Uma em cada 8 crianças brasileiras consome alimentos ultraprocessados

Boa parte das calorias consumidas por crianças brasileiras menores de 5 anos vem de alimentos ultraprocessados. Saiba quais são os problemas por trás desses produtos.

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Publicado em: 19/06/2024

Revisado em: 20/06/2024

Boa parte das calorias consumidas por crianças brasileiras menores de 5 anos vem de alimentos ultraprocessados. Saiba quais são os problemas por trás desses produtos.

 

Vamos imaginar que você vai fazer um pão de mandioquinha para o filho, sobrinha, primo…  Você vai precisar de oito ingredientes: fermento, óleo, ovos, leite, farinha, sal, açúcar e, é claro, mandioquinha. 

Agora, vamos supor que você não esteja com tempo para preparar tudo isso e resolva comprar uma bisnaguinha de mandioquinha no mercado, aparentemente tão saudável quanto. Ao olhar com mais atenção para o rótulo, vai ver que a composição inclui, no mínimo, mais dez ingredientes além daqueles que você tinha em casa. Quem são eles? Os aditivos químicos, responsáveis por transformar aquele alimento em um ultraprocessado.

Entre esses aditivos estão, por exemplo, corantes, emulsificantes e conservantes. Capazes de tornar o produto mais gostoso e duradouro, eles também tendem a compor os itens menos saudáveis e mais pobres em nutrientes da prateleira. Mesmo assim, é ainda na infância que os alimentos ultraprocessados começam a fazer parte da rotina dos brasileiros.

 

25% das calorias consumidas pelas crianças vêm de alimentos ultraprocessados

O Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) avaliou o perfil alimentar de crianças de até seis anos em 123 municípios de todo o Brasil entre 2019 e 2020. A pesquisa, encomendada pelo Ministério da Saúde e coordenada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pôs fim a um período de quase 15 anos sem dados sobre a qualidade nutricional infantil a nível nacional. 

Os resultados foram alarmantes. Segundo o Enani, 80% das crianças abaixo de cinco anos costumam consumir alimentos ultraprocessados e 25% das calorias ingeridas por elas vêm exclusivamente desse tipo de produto. Na faixa de dois a cinco anos, a proporção chega a 30%, ou seja, um terço do grupo.

E se essa energia vem dos ultraprocessados, é porque outros alimentos estão sendo deixados de lado, como explica Gilberto Kac, professor de nutrição da UFRJ e coordenador geral do estudo. De acordo com o pesquisador, metade das crianças na faixa etária não consome frutas na sua rotina e 80% delas não têm raízes e tubérculos incluídas na dieta. Os bebês menores de dois anos, ainda em fase de introdução alimentar, são os que menos ingerem frutas e hortaliças. 

“Se a gente pensar que esse perfil alimentar estabelecido precocemente molda o perfil futuro, caímos em uma situação complicada, porque isso tende a se perpetuar lá na frente”, alerta Gilberto.

Por que os alimentos ultraprocessados são tão populares?

O problema é que os alimentos ultraprocessados, como biscoitos, macarrões instantâneos e refrigerantes, oferecem muito mais atrativos do que os alimentos naturais.

“É como se eles fizessem o cérebro da criança soltar fogos de artifício. A alta palatabilidade dá uma sensação de prazer, uma liberação de dopamina muito grande, o que faz com que ela queira cada vez mais”, ilustra Tassiane Alvarenga, médica endocrinologista e metabologista.

Para os pais, pesa a questão da praticidade: em vez de preparar um bolo em casa, o que toma tempo na rotina corrida, eles podem, simplesmente, comprar no supermercado. O hábito, inclusive, é uma tendência familiar. Entre as mães entrevistadas pelo Enani, 32,2% apresentavam sobrepeso e 26,3% obesidade, consequências associadas, entre outros fatores, ao alto consumo de ultraprocessados.

Além disso, os preços desses produtos são mais baixos. Nas regiões mais vulneráveis do país, onde há pouca diversidade alimentar, o acesso das famílias a alimentos in natura é limitado: os produtos mais em conta são os ultraprocessados, sobressaindo-se, por exemplo, a itens essenciais para uma dieta saudável, como carne e seus derivados.

Soma-se a isso o grande apelo midiático das indústrias alimentícias. Os altos investimentos em propagandas que fazem parecer que aquele produto é vantajoso para o consumo da família destacam-se facilmente em relação às restritas ações governamentais de promoção a hábitos alimentares mais saudáveis.

Veja também: Entenda o perigo de consumir alimentos ultraprocessados

 

Quais são os riscos do consumo de alimentos ultraprocessados na infância?

De acordo com o Enani 2019, quase metade das famílias brasileiras apresenta algum grau de insegurança alimentar, isto é, não têm acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sobreviverem. As maiores prevalências estão nas regiões Norte (61,4%) e Nordeste (59,7%), seguidas das regiões Sudeste (39,3%), Centro-Oeste (38,9%) e Sul (36,8%).

“Uma série de fatores nesses últimos anos ajudaram a reduzir as disparidades. A economia cresceu, houve uma certa distribuição de riqueza, avançamos na questão educacional para as mulheres e na própria infraestrutura de saneamento. Esse tipo de coisa realmente aumentou a segurança social para as crianças. Mas as desigualdades nutricionais permanecem”, destaca o pesquisador Gilberto.

Outro aspecto que chama a atenção é que 14,2% das crianças de até cinco anos apresentam deficiência de alguma vitamina ou mineral, especialmente a B12, que também foi maior nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Os índices de anemia ferropriva e deficiência de vitamina A, por sua vez, sofreram uma redução em comparação ao último estudo nacional, de 2006. 

“Um dos nutrientes mais importantes para a formação do sistema neurológico e das células do nosso cérebro é o ferro. Se a criança tem carência de ferro, ela corre o risco de ter deficiência de aprendizado, deficiência intelectual, deficiência cognitiva. Altera o sono, o crescimento e o desenvolvimento. A vitamina B12 afeta também o sistema imunológico. A vitamina A impacta na visão. Cada vitamina atua em um setor específico”, explica a Elisabeth Fernandes, pediatra e reumatologista pediátrica.

Além das deficiências nutricionais, o alto consumo de ultraprocessados na infância está associado a mais de 32 doenças, segundo a maior revisão de estudos já feita sobre o tema. Entre elas, estão doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, transtornos mentais e obesidade infantil

De acordo com um levantamento de 2022 do Observatório de Saúde na Infância, ainda que exista uma tendência de queda nos índices de excesso de peso entre crianças de até cinco anos, uma em cada dez apresenta sobrepeso ou obesidade. Em comparação com outros países, o Brasil tem quase três vezes mais crianças com excesso de peso do que a média global.

O desmame precoce associado ao consumo de ultraprocessados também favorece o surgimento da obesidade infantil. A recomendação é que as crianças permaneçam em aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade. Porém, a interrupção desse hábito pela introdução de alimentos ultraprocessados faz com que apenas 45,8% dos bebês nessa faixa etária mantenha a amamentação exclusiva — muito distante da meta de 70% estipulada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Além da obesidade, o desmame precoce pode levar ao surgimento de cáries e problemas na imunidade.

“E nós temos ainda uma alteração da microbiota intestinal. No nosso trato gastrointestinal, existem bactérias boas e ruins, e elas ficam em equilíbrio. Aumentando muito a ingestão de alimentos ultraprocessados, aumenta o desbalanço que favorece as bactérias ruins. Com isso, há um risco maior de infecções, diminui a imunidade e também contribui para as doenças crônicas. Fica um ciclo vicioso, só aumentando os problemas na vida adulta”, acrescenta a dra. Elisabeth.

 

Guia Alimentar para a População Brasileira

Para tentar reverter esse cenário, uma das principais estratégias governamentais é o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). O documento leva em conta a cultura e os hábitos alimentares do país, a fim de orientar qual tipo de alimento comer, de que forma preparar as refeições e o que fazer quando a falta de tempo, por exemplo, atrapalha a rotina alimentar.

“O Guia mostra que 10% da alimentação de uma criança pode ser composta por alimentos ultraprocessados, mas não 25%, que é o que está acontecendo. Ou seja, não é que a criança não pode levar nenhum dia um bolinho de supermercado embalado para o lanche da escola. Ela pode, mas não todos os dias. Por que não, em um domingo, aplicar o que a gente chama de ‘medicina culinária’? Levar a criança para fazer um bolo. Pode ser que ele também tenha açúcar igual ao bolo dos supermercados, mas a quantidade vai ser menor, sem aditivos químicos e conservantes. E esse bolo ainda pode ser usado como lanchinho da tarde”, sugere a dra. Tassiane.

Em linguagem acessível, o documento utiliza alimentos que já fazem parte do dia a dia dos brasileiros para mostrar diferentes maneiras de preparar as refeições, levando em consideração toda a carga afetiva relacionada ao comer e também a sustentabilidade das escolhas alimentares.

O Guia pode ser encontrado online clicando aqui ou nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) de todo o país.

 

Perspectivas para o futuro

Nesse cenário, o grande diferencial do Enani foi a ampliação da representatividade da população infantil. Com dados nacionais sobre antropometria, consumo alimentício e padrão nutricional, o estudo permite a formulação de políticas baseadas na totalidade das crianças brasileiras.

“O Enani trouxe uma série de outros elementos importantes para entender, por exemplo, quais são os determinantes do consumo. Pela primeira vez, a gente está estudando o ambiente alimentar doméstico. As famílias estão preparadas para cozinhar? Qual é o acesso que elas têm a uma vendinha com alimentos frescos? E qual é o acesso a um alimento processado? São questões que ajudam a explicar esse perfil”, detalha Gilberto.

Em pesquisas de menor escala, alguns índices têm mostrado avanços positivos nos últimos anos, como o aumento da amamentação exclusiva nos primeiros meses de vida e a queda na prevalência de anemia e deficiência de vitamina A. A nova edição do Enani, por sua vez, busca traçar um novo panorama da nutrição alimentar infantil depois da pandemia de covid-19, que alterou os hábitos de grande parte da população brasileira.

“É difícil fazer uma previsão dentro desse contexto. Não dá para descartar um possível aumento no consumo de ultraprocessados. Embora esse consumo já esteja muito elevado, nada previne que não haja piora. Agora, a gente tem que pensar pelo outro lado também. Na pandemia, muitas famílias mudaram seus hábitos, passaram a cozinhar. Será que não mudou o perfil? Não dá para cravar nem prever nada”, opina o coordenador da pesquisa.

A fase de entrevistas do Enani 2024 vai até maio de 2025. São cerca de 350 entrevistadores que se apresentarão nas casas de 15 mil famílias com a camisa e o crachá da pesquisa. A população pode verificar a foto do voluntário através do site ou tirar suas dúvidas pelo número 0800 888 0022.

Veja também: Você conhece o Guia Alimentar para a população brasileira?

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