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Futuro da cirurgia cardiovascular | Entrevista

Publicado em 07/12/2011
Revisado em 11/08/2020

Especialidade obteve ao longo da história muitos avanços e conquistas. Veja na entrevista qual é o futuro da cirurgia cardiovascular.

 

Até o fim da Segunda Guerra Mundial, mexer no coração era um tabu que poucos ousavam desafiar. Para ter uma ideia, em 1925, na Inglaterra, dois médicos operaram a válvula mitral de um paciente e por isso foram perseguidos pela Academia Real de Medicina daquele país.

Terminada a Segunda Guerra, Dwight Harkin, médico cirurgião do exército americano na Europa, voltou para Filadélfia com enorme experiência em ferimentos cardíacos. Daí em diante, o coração passou a ser encarado sob outro prisma. Antes de Harkin, era visto como uma víscera comum, semelhante ao estômago ou ao intestino, embora se soubesse que, maltratado técnica e taticamente, deixaria de funcionar e o indivíduo morreria. Consequentemente, ninguém se atrevia a propor inovações e a cirurgia cardíaca foi a última especialidade cirúrgica a desenvolver-se.

No entanto, quando tomou impulso, os resultados foram surpreendentes. Em 1968, por exemplo, foi realizado o primeiro transplante cardíaco. Em se tratando de troca de órgãos, apenas os rins já haviam sido substituídos anteriormente. Na década de 1970, mais um avanço: indivíduos viveram anos depois de ter recebido um coração mecânico.

 

CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA

 

Drauzio — O que possibilitou tamanha evolução da cirurgia cardíaca em tão curto tempo?

Luiz Antonio Rivetti –– Descobrir um método para realizar a circulação extracorpórea constituiu um passo de valor inestimável para o desenvolvimento da cirurgia cardíaca. Parar o coração a fim de trabalhar dentro dele, sem sangue, com o paciente vivo, foi uma conquista tão importante quanto à do homem ir à Lua. Na verdade, na década de 1950, fazer isso sem o respaldo de exames laboratoriais imediatos como se tem agora, exigia talento e habilidade ímpares do cirurgião.

Nos Estados Unidos, a primeira cirurgia com circulação extracorpórea ocorreu em 1953 e, no Brasil, em 1955. O desafio maior era descobrir um equipamento que substituísse simultaneamente o coração e o pulmão. Não bastava encontrar algo que bombeasse o sangue como o coração o faz. Era fundamental manter o pulmão funcionando normalmente a fim de realizar a troca gasosa e garantir que o cérebro recebesse a energia e o oxigênio necessários à vida.

Na busca de uma solução que permitisse parar o coração e, depois, fazê-lo bater de novo, o cirurgião cardíaco provavelmente invadiu áreas da física, da biotecnologia e de outras disciplinas afins.

 

AVANÇOS E CONQUISTAS NA CIRURGIA CARDIOVASCULAR

 

Drauzio — Com quais recursos conta o cirurgião hoje para intervir num órgão tão delicado quanto o coração e que benefícios eles trouxeram para o paciente? 

Luiz Antonio Rivetti — Na década de 1960, a mortalidade associada às cirurgias cardíacas girava em torno de 20%, 30%. Fechar os diagnósticos era demorado e, quando o cirurgião finalmente intervinha, pouco podia fazer.

Hoje, a situação mudou tanto que indicar cirurgia cardíaca é procedimento de rotina. Além disso, as técnicas da engenharia e da bioengenharia melhoraram muito. Novos materiais trouxeram enorme benefício à circulação extracorpórea. As próteses antigas eram à base de polipropileno, material extremamente trombogênico que, em contato com o organismo, propiciava a formação e liberação de coágulos. Esse entrave, embora não totalmente removido, foi sendo superado pelo uso de próteses metálicas cuja matéria-prima, o aço pirolítico, é a mesma empregada na construção de aeronaves espaciais. Essas próteses, que duram a vida inteira, possuem alto poder aerodinâmico o que as torna semelhantes à válvula humana e, dificilmente, aparecem coágulos dentro do coração. Não se pode esquecer de mencionar os benefícios que o silicone representou para a circulação extracorpórea.

Tudo isso somado fez com que o índice de mortalidade caísse expressivamente para 4% nos dias de hoje. Nas cirurgias de ponte de safena, o risco está em torno de 1%. Esse grau de segurança possibilita a indicação de cirurgia cardíaca para resolver vários tipos de problemas que poderiam levar à morte. Entre eles destacam-se as doenças congênitas e valvulares (em geral, causadas pela febre reumática, doença atualmente mais rara em virtude da eficácia dos antibióticos e da prevenção adequada) e as coronarianas cuja incidência aumentou sensivelmente no século 20. O desenvolvimento da cirurgia cardíaca possibilitou, ainda, atuar sobre o ritmo cardíaco para resolver determinadas arritmias de consequências graves.

 

FUTURO DA CIRURGIA CARDIOVASCULAR

Drauzio — Diante desses avanços, como você vê o futuro da cirurgia cardíaca?

Luiz Antonio Rivetti — De certa forma, já estamos vivendo um pouco o futuro da cirurgia cardíaca. Nos últimos 50 anos, essa especialidade deu passos tão decisivos que permitiram ao cirurgião realizar cirurgias minimamente invasivas. Atualmente, através de uma pequena incisão, de 5 cm ou 6 cm no máximo, pode-se passar a válvula que será colocada no coração.

 

Veja também: Fôlego de quem fez cirurgia cardíaca

 

Durante o 2º Congresso Mundial de Cirurgia Minimamente Invasiva, ficou evidente que o futuro chegou mais perto com a utilização de um robô capaz de operar um doente. Atrás de uma câmara e valendo-se de efeitos tridimensionais, o cirurgião introduz três ou quatro toracoscópios com pinças que são controladas como num jogo de videogame.

Essa técnica apresenta enormes vantagens. Primeira: padroniza a cirurgia e afasta qualquer possibilidade de tremor das mãos do médico. Segunda: dispensa a circulação extracorpórea e permite incisões cada vez menores. Pode parecer que a preocupação com o aspecto estético seja insignificante. Não é. Imagine uma menina que, em vez de ter um corte grande no tórax, possa esconder a cicatriz com o sutiã do biquini. Sem dúvida, ela se sentirá mais segura e confortável ao ir à praia ou à piscina.

 

CIRURGIA CARDIOVASCULAR MINIMAMENTE INVASIVA

 

Drauzio – Você poderia explicar o que é a cirurgia minimamente invasiva?

Luiz Antonio Rivetti – A cirurgia minimamente invasiva não utiliza circulação extracorpórea. Se não há como discutir as vantagens que a circulação extracorpórea trouxe para o desenvolvimento da cirurgia cardíaca, existem dificuldades inerentes a ela que a tecnologia moderna superou apenas em parte. Por exemplo: ao sair do corpo, o sangue passa por tubulações plásticas antes de voltar para o coração. Nessa primeira circulação, perde 20% das plaquetas. Com isso, o sistema de coagulação se altera e desencadeia uma coagulopatia que não deixa de ser uma agressão ao organismo do paciente.

E mais: circular muito tempo pelos roletes da bomba que impulsiona o sangue para dentro do indivíduo novamente, faz com que as hemáceas se rompam e liberem hemoglobina para o plasma, provocando hemoglobinúria. Esse excesso de hemoglobina nos rins pode causar insuficiência renal.

Como resultado dessa alteração de plaquetas e ruptura das hemáceas, podem formar-se microtrombos que irão localizar-se nos pulmões, no cérebro, nos rins, no fígado. Embora tais alterações sejam controláveis na maioria dos casos, sempre será melhor evitar que ocorram. Desse modo, a morbidade, ou seja, as complicações operatórias, e a mortalidade baixarão mais ainda.

 

Drauzio – Quais são os casos que podem ser operados sem circulação extracorpórea?

Luiz Antonio Rivetti – Atualmente, 80% dos casos de problemas coronarianos podem ser operados sem circulação extracorpórea. Infelizmente, quando o problema é congênito ou valvular, isso ainda não é possível. Todavia já existem físicos estudando a viabilidade de introduzir um endoscópio no coração do paciente e anular, por meio da técnica de interferência de cores, a dificuldade que o vermelho do sangue representa para a visão.

Num dos últimos congressos brasileiros, alguns cirurgiões relataram que, no Nordeste, 100% das cirurgias estão sendo feitas sem circulação extracorpórea.

É importante considerar, ainda, que essa circulação custa muito caro, pois implica o uso de filtros, oxigenadores e tubos de silicone de alta tecnologia. Tendo em vista as dificuldades por que passou a Santa Casa de São Paulo na década de 1980 e por que passa agora novamente, poder substituir essa parafernália por um tubinho que custa 40 dólares no máximo, significa baratear em 50% cada cirurgia, o que é de fundamental importância num país como o nosso.

 

Drauzio – À medida que a cirurgia cardíaca tornou-se menos invasiva, a cardiologia tornou-se mais invasiva. Você poderia explicar esse aparente paradoxo?

Luiz Antonio Rivetti –– A cardiologia invasiva ocorre principalmente nas doenças coronarianas. A introdução de balões que esmagam a placa de ateroma formada pelo colesterol, que se deposita na face interna das coronárias, ajuda a restabelecer o fluxo sanguíneo. Além disso, é possível colocar um stent, ou seja, uma armação muito delicada que, dentro da artéria, tentará conter novo crescimento da placa. Submetido a esse processo cirúrgico, o paciente ficará hospitalizado poucos dias e, voltando para casa, poderá levar vida normal.

 

FIM DAS CIRURGIAS CARDIOVASCULARES

 

Drauzio – Haverá um momento em que será possível resolver esses casos de ateromas sem cirurgias cardíacas? 

Luiz Antonio Rivetti – A rápida evolução dos vários ramos da ciência permite acreditar que esse momento está muito perto. Num congresso de cirurgia cardíaca, foi premiado um trabalho de Biologia Molecular que apresentou resultados surpreendentes. Através de um furinho na jugular (veia do pescoço) de um paciente que sofrera infarto, o pesquisador introduziu um cateter até alcançar o ventrículo direito e retirou um pedacinho de músculo. Por um processo de centrifugação especial, isolou o DNA das células do músculo e dos vasos cardíacos e fez a cultura de células com esse DNA, in-vitro.

Três semanas depois, bilhões de células musculares cardíacas tinham crescido. Seu destino: corrigir os danos que o infarto provocara. O tórax do paciente foi aberto e essas células, que haviam sido recolhidas numa seringa, foram aplicadas numa extensa área de fibrose resultante do infarto sofrido. Novamente, depois de três semanas, aquela região de fibrose estava batendo como um coração normal, pois o músculo cardíaco havia voltado a crescer.

Se ficar provado que tal procedimento realmente é possível e dá certo, tratar a placa de ateroma vai ser banal. Bastará colocar nela uma bactéria que tenha recebido um DNA com propriedades para destruí-la, e estará resolvida a questão. Isso se houver necessidade de tratar um ou outro caso, porque provavelmente haverá uma vacina para prevenir a aterosclerose, doença inflamatória, crônica e degenerativa.

 

BRASIL: PÓLO DE DESENVOLVIMENTO EM CIRURGIA CARDIOVASCULAR

 

Drauzio – Qual a posição do Brasil nessa escala de desenvolvimento da cirurgia cardíaca?

Luiz Antonio Rivetti – Desde o começo da década de 1980, o Brasil é um polo de desenvolvimento da cirurgia cardíaca sem circulação extracorpórea. Os trabalhos começaram, em 1981, na Escola Paulista de Medicina e, na Santa Casa, em 1983.

Na verdade, desde que o cirurgião Favaloro desenvolveu, na Cleveland Clinic, em 1968, a ponte de safena para levar sangue além da obstrução coronariana, achávamos estranho ter de parar o coração e usar circulação extracorpórea para operar uma estrutura cardíaca externa, como é a coronária. Vá lá que isso fosse necessário para operar dentro do coração, mas fora, por quê? O próprio Favaloro havia cogitado essa hipótese, mas achou mais seguro suturar uma coronária de 2mm com o coração parado.

Em 1981, na Escola Paulista de Medicina, o professor Ênio Buffolo realizou algumas pontes de safena com o coração batendo. Ao vê-lo fazer uma anastomose rápida para não interromper o fluxo sanguíneo, deduzi que esse era o caminho ideal e acabei criando um tubinho de silicone com o calibre exato da coronária, que, colocado em seu interior, permite fazer a anastomose com o coração batendo, sem isquemia, sem faltar sangue na região operada.

 

Drauzio – Qual é a função exata desse tubo de silicone?

Luiz Antonio Rivetti — Quando se abre a coronária, logicamente sai sangue. A função do tubo é conduzir esse sangue para manter a irrigação, enquanto a coronária está aberta e efetua-se a anastomose da mamária ou da safena. Antes de dar o último ponto, retira-se o tubo e acabou a cirurgia. Como o coração ficou batendo o tempo todo e o sangue não foi desviado, não há risco de hemólise nem de trombose.

 

Drauzio  Qual a repercussão dessas conquistas da cardiologia brasileira fora do país?

Luiz Antonio Rivetti — Depois desse boom nos países em desenvolvimento, americanos e europeus resolveram interessar-se pelo assunto. Em 1997, promoveram o 1º Congresso Mundial de Cirurgia Minimamente Invasiva e tomaram conhecimento dessa técnica que utilizávamos há mais de 15 anos. Ficaram maravilhados. Em 2000, por ocasião do 2º Congresso Mundial, verificou-se que o mundo inteiro tinha adotado o método e fazia a cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea.

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