Síndrome de pica: conheça o distúrbio alimentar que faz as pessoas comerem coisas incomuns - Portal Drauzio Varella
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Alimentação

Síndrome de pica: conheça o distúrbio alimentar que faz as pessoas comerem coisas incomuns

mão de mulher pegando gelo no congelador, em sinal de síndrome de pica ou alotriofagia
Publicado em 06/03/2024
Revisado em 20/09/2024

A alotriofagia ou síndrome de pica é um tipo de distúrbio alimentar caracterizado pela ingestão de uma ou mais substâncias não nutritivas e não alimentares por pelo menos um mês.

 

“Tive desejo de comer arroz cru e terra vermelha, mas acabei engolindo um pedaço de tijolo durante a gravidez.” “Cheguei a consumir 2 kg de farinha de mandioca por dia.” 

Esses são relatos de pessoas com alotriofagia – transtorno popularmente chamado de “síndrome de pica” – retirados de artigos científicos ou coletados pela reportagem.

O termo “pica”, usado no nome popular do quadro, faz referência ao pássaro P. pica, também chamado de pega-rabuda, conhecido por sua dieta variada e propensão a comer qualquer coisa que encontre pela frente.

A alotriofagia, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), é um tipo de distúrbio alimentar caracterizado pela ingestão de uma ou mais substâncias não nutritivas e não alimentares por pelo menos um mês. É um comportamento que prejudica a saúde física e afeta aspectos psicossociais, segundo o material.

Entre os principais itens consumidos pelas pessoas que sofrem da condição estão papel, sabão, pano, cabelo, barbante, lã, terra, giz, pó de talco, tinta, metal, pedras, carvão, cinzas, argila, amido e gelo.

 

Causas da alotriofagia

A alotriofagia normalmente está associada a deficiências nutricionistas de vitaminas ou minerais, principalmente zinco e ferro. No entanto, segundo o DSM, o quadro também pode estar ligado a transtornos mentais (como autismo e esquizofrenia) e déficit intelectual.

Não há estatísticas sobre a prevalência no mundo, mas os casos costumam ser mais comuns em mulheres grávidas e crianças. 

“Na gestação existe a hipótese de aumento da demanda de nutrientes, entre eles o ferro e o zinco, mas isso não explica todo o fenômeno. Gestantes que têm alguma fragilidade emocional e falta de suporte também têm mais riscos”, explica o médico Marcelo Heyde, psiquiatra no Hospital São Marcelino Champagnat, em Curitiba (PR).

No caso das crianças, segundo o dr. Heyde, é normal que crianças coloquem todo tipo de material na boca até os dois anos de idade. Após essa faixa, disse o especialista, é esperado que os pequenos já consigam fazer uma distinção clara entre o que é alimento ou não. No entanto, falou, o transtorno pode aparecer em caso de baixo suporte emocional e déficit nutricional.

 

“Eu comia 2 kg de farinha por dia”

A médica veterinária Manoella Omena, 37 anos, de Guarulhos (SP), desenvolveu o hábito de comer em excesso farinha de mandioca, que é rica em amido, no final de 2015. Tudo começou, disse para a reportagem, ao retornar para o trabalho após o nascimento de seus filhos gêmeos. 

Tendo que “se virar em dez” para cuidar dos recém-nascidos e ainda atender os clientes, começou a faltar tempo para se alimentar de forma adequada, disse. Então em um sábado de dezembro daquele ano ela contou que surgiu a ideia de pedir para o irmão comprar 1 kg de farofa temperada.

“Pensei: ‘ah, é barato, não tem o risco de estar estragada (sou muito seletiva com alimentação feita por terceiros) e tem carboidrato e sal’. Nossa, comi aquela farofa como se estivesse comendo a melhor comida da minha vida. Pedi para meu irmão colocar a farofa em um copo descartável e, de pouquinho em pouquinho, das 14hs às 16hs, já tinha comido todo o pacote.” 

Após o primeiro episódio, todos os fins de semana a cena se repetia. No entanto, como tem sensibilidade ao sódio e aos aditivos da farofa temperada, disse, ela ficava inchada e com muita sede. Foi quando Manoella decidiu trocar a farofa por farinha de mandioca branca.

“Após esse dia, as coisas foram saindo do controle. Quando me dei conta, já não conseguia parar. Eu trocava café da manhã, almoço e jantar por farinha. Quando ia na casa de um parente, ia escondida na cozinha comer farinha, pegava a farinha e ia comer no banheiro ou em algum lugar que ninguém me visse. Cheguei a quebrar algumas restaurações de resina dos meus dentes por causa da farinha, mas mesmo assim eu não conseguia parar.” 

Manoella só foi dar um basta no hábito no início de 2021, porque estava com suspeita de endometriose ou adenomiose e teve que fazer um exame para anemia. O nível de ferro, disse, estava em 5 ng/mL – o valor ideal para mulheres é acima de 30 ng/mL. O ginecologista dela prescreveu o tratamento para suspender a menstruação intensa e a encaminhou para um hematologista, que prescreveu medicamento para tratamento das anemia causada por deficiência de ferro, além de uma solução fisiológica.

“Foi algo instantâneo. Conforme eu tomava aquele soro, eu já não sentia o desejo louco de consumir farinha de mandioca. Desse dia em diante acabou o meu vício. Mas não tive um diagnóstico médico [específico para alotriofagia] porque eu tinha vergonha de falar sobre o meu caso, assim como sei que muitas pessoas têm essa vergonha.” 

E Manoella tem razão sobre o receio. 

        Veja também: Síndrome do comer noturno: como identificar o transtorno?

 

Riscos da alotriofagia

O dr. Heyde diz que geralmente quem tem esse transtorno tende a sofrer sozinho por um bom tempo, de forma escondida, e existe um atraso muito grande para buscar ajuda, assim como relatou Manoella. No entanto, segundo ele, é essencial procurar ajuda médica por causa dos riscos associados ao transtorno.

“Quando as substâncias não alimentícias são ingeridas, mesmo que sejam com baixa toxicidade, o uso contínuo atrapalha a absorção dos nutrientes por desregular todo o complexo sistema que precisa funcionar em uma alimentação saudável. Inclusive, já se sabe que o déficit nutricional é uma via de mão dupla, tanto causa como consequência.” 

Outros pontos de atenção, fala, são os objetos pontiagudos que podem causar perfurações e itens mais duros que podem gerar lesão nos dentes e no esôfago.

 

Diagnóstico da síndrome de pica

Quem sofre com alotriofagia deve procurar psiquiatras e psicólogos. O diagnóstico, segundo o dr. Heyde, é primariamente clínico e definido pela ingestão repetitiva de substâncias não alimentícias de forma repetitiva por pelo menos 30 dias. O médico normalmente solicita exames para avaliar se existe algum déficit nutricional e pode encaminhar para outras especialidades se houver complicações como obstrução intestinal.

“Assim, dependendo da substância envolvida, alguns exames devem ser solicitados para avaliação de possível complicação. Por exemplo, intoxicação por chumbo ou ingestão de substâncias que ficam alojadas no trato gastrointestinal, como tecidos no estômago, situação chamada de bezoar (acúmulo de material não digerido).”

 

Tratamentos da síndrome de pica

Não existe nenhum tratamento padrão para a síndrome de pica. No geral, os cuidados médicos serão personalizados para atender às necessidades individuais de cada paciente. Além disso, o atendimento pode envolver uma abordagem multidisciplinar com a colaboração de médicos, psicólogos e outros profissionais de saúde. 

A prática clínica sugere três pontos principais: correção do déficit nutricional; psicoterapia; e tratamento medicamentoso, feito principalmente por prescrição de inibidores da recaptação da serotonina (espécie de mensagem químico), visto que pode haver outro diagnóstico psiquiátrico associado, como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo ou transtorno de ansiedade.

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