Maratona do Rio | Artigo

grupo de maratonistas corre a maratona do Rio.

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Publicado em: 12 de agosto de 2013

Revisado em: 16 de agosto de 2021

Maratonas exigem planejamento: é preciso auscultar o corpo, avaliar o cansaço e calcular a velocidade em função da distância.

 

Pela primeira vez, corri a maratona do Rio de Janeiro. Na concentração que a antecede, um corredor me alertou com a isenção habitual dos cariocas quando se referem à cidade:

— Doutor, você vai correr a maratona mais bonita do mundo.

Veja também: Como chegar aos 70 anos correndo maratonas

Na noite anterior, Gabriel, meu enteado, decidira ir junto para correr os primeiros 21 quilômetros, mesmo estando destreinado.

No meio dos corredores à espera da partida, todas as vezes sinto um misto de excitação e medo. Terei forças e sabedoria para completar os 42 quilômetros?

Maratonas exigem planejamento racional: a cada instante é preciso auscultar o corpo, avaliar o cansaço e calcular a velocidade em função da distância que falta percorrer.

Depois de uma volta rápida pelas ruas do Recreio, a massa de camisetas coloridas chegou à avenida que beira o mar. Ao longe, o Morro Dois Irmãos e a Pedra da Gávea, imponentes, indiferentes às limitações da condição humana. Já alto, o sol batia de frente.

No começo da prova, é fácil identificar os principiantes: são animados, puxam conversa, dão pulos e gritos de alegria. Em contraste, os mais experientes vão calados, concentrados em cada passada.

Nessas horas, os pensamentos são fragmentados, surgem do nada, para em segundos dar lugar a outros, tão irrelevantes quanto os que substituíram e quanto os que virão em seguida. Alguns, não passam de palavras de ordem que reverberam na cabeça, repetitivas como mantras.

Talvez seja esse o encantamento maior das corridas longas: uma espécie de meditação transcendental em que o cérebro passa a funcionar em modo letárgico, atento apenas aos reclamos do corpo, condição inatingível no estado sedentário.

Mal atravessei a linha de chegada, fui invadido por uma sensação de paz celestial, senti um tuim nos ouvidos igual barato de droga, com vista para o Cristo Redentor.

Os quilômetros se sucedem. Meus mamilos que esqueci de proteger com esparadrapo começam a arder. Os prédios à esquerda, os coqueiros, a praia da Barra e o azul que se perde no horizonte, com os Dois Irmãos e a Pedra da Gávea sempre no mesmo lugar. Já havíamos corrido 15 quilômetros e eles lá, mastodônticos, só para dar a impressão de que estamos parados.

Quando atingimos o quilômetro 18, Gabriel virou-se para mim: “Vai embora, estou muito cansado.” Respondi que não tinha pressa, e reduzimos a velocidade. No quilômetro 20, ele lamentou: “Não chega nunca mais”.

O marco do quilômetro 21 foi um alívio para ele, que saiu da pista com um ar de felicidade dos tempos de criança. Para mim, nem tanto, estava apenas na metade do martírio.

Ver a Pedra da Gávea desaparecer por trás dos Dois Irmãos foi um alento. Saber que a paisagem mudaria deu ânimo para enfrentar a subida do Joá, nem tão íngreme, mas longa.

Na descida junto ao Morro do Vidigal, vem em sentido contrário um grupo de rapazes. Um deles, de bermuda, sem camisa, cordão de ouro no pescoço, latinha de cerveja na mão, reclama:

— Vocês aí na moleza da descida, enquanto eu, aqui, sofrendo nessa subida.

Depois de percorrer 30 quilômetros, a maratona chega ao Leblon, com o calçadão lotado de gente em movimento. Na plateia, ouvi o chamado de minha mulher. Um beijo na boca mesmo de passagem, numa hora dessas, revitaliza mais do que glicose na veia.

Aí começa a fase mais dura da corrida. Há que percorrer o Leblon e Ipanema, para depois correr Copacabana inteira. É preciso ser de ferro para não sentar num daqueles quiosques a beira-mar no meio de gente bonita, pedir um chope e mandar a maratona para o inferno ou para mais longe.

Ao chegar na praia de Botafogo, com o Pão de Açúcar e os barcos na enseada, minhas pernas já não me pertencem, meus mamilos sangram, o corpo é um fardo torturante. A fisionomia de meus companheiros de infortúnio é lamentável.

A praia faz uma curva sem fim, que eu nunca notara ao passar de carro. Fico com ódio dela, dos barquinhos, do Pão de Açúcar, do sol, da areia e do maldito bondinho.

Quando entramos no Aterro do Flamengo, senti que a estratégia havia dado certo: apesar dos 33 graus, terminaria a prova num tempo razoável.

Mal atravessei a linha de chegada, fui invadido por uma sensação de paz celestial, senti um tuim nos ouvidos igual barato de droga, com vista para o Cristo Redentor.

Caminhei de volta para pegar um táxi. O Pão de Açúcar continuava lá, com o bondinho e os barcos. O rapaz tinha toda razão, foi a maratona mais bonita que já corri.

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