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Dor no rosto (dor orofacial) | Entrevista

Quando se fala em dor no rosto (orofacial), a primeira lembrança é a dor de dente, às vezes lancinante e difícil de suportar. Conheça os tipos de dor na região.
Publicado em 16/10/2012
Revisado em 08/07/2021

Quando se fala em dor no rosto (orofacial), a primeira lembrança é a dor de dente, às vezes lancinante e difícil de suportar. Conheça os tipos de dor na região.

 

* Edição revista e atualizada.

 

Quando se fala em dor no rosto (orofacial), a primeira lembrança que nos ocorre é a dor de dente, dor às vezes lancinante, difícil de suportar. Não faz tanto tempo assim, a única solução para diminuir tamanho sofrimento era extrair o dente comprometido. Por isso, raríssimas pessoas chegavam à maturidade sem usar dentadura.

No entanto, especialmente se são difusas e recorrentes, as dores orofaciais podem ser sintoma de muitas outras doenças. Neoplasias de cabeça e pescoço, leucemia, neuralgia do trigêmeo estão entre as enfermidades que têm a dor como queixa inicial do paciente.

O diagnóstico requer cuidado e experiência profissional. Nem sempre é fácil distinguir a dor de dente das neuralgias, mas é possível. Talvez seja esse um bom caminho para evitar extrações e padecimento desnecessários.

 

Veja também: Neuralgia do trigêmeo

 

DOR E ESTRUTURA DO DENTE

 

Drauzio – O que se entende por dor orofacial (dor no rosto)?

José Tadeu T. de Siqueira – Chamamos de dor orofacial a que provém dos dentes, da boca e dos maxilares. Sem dúvida, a mais frequente delas é a dor de dente.

 

Drauzio – Qual é a explicação para os dentes provocarem dores tão intensas?

José Tadeu T. Siqueira – Embora a estrutura do dente seja pequena, é anatômica e complexa. Ele possui uma caixa externa dura, semelhante ao osso, constituída pela dentina e pelo esmalte. Em seu interior, há um canal por onde passam só vasos e nervos. Inflamação dentro desse canal dificulta o extravasamento do edema e dos líquidos que ali se formam, criando uma pressão que produz dor muito forte.

O dente tem outra característica interessante. Toda sua enervação e vascularização entram pelo ápice da raiz, um orifício muito pequeno existente em sua extremidade inferior.

 

Drauzio – É um orifício existente na ponta da raiz que prende o dente no osso…

José Tadeu T. de Siqueira  – Em parte é isso mesmo. Na verdade, o dente é uma estrutura rígida que se fixa ao osso da mandíbula ou do maxilar por um ligamento. Portanto, é uma estrutura articulada com o osso, uma articulação microscópica com movimento bem pequeno, pois se desloca aproximadamente um décimo de milímetro. Por isso, apertar exageradamente os dentes durante o sono ou mesmo durante as atividades diurnas produz uma isquemia que causa inflamação ao redor do ligamento e a sensação de dor ou de crescimento do dente.

 

POR QUE O DENTE DÓI?

 

Drauzio – Qual é a dor de dente mais comum?

José Tadeu T. de Siqueira –– A dor de dente acaba sendo desconcertante, porque ele é uma estrutura somática profunda que engloba tecido ósseo, tecido dentário, ligamento rígido e receptores que conduzem a enervação. Qualquer processo inflamatório que comprima esses receptores pode provocar dor sem que haja lesão no dente para justificá-la.

No entanto, a dor de dente mais comum decorre de uma lesão, em geral a cárie, que afeta o nervo do dente, tecnicamente chamado de polpa dentária. Como essa estrutura entra por um forame minúsculo, o sangue que penetra no dente tem de retornar pelas veias. Comprometimento desse retorno por causa do volume dos vasos provoca compressão nas terminações nervosas e dor latejante. Parece que o coração está pulsando dentro do dente.

 

Drauzio – Quando a pessoa procura o dentista por causa desse tipo de dor, ele fura o dente para reduzir o edema e a inflamação.

José Tadeu T. de Siqueira – Até alguns anos atrás, o comprometimento da polpa justificava um tratamento radical. Abria-se o dente e removia-se a polpa. No entanto, a evolução do processo inflamatório passa por várias fases. A primeira caracteriza-se por dolorimento e por hiperemia, resultante de leve aumento do volume dentro do canal. Progressivamente, pode ocorrer uma lesão dos vasos chamada pulpite, ou seja, uma inflamação da polpa dentária reversível (regride com o uso de anti-inflamatórios) ou uma inflamação irreversível. Neste caso, somos obrigados a abrir o dente e remover o nervo, isto é, a polpa dentária.

 

O QUE É BRUXISMO?

Drauzio – Muitas pessoas têm bruxismo, ou seja, cerram os dentes com tanta força enquanto dormem que acordam com dor forte nos dentes. Por que isso acontece? 

José Tadeu T. de Siqueira  O bruxismo do sono, isto é, o apertamento ou ranger dos dentes que se manifesta geralmente à noite, não se sabe por que, acomete 15% das crianças. À medida que as pessoas envelhecem, porém, há uma redução dessa prevalência e não mais do que 2% ou 3% dos idosos rangem os dentes enquanto dormem.

Muitos anos atrás, imaginava-se que o bruxismo era uma doença. Atualmente se sabe que talvez seja uma resposta normal do organismo. Em algumas pessoas particularmente, pode estar ligado a fatores genéticos, visto que existem famílias em que avô, pai, filho e neto têm padrão semelhante de apertamento. Por isso, atribui-se importância fisiológica ao bruxismo.

 

Drauzio – Como se diagnostica o bruxismo?

José Tadeu T. de Siqueira –– Existe um centro de padrões de atividades automáticas no sistema nervoso central. Assim como andar, respirar, mastigar são movimentos automáticos, alguma coisa no córtex central estimula o núcleo motor do trigêmeo e faz com que o indivíduo aperte ou ranja os dentes.

De modo geral, a população tem fases em que aperta os dentes de forma mais intensa, mas apenas são categorizados como portadores de bruxismo aqueles que os apertam acima de 30% do valor da máxima força de contração da mandíbula. O número de episódios durante o sono também é levado em consideração para diagnóstico. As polissonografias, isto é, os exames do sono, ajudam a determinar esses dados.

 

Drauzio – Que problemas provoca esse apertar exagerado dos dentes?

José Tadeu T. de Siqueira – O principal problema é o desgaste dos dentes e o dolorimento, porque a compressão exagerada pode levar à isquemia dos vasos que entram no ápice da raiz e depois à necrose dos vasos, dos nervos e da polpa dentária. Normalmente, é uma dor de curta duração que tem como causa a isquemia, a falta de circulação dentro do dente.

 

Drauzio – A pessoa chega a acordar por causa dessa dor?

José Tadeu T. de Siqueira – Alguns pacientes relatam que sim e que também acordam com a sensação de que estavam fazendo ruído com os dentes. Na grande maioria dos casos, porém, é o cônjuge ou alguém que dorme no mesmo quarto que percebe o problema. Não é incomum ouvi-los dizer que não adianta sacudir a pessoa ou tentar acordá-la, porque ela volta a dormir e continua rangendo os dentes.

 

ALTERAÇÕES NA GENGIVA

 

Drauzio – Às vezes, as pessoas se queixam de dor de dente e o dentista diz que o problema está na gengiva e não no dente. Quais são as causas mais frequentes da dor na gengiva?

José Tadeu T. de Siqueira – Eu diria que a mais frequente é a infecção oportunista chamada periodontite que afeta primeiro a gengiva e depois a inserção entre o dente e o osso (periodonto). Diria também que o diagnóstico da dor gengival é relativamente simples. Em geral, esses pacientes têm histórico de sangramento quando escovam os dentes ou passam fio dental e, dependendo do alimento, quando mastigam.
As dores de gengiva são mais difusas. Às vezes se manifestam na face, na cabeça ou na região cervical e são difíceis de localizar com precisão.

Uma das causas desse tipo de dor pode ser o traumatismo por apertamento. A inflamação é não é específica. A não ser no exame clínico e no levantamento da história do paciente, não se encontram dados em radiografias, nem alterações nos dentes que justifiquem o sintoma. Desse modo, as dores do periodonto provocadas pelo bruxismo são as que mais dificultam o diagnóstico por causa da ausência de sinais clínicos e macroscópicos específicos de lesão, já que se trata de uma alteração vascular por isquemia.

 

EXTRAÇÃO DOS DENTES

 

Drauzio – Os médicos mais velhos contam que, no passado, quando se deparavam com um doente que apresentava febrícula diária sem causa determinada, uma das primeiras medidas era recomendar que arrancasse os dentes e colocasse dentadura, porque as pessoas tinham geralmente dentes em mau estado e retirá-los eliminaria focos infecciosos. Na verdade, essa conduta radical e absurda prova que os dentes levam injustamente a culpa de muitos problemas. Quais são os mais importantes?

José Tadeu T. de Siqueira – Na história da civilização humana, há referências muito antigas à extração de dentes. Do papiro de Ebers (3700 a.C. a 1500 a.C.), que representa a cultura médica egípcia, consta o seguinte relato do médico do faraó: “Se quiser melhorar a dor do corpo, das costas, dos pés, tire todos os dentes”. Também se sabe que Beethoven extraiu vários dentes na tentativa de aliviar as dores que sentia.

No início do século XX, imperou a teoria da infecção focal, uma vez que a cárie dentária e as doenças da boca e da gengiva são essencialmente infecciosas. Nesse aspecto, existe um fato a considerar. Quando ocorre sangramento na gengiva, os germes da boca caem na corrente sanguínea e espalham-se momentaneamente produzindo uma bacteremia transitória. Se as defesas orgânicas estiverem baixas, pode aparecer uma infecção à distância chamada infecção focal. Isso existe e sempre existiu, mas nunca se definiam as condições em que se encontrava o paciente. Simplesmente se extraiam todos os dentes. Atualmente, através da Biologia Molecular e de testes modernos, consegue-se comprovar que alguns pacientes com doenças cardíacas, renais ou reumatológicas são mais susceptíveis à bacteremia e escolhe-se a melhor conduta para o caso.

 

Drauzio  Que outras doenças podem provocar dor de dente?

José Tadeu T. de Siqueira — Embora seja incomum, o câncer de cabeça e pescoço, em especial o de assoalho da boca, pode manifestar-se como dor de dente. Além disso, principalmente nas crianças, a leucemia causa dor e mobilidade do dente, porque afeta os vasos da polpa dentária e do periodonto e o nervo dos maxilares.

Hoje, quando a dor de dente ou orofacial é difusa, mal localizada ou recorrente, devem ser descartadas todas as possibilidades de diagnóstico de neoplasias, porque elas são muito atípicas na manifestação da dor. Grande parte dos cânceres de boca tem lesões aparentes, assimetrias, alterações neurológicas evidentes, mas se a dor é a primeira queixa a coisa muda de figura.

No final de 2003, defendi uma tese de mestrado cuja proposta era uma revisão de 1440 casos de câncer de boca que ocorreram em vinte anos, no Hospital Heliópolis, em São Paulo (SP) e ficou evidente que em 20% a dor representava a única queixa. Eram dores variadas: dor de dente, dor na boca, queimor na boca ou na língua, dor de cabeça, de ouvido, portanto, um quadro totalmente atípico da doença.

 

NEURALGIA DO TRIGÊMEO X DOR DE DENTE

 

Drauzio – Uma das dores mais terríveis que o ser humano relata é a neuralgia do trigêmeo. Em geral, ela dura pouco, mas vem com força máxima. Não só os leigos a confundem com dor de dente; há profissionais que também confundem. Como se explica isso?

José Tadeu T. de Siqueira – Esse é um tema importante, inclusive sob o ponto de vista de saúde pública. Comparada com a dor de dente, a prevalência da neuralgia do trigêmeo não é grande. Acontece que dada a intensidade da dor e o fato de que muitos pacientes foram perdendo gradativamente os dentes por causa dela, é indispensável estabelecer diagnóstico diferencial entre as duas.

O problema é que, às vezes, a neuralgia do trigêmeo se manifesta como dor de dente ou na gengiva e existem atividades rotineiras que podem desencadeá-la, por exemplo, escovar os dentes, passar fio dental, mastigar, engolir. O paciente acha que é dor de dente, e para ele é mesmo, porque ela vem de uma região do sistema nervoso central que corresponde aos dentes e à área sensitiva da face.

Por isso, é importante definir as principais características dessas dores.

A neuralgia do trigêmeo é uma dor em choque, de curtíssima duração, desencadeada por toque leve ou por fatores que normalmente não causariam dor.

A dor de dente — em geral, uma pulpite — quando é forte, dura mais do que alguns segundos. Chega a durar horas e a acordar o paciente durante a noite. É uma dor latejante, porque é vascular, e pode espalhar-se no segmento dos dentes, da face ou por todo o crânio, em virtude da sensibilização que provoca no sistema nervoso central e que amplia a sensação de dor.

Como dentista, convivo com um grupo interdisciplinar no Hospital das Clínicas, o Centro de Dor da Neurologia, que tem estudado pacientes com neuralgia e com dor de dente para saber, entre outros temas, qual a prevalência da extração de dentes no Brasil ou por que nós, os dentistas, ainda extraímos dentes.

Tudo indica que, muitas vezes, pessoas com neuralgia de trigêmeo procuram o médico clínico e saem sem diagnóstico, porque não é fácil fazê-lo. Um trabalho que finalizamos recentemente mostrou que, se considerarmos a população portadora de   neuralgia do trigêmeo há mais de dez anos, todos os pacientes já perderam os dentes; entre aqueles que apresentam a doença há um ano apenas, metade já não tem mais os dentes.

 

Drauzio – A que se deve um número tão alto de extrações?

José Tadeu T. de Siqueira – No começo, imaginava-se que era por erro de diagnóstico do dentista. Em parte, é verdade, porque os profissionais de saúde, o dentista e o médico clínico, nem sempre conseguem diagnosticar a neuralgia do trigêmeo quando não têm experiência com a doença e porque a dor se confunde com vários tipos de dor de dente.

 

Drauzio – Com que tipos de dor de dente a neuralgia do trigêmeo se confunde? 

José Tadeu T. de Siqueira – Um dos tipos mais comuns é a dor do colo dentário, uma dor aguda de curta duração, semelhante a um choque, que aparece quando se toma sorvete, por exemplo.

 

Drauzio – O que se pode fazer para reverter esse quadro?

José Tadeu T. de Siqueira — Os pacientes com neuralgia que perderam a metade dos dentes por erro de diagnóstico evidenciam a necessidade de treinamento e educação continuada. Eu diria, porém, que não é só a ignorância dos profissionais que pesa. Uma das principais causas é o fato de a dor de dente ser muito variada em sua expressão clínica e isso, às vezes, confundir o próprio paciente.

Talvez a conduta mais indicada para esses casos seja o dentista não retirar o dente se não encontrar alterações que justifiquem a extração. Ele deve encaminhar o paciente para um colega com experiência na área ou para um neurologista antes de tomar qualquer medida radical.

A pessoa que sabe que tem neuralgia do trigêmeo pode entrar num ciclo de dor crônica e ser obrigada a submeter-se ao uso constante de remédios, à mudança de doses e, às vezes, a cirurgias. No entanto, pessoas socialmente próximas, inclusive os profissionais que cuidam dela, começam a sugerir que ninguém pode tomar remédios a vida toda só por causa da dor. Isso talvez a estimule a procurar novas alternativas de tratamento, achando que o diagnóstico não está fechado.

Na verdade, o problema é que o paciente com neuralgia entra num ciclo de dor crônica em que recebe um sem-número de “informações desinformadas” e, na busca de alternativas, acaba tendo mais um dente removido. O curioso é que, mesmo extraindo todos os dentes, não consegue usar dentadura porque ela dispara a dor da neuralgia.

 

Drauzio – Que tragédia!

José Tadeu T. de Siqueira – A neuralgia do trigêmeo é relatada há mais de mil anos e as características do diagnóstico são claras. Anos atrás, fazendo um levantamento da prevalência da dor em odontologia, encontrei um trabalho apresentado num congresso de 1929 por um profissional do Rio de Janeiro que discutia a dor de dente e a dor das neuralgias maiores, como eles chamavam a dor de dente que se manifesta à distância, no ouvido, na cabeça, ou são totalmente difusas na face. Naquela época, já existiam os mapeamentos faciais mostrando como essas dores se apresentam.

Dependendo da localização do dente, há uma área mais específica ou mais comum de manifestação da dor. Por exemplo, alterações nos molares inferiores podem manifestar-se como dor de ouvido que, por sua vez pode ser sinal de problema na coluna cervical ou da articulação têmpero-mandibular. Essa sintomatologia variada leva à dificuldade de diagnóstico e exige treinamento maior na semiologia da dor.

Você me perguntou por que o dente dói tanto. Além do aspecto local, tem o aspecto ligado ao sistema nervoso central. A representação da boca e do maxilar no córtex sensitivo é muito grande.

 

Drauzio – Por ser uma área tão importante do corpo, a boca tem grande representação cerebral.

José Tadeu T. de Siqueira – Estão ligadas à boca funções importantes como a amamentação e a respiração, por exemplo. Toda nossa vida vegetativa tem relação com esse segmento da face.

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