Convivência com crianças com Down | Entrevista

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Publicado em: 19 de março de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Crianças com Down têm muitas potencialidades afetivas e profissionais que os pais não veem naquele momento inicial. Saiba mais na entrevista abaixo.

 

No passado, a síndrome de Down era conhecida como mongolismo porque a fenda palpebral inclinada característica dos portadores lembra o formato de olhos dos orientais. Pessoas com Down apresentam outros traços peculiares – cabeça mais achatada na parte de trás, língua protusa, orelhas um pouco menores e implantadas mais abaixo, hipotonia muscular, uma linha única na palma da mão – e comprometimento intelectual.

A síndrome de Down, ou trissomia do cromossomo 21, é causada por um erro acidental na divisão das células durante a fecundação. Como se sabe, todos os tecidos do organismo são formados por coleções de células. O núcleo de cada uma delas contém 46 cromossomos, 23 herdados da mãe e 23 herdados do pai. Nos portadores da síndrome, em vez de dois cromossomos no par 21, existem três cromossomos iguais.

 

Veja também: Síndrome de Down e doenças associadas

 

Não faz muito tempo, crianças nascidas com Down eram afastadas do grupo social e familiar e, em geral, não viviam mais do que 30, 35 anos. À medida, porém, que se investiu na estimulação precoce para estimular o desenvolvimento dessas crianças e de suas potencialidades, a expectativa de vida aumentou consideravelmente e, embora num ritmo mais lento, elas se mostraram capazes de vencer as limitações e foram sendo integradas na sociedade.

 

CARACTERÍSTICAS E CONQUISTAS

 

Drauzio – O que caracteriza a síndrome de Down?

Zan Mustacchi – Síndrome de Down é um comprometimento vinculado ao excesso de material cromossômico no cromossomo 21 que, em vez de dois cromossomos, passa a contar com três. Isso faz com que o portador da síndrome manifeste três sinais clínicos que o diferenciam da população comum: 1) fenótipo que lembra muito os olhos oblíquos dos orientais, 2) hipotonia, ou seja, musculatura menos eficaz e 3) comprometimento intelectual, denominação que preferimos adotar no lugar de deficiência mental como sugere a Organização Mundial de Saúde.

 

Drauzio – Crianças com essas características têm algum outro tipo de problema?

Zan Mustacchi – Cinquenta por cento dessas crianças apresentam cardiopatia resultante da hipotonia já presente na vida embrionária. As dificuldades de aprendizagem estão correlacionadas com o grau de comprometimento intelectual. Existem, ainda, outras características do fenótipo próprias da síndrome de Down, como língua mais protusa, por causa da hipotonia associada, bochechas mais redondas e andar característico. No entanto, tudo isso pode ser trabalhado por profissionais e familiares para melhorar a condição dos portadores da síndrome com bons resultados.

 

Drauzio – O defeito no coração que surge na vida embrionária é necessariamente corrigido por cirurgia?

Zan Mustacchi – O que se sabe é que metade das crianças com Down nascidas com defeito no coração tem indicação cirúrgica absoluta em idade o mais tenra possível. Ou seja, 25% do universo total dos portadores da síndrome precisam necessariamente fazer a cirurgia que, na maioria dos casos, apresenta bons resultados, pois mais de 90% da população operada passa a ter vida praticamente normal, sem nenhum problema.

 

Drauzio – O que mais a medicina ofereceu de bom para as crianças com Down?

Zan Mustacchi – Além da melhor qualidade de vida, foi o tempo de sobrevida.  Nos últimos 20 anos, pessoas sem a síndrome tiveram um ganho de sobrevida de dez anos, isto é, a expectativa de vida passou de 60 para 70 anos. Nesse mesmo período, a sobrevida na população com síndrome de Down foi de 25, 30 anos para 60, 65 anos. Portanto, elas ganharam 30 anos de sobrevida com qualidade graças à atenção médica e da família que passaram a receber.

 

PRIMEIRO IMPACTO 

 

Drauzio – Você tem uma filha com síndrome de Down. É sua única filha?

Evaldo Mocarzel – Tenho uma filha de 9 anos, uma de 6 anos com síndrome de Down que fez a cirurgia cardíaca e um menino com 3 anos.

 

Drauzio – Como você recebeu a notícia de que sua menina tinha um problema?

Evaldo Mocarzel – Foi um momento extremamente difícil. A gente vai para a maternidade carregando todos os nossos ideais de perfeição e, aí, recebe a notícia de que teve um filho com algum tipo de malformação genética. Sem dúvida, é uma experiência muito dolorida, numa fase perigosa, porque os pais podem desenvolver algum tipo de rejeição ao bebê e, se isso acontecer, ele não será estimulado.

Com o passar dos meses, porém, descobri que a questão é muito mais simples: é um trabalho de estimulação e levar vida comum, normal. Naquele primeiro momento, porém, a sensação foi de um prédio de 60 andares desabando sobre a minha cabeça e eu não sabia o que fazer.

Embora não tenha sido o meu caso, quando fiz o documentário sobre pessoas com Down, notei certa inabilidade para dar a notícia até na classe médica, por falta da informação necessária para não criar monstros, que não existem, naquele momento de tamanha vulnerabilidade.

 

Drauzio – Você teve alguma experiência anterior com crianças com Down?

Evaldo Mocarzel – Eu tinha um parente distante, primo do primo de minha mãe, que tinha a síndrome, mas convivi pouco com ele, porque antigamente as crianças não eram estimuladas e acabavam confinadas, reclusas mesmo. Foi meu único contato.

Na verdade, tive que fazer um intensivão a partir do nascimento de minha filha, até para dar a notícia para minha mulher com mais calma, para que não levasse o susto que levei. Queria ir contando aos pouquinhos, sobretudo porque tinha feito cesariana e estava se recuperando da anestesia. Eu tinha ouvido que algumas mulheres chegam a perder o leite com o choque da notícia. Então, procurei me informar a respeito antes para poder prepará-la.

No entanto, depois de algum tempo, vi que a anormalidade é um conceito relativo. Meu filho pequeno quebra a casa inteira. Minha filha com Down é super afável, acorda para o mundo de manhã como se fosse uma grande felicidade.

 

Drauzio – Muitas vezes, os pais de crianças que nascem com problemas genéticos são tomados pela sensação de falha, de fracasso. O que mostra sua experiência sobre a reação diante da notícia de que o filho é portador da síndrome de Down?

Zan Mustacchi – Todos nós esperamos ter um filho o mais perfeito possível, o mais inteligente e mais bonito, e desejamos a ele tudo aquilo que somos e muito mais. Quando nasce uma criança com qualquer disfunção ou malformação, sobre a qual tenhamos estabelecido um conceito anterior de que é uma situação lesiva, o sentimento inicial é de perda, de luto. Perdemos o envolvimento com o futuro do nosso filho e perder o futuro é uma coisa extremamente delicada.

Ao receber a notícia, os pais perdem o alicerce de estrutura da família. Com frequência, eles se queixam da forma como ela foi dada. Entretanto, é importante frisar que é muito difícil dar uma notícia tão delicada e com tamanha repercussão social e de futuro para a família que, de fato, se desestrutura nos primeiros dois meses, mas depois, progressivamente, vai observando que a criança com Down, como todas as outras, tem potencialidades que precisam ser estimuladas. Eventualmente, em alguns casos, a família pode precisar de apoio psicológico.

 

AFETIVIDADE

 

Drauzio – Na época em que era estagiário na obstetrícia da Faculdade de Medicina nasceu uma criança com Down. No dia seguinte, uma senhora voluntária que tinha um filho com a síndrome foi chamada por uma enfermeira e assisti ao começo de conversa entre as duas mães. “Olhe, disse ela, isso parece o fim do mundo agora, mas você vai ver como essa criança vai encher sua vida de felicidade”. Muitos anos mais tarde, uma paciente chegou ao consultório desesperada, porque tinha nascido uma netinha com síndrome de Down. Na hora fiquei perplexo e, sem saber o que dizer, repeti a frase que tinha ouvido no tempo de estudante. O fato é que essa senhora sempre me agradeceu aquelas palavras tão verdadeiras, como dizia. O que acontece com essas crianças para serem tão amadas?

Evaldo Mocarzel – Não sei explicar, mas até por serem mais sensoriais, mais substantivas, mais concretas, são mais táteis, abraçam mais. Por exemplo, um dia desses, a família inteira estava reunida na nossa cama e, quando fui dar um beijo na minha mulher, reparei que Joana, minha filha com Down, estava sorrindo. “Do que você está rindo?”, perguntei-lhe. “Adoro família”, foi sua resposta. Ou seja, ela teve a percepção de uma cena familiar que nem a mais velha, nem o pequeno tiveram. Como o dr. Zan falou, ela tem uma percepção diferenciada para algumas coisas.

Por isso, posso afirmar com certeza que essas crianças são extremamente agregadoras da família. Joana é o anjo da guarda da mãe. Quando acordamos de manhã, quer que beijemos todas as pessoas da casa. Não sei se age assim por ter síndrome de Down. Acho até que é uma característica pessoal, dela mesma.

Na verdade, as crianças com Down têm muitas potencialidades afetivas e profissionais que os pais não veem naquele momento inicial, que parece um sorteio de loteria às avessas. Por que fui eu o escolhido? Por que essa maldição bateu na minha porta?

 

Drauzio – O Evaldo falou que o menino dele é uma criança igual às outras, destrói a casa, quebra tudo, e a menina com Down é muito mais tranquila e sossegada. Crianças com Down são menos agressivas? Existe algum estudo a respeito desse assunto?

Zan Mustacchi – O que existe é a observação dos pais que enfatizam algumas alterações comportamentais nas crianças com Down, que não são nem mais carinhosas, nem mais agressivas, são como qualquer outra criança. Acontece que a atenção paterna é mais dirigida para aquele indivíduo a respeito do qual haviam estabelecido conceitos prévios sobre a falta de capacidade para fazer determinadas coisas e, consequentemente, passam a observar comportamentos e reações que não notaram nos outros filhos.

No caso do Evaldo, como ele frisou bem, o menino é mais ativo, irrequieto. Essa atividade mais intensa talvez possa ser justificada pelo simples fato de ser um menino. Já a menina é mais carinhosa. Isso é o que ele observa. Nenhum estudo provou que essa característica faça parte da síndrome.

 

EDUCAÇÃO ESCOLAR 

 

Drauzio – Nos últimos dez anos, o aumento da expectativa de vida das crianças com Down foi de 30 anos, o que é um número astronômico num período tão curto de tempo. A criança nasce, os pais aceitam que ela tem algumas diferenças e, como vivem mais, chega a hora de colocá-las na escola. Em que escola deve ser matriculada? Uma escola comum ou especial?

Zan Mutacchi – Somos pessoas que vivemos atrás de modelos. Isso significa que, diante de um modelo adequado, pertinente, provavelmente iremos imitá-lo. No que diz respeito à criança com Down, o primeiro ponto é entender que ela tem peculiaridades específicas que demandam atenção especial. Por isso, terá de fazer fisioterapia, fono, terapia ocupacional, por exemplo. Como as outras crianças, porém, deve receber alimentação adequada, o seio materno, se possível, e suporte básico preventivo pediátrico e clínico.

Quando chega a hora de ir para a escola, a pergunta é: que tipo de escola? As escolas especiais têm pertinência para casos muito delicados de autocomprometimento que exijam a atuação profissional especializada. A grande maioria, porém, deve ser matriculada numa escola comum, porque crianças com Down têm potencialidades que precisam ser trabalhadas. O que não pode ser exigido delas em sala de aula é que tenham capacitação didática igual à das outras crianças. Não se deve esperar que aprendam exponenciais e frações, por exemplo. O enfoque deve estar na socialização e na oportunidade de serem alfabetizadas.

O mais importante é cobrar-lhes situações de vida comum, de vida social a fim de habilitá-las para o convívio com a sociedade. Assim, sairão fortalecidas e por si só alcançarão situações sociais de lazer, de trabalho, de amor, de carinho, e estabelecerão vínculos sociais.

Não podemos marginalizar essas crianças. Marginalizar significa colocar para fora, excluir e a intenção hoje é incluí-las num contexto de convivência. Nós, os mais velhos, ainda carregamos muitos preconceitos, porque não tivemos a oportunidade de conviver com pessoas com Down na escola.

 

OBJETIVOS DO DOCUMENTÁRIO

 

Drauzio – Qual era sua intenção quando se propôs realizar um filme tão tocante como esse documentário sobre a síndrome de Down?

Evaldo Mocarzel – Minha intenção era mostrar que há luzes no fim do túnel. Feliz ou infelizmente, o ser humano descobre uma grandeza infinita na dor. A partir do momento em que passa do luto para a luta, ele se torna uma pessoa melhor, mais depurada. Hoje, estou fazendo filmes, estou realizando meu ideal profissional. Se não tivesse sofrido esse impacto, talvez estivesse acomodado no jornalismo. Acho que me tornei um ser mais essencial depois do balanço que tive de fazer na minha vida a partir do nascimento da minha filha.

Repito que o ser humano, feliz ou infelizmente, encontra mais grandeza e solidariedade nesse momento de dor, que não deveria ser tão dolorido assim. Poderia ter sido muito mais tranquilo se percebêssemos o potencial dessas crianças, só que a gente não vê, não percebe. Só mais tarde descobriremos que são agregadoras, afetuosas, com potencialidades profissionais e percepções que a criança comum não tem.

 

Drauzio – Você acha que o filme pode ajudar mães e pais dos portadores da síndrome?

Evaldo Macorzel – Tive dois objetivos claros nesse filme. Primeiro, ajudar pais e mães a superar uma possível rejeição ao bebê com Down. Só assim, será possível estimulá-lo e levar vida normal. Não rejeitei minha filha, mas passei por uma fase em que rejeitei a situação de dor que invadiu a minha vida.

Quando tudo aconteceu, eu estava atravessando um período extremamente favorável e, subitamente, tive de encarar uma série de problemas. Minha aceitação inicial foi difícil, porque me faltou informação e eu criei um monstro onde não havia nenhum.

Joana fez a cirurgia cardíaca com quatro meses. Entregar um bebê no centro cirúrgico é uma experiência terrível que não desejo ao pior inimigo. Minha mulher tirou de letra, estava tranquila, confiante. Eu não. Para mim, parecia quase impossível dar certo uma cirurgia em que se tira o coração da criança e uma máquina bombeia o sangue enquanto são reconstituídas as cavidades cardíacas. De qualquer forma, esse foi um momento muito importante para mim. Foi o momento da verdade em que a vida me disse: “Chegou a hora de você querer que essa criança vingue”.

Meu segundo propósito ao realizar o documentário foi mostrar pessoas com Down trabalhando, namorando, casando, falando do preconceito, de amor, de morte, da vida. A literatura médica diz que essas pessoas não desenvolvem conceitos abstratos, ou seja, que a grande deficiência cognitiva de obtenção de conhecimento está em aprender conceitos abstratos. O filme mostra que elas questionam Deus, que é um conceito abstrato, vida e morte, dois conceitos abstratos, preconceitos, outro conceito abstrato. Quis que eles falassem dessas coisas e não que um especialista falasse por eles. Talvez por isso o filme seja surpreendente para o público comum, porque todos nós, por puro preconceito, não imaginamos que pessoas com Down transcendam.

 

CAPACIDADE PARA O TRABALHO 

 

Drauzio – Todos nós temos limites para o trabalho. Eu não sei consertar relógios, por exemplo. Quais são os limites para o trabalho que têm meninos e meninas com Down?

Zan Mustacchi – Antes de responder a essa pergunta, gostaria de fazer uma ressalva às observações do Evaldo a respeito da cirurgia que a filha fez. Quando se fala em cirurgia extracorpórea, todo mundo pensa que o coração é retirado do corpo. A verdade não é essa. É a circulação do sangue que é extracorpórea. O coração não sai do lugar que ocupa no tórax, enquanto são realizadas as correções necessárias.

Retomando a pergunta a respeito dos limites para o trabalho, temos de considerar que pessoas com Down têm potencial para trabalhar, desde que não executem atividades que possam gerar risco para eles mesmos e para terceiros.

Se alguém se dispuser a ensinar-lhes determinada tarefa, elas aprendem. Aliás, costumo dizer que a dificuldade dos portadores da síndrome não é aprender. É esquecer. Por isso, vira um problema se aprendem errado.

Entretanto, existem situações delicadas em que o comprometimento em desenvolver conceitos abstratos pode prejudicar seu desempenho no contexto laborativo. Então, não é prudente que exerçam tais atividades, mesmo porque existem pessoas mais aptas para a função. No entanto, trabalhos que não dependem de resolução intelectual imediata e urgente, todos eles, as pessoas com Down podem fazer e, aliás, os fazem muito bem. Não se pode esquecer, porém, que o País atravessa uma fase em que arranjar trabalho não é fácil para ninguém e que os portadores de Down têm de competir com pessoas sem a síndrome.

 

VIDA AMOROSA E SEXUAL 

 

Drauzio – Crianças com Down namoram? Como é o relacionamento afetivo e a vida sexual dessas pessoas?

Zan Mustacchi – Todos namoram. Todos têm uma paixão primária, platônica, como a que nós tivemos na vida. Eu, por exemplo, achava a Brigite Bardot uma mulher fantástica. Curiosamente, eles enfrentam um preconceito inicial. “Não quero namorar aquele ali que tem Down”, é a primeira reação, mas depois namoram, amam, têm vida sexual ativa. Hoje até se discute a possibilidade de terem filhos.

Não se pode deixar de enfatizar que eles amam como nós amamos, muito mais intensamente até. Parece que têm um querer maior de fazer carinho, do contato pele a pele, de manter uma convivência contínua e respeitam o outro de forma mais profunda do que as pessoas sem a síndrome.

 

Drauzio  Evaldo, enquanto você fazia o filme encontrou muitos casais assim?

Evaldo Mocarzel – Encontrei vários casais, inclusive um deles está casado, com vida sexual ativa e escreve um roteiro de ficção comigo. Felizmente, o preconceito da família em aceitar a sexualidade das pessoas com Down está sendo discutido e a mentalidade mudando, porque essas pessoas têm o direito de casar e ter vida sexual ativa como qualquer outro ser humano.

 

Drauzio – No seu filme, há um trecho comovente em que uma menina expressa seu amor por um garoto, mais ou menos assim: “Eu tô namorando. A minha mãe aceitou. Eu gosto muito dele”, o que a faz absolutamente igual a todas as outras adolescentes.

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