, e não na adolescência ou nos adultos jovens, mas a taxa de adoecimento é baixa. Diria que a cada dez ou vinte crianças infectadas, apenas uma adoece com os sintomas clássicos que estamos descrevendo. Já, entre 15 e 25 anos, para cada duas ou três pessoas que se infectam, uma ficará doente.

 

Drauzio – Por que a criança desenvolve menos a doença do que os adolescentes?

João Silva de Mendonça — Não há uma explicação clara para isso. O fato é que a criança adoece menos. Pode ser que ela tenha a doença sem as características típicas da mononucleose. Talvez apresente um quadro respiratório frustro, que passa sem diagnóstico e não fica registrado como documentação da doença no passado.

 

Drauzio – Nas crianças, o quadro clinico é ausente ou é confundido com o das infecções banais da infância?

João Silva de Mendonça – A segunda hipótese é mais provável. Nelas, a doença se confunde com as infecções banais que apresentam com frequência e não tem as características próprias da mononucleose, o que não acontece com o adolescente e o adulto jovem.

 

COMPROMETIMENTO DO FÍGADO

 

Drauzio – Quando podemos considerar que a pessoa está curada?

João Silva de Mendonça – A alta pode demorar semanas, porque o comprometimento do fígado ocorre sempre nos quadros de mononucleose. Não que se manifeste como uma hepatite que deixa o indivíduo amarelo e com elevação dos níveis de bilirrubinas. Isso só acontece em menos de 10% dos casos. O que mostra o comprometimento do fígado é o exame laboratorial das transaminases, o mesmo indicado para diagnóstico das hepatites agudas. Na mononucleose, as transaminases se alteram e demoram um ou dois meses para voltar ao normal. Enquanto esse exame estiver alterado é sinal de que a doença está presente, mesmo que os principais sintomas não estejam incomodando mais, pois a febre cedeu, a garganta melhorou e o enfartamento dos gânglios está regredindo.


Drauzio – A mononucleose é uma doença autolimitada?

João Silva de Mendonça – Atualmente, a tendência é dizer que é uma doença linfoproliferativa autolimitada, portanto, benigna, diferenciando-se, assim, das linfoproliferativas que são malignas (os linfomas).

 

TRATAMENTO

 

Drauzio – No existe nenhum medicamento específico que possa ser usado contra a mononucleose, uma doença provocada pelo vírus Epstein-Barr. Digamos que você receba um paciente com garganta inflamada, febre e que esteja, inadvertidamente, tomando antibiótico. Como você orienta esses casos?

João Silva de Mendonça – O tratamento da mononucleose é fundamentalmente sintomático, visando ao alívio dos sintomas e a combater a febre e a dor de garganta. Além disso, o paciente deve permanecer em repouso e evitar situações que possam favorecer a ocorrência de um trauma abdominal.

Talvez essa recomendação não caiba mais na atualidade, mas há registros históricos de que, na mononucleose, o baço cresce e torna-se friável. Portanto, um trauma pode provocar sua rutura e, como consequência, uma hemorragia intra-abdominal que poderá levar ao óbito.

 

Drauzio – Por quanto tempo o repouso deve ser mantido?

João Silva de Mendonça –  Até que o exame propedêutico, isto é, o exame clínico, deixe claro que o baço voltou à normalidade.

 

Drauzio – Como vão as pesquisas sobre os medicamentos para combater a mononucleose?

João Silva de Mendonça – Há registro, pelo menos em laboratório, de que o vírus Epstein-Barr pode ser atacado de alguma forma por um antiviral chamado aciclovir. Em pacientes com AIDS que apresentam leucoplasia pilosa, uma manifestação causada por esse vírus, que é o mesmo da mononucleose, a administração de aciclovir traz algum benefício. No entanto, alguns ensaios feitos com esse medicamento, administrado por via oral ou intravenosa para pacientes com mononucleose, não mostraram resultados convincentes, do ponto de vista clínico, por isso ele não é rotineiramente utilizado.

Outra informação interessante registrada na literatura vem da Escandinávia, onde colegas infectologistas resolveram medicar pacientes com mononucleose um pouco mais arrastada, febre prolongada e garganta que não melhora, com metronidazol. Pode parecer estranho, pois o metronidazol é antibacteriano e antiparasitário e não antiviral. Não se sabe por que, porém, o fato é que eles constataram remissão importante dos sintomas, não nos casos agudos, mas nos que evoluem de maneira muito lenta.

Como a informação da Escandinávia não é metodologicamente definitiva, porque não é ainda medicina baseada em evidências – são casos tratados sem grupo controle – não nos autoriza a colocar como rotina de tratamento o metronidazol, mas essa terapêutica pode ser aplicada em casos individualizados de evolução prolongada da doença.

 

Drauzio – Você já acompanhou casos arrastados de mononucleose?

João Silva de Mendonça – Há casos descritos com um ou dois meses de evolução. Já acompanhei pacientes com a forma antipirética da doença, ou seja, com 40º de febre diariamente por mais de um mês. Esses casos assustam, realmente assustam.

 

Drauzio Existe alguma forma de evitar o contato com o vírus da mononucleose, uma doença com alta prevalência, uma vez que 90% dos adultos têm anticorpos contra o Epstein-Barr?

João Silva de Mendonça – Não creio que haja alguma forma de evitar contato com o vírus, porque ele é eliminado pela saliva do doente contínua ou intermitentemente, por períodos que podem chegar a um ano, um ano e meio ou mais. Isso explica por que é praticamente impossível evitar que, ao longo da vida, a pessoa entre em contato com o vírus e por que a maioria dos adultos tem exames laboratoriais, mostrando que já foi infectada por ele.

 

Drauzio – Existe perspectiva de vacina contra a mononucleose?

João Silva de Mendonça – Não há. A obtenção da vacina é um campo que tem despertado pouco interesse nos pesquisadores.

 

UM VÍRUS, DUAS DOENÇAS

 

Drauzio – Por que uma pessoa tem mononucleose quando infectada pelo Epstein-Barr e outra desenvolve câncer por causa desse mesmo vírus?

João Silva de Mendonça – A infecção do Epstein-Barr é crônica e latente. Provavelmente, quem se infecta não se livra mais do vírus, que fica seu companheiro ecológico para sempre, o que, aliás é uma particularidade de toda a família dos herpesvírus. Quem vai definir se esse estado de latência irá evoluir para uma doença proliferativa maligna é o próprio indivíduo, sua genética, seu estado de imunocompetência ou de imunodeficiência.

O Epstein-Barr é um vilão temido nos transplantes de medula óssea, uma vez que a deficiência imunológica é séria nos pacientes transplantados e ele é um oportunista perigoso.

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