Desacertos na função mecânica de receber e bombear o sangue por meio de contrações e relaxamentos ou em sua condução pelas câmaras cardíacas são responsáveis pelo aparecimento de problemas no coração. Veja entrevista sobre arritmia cardíaca.
* Edição revista e atualizada.
O coração é um órgão muscular contrátil constituído por duas bombas separadas por um septo vertical, uma do lado direito e outra do lado esquerdo, cuja função é impulsionar o sangue que leva oxigênio e nutrientes para todas as células do organismo pelo sistema arterial e o traz de volta pelas veias (imagem 1). Anatomicamente, cada uma das bombas apresenta uma câmara superior chamada átrio, ou aurícula, e uma câmara inferior chamada ventrículo.
O sangue arterial rico em oxigênio e pobre em gás carbônico, depois de circular por todo o corpo, dá origem ao sangue venoso, que vai desembocar no átrio direito através das veias cavas, passa pela valva tricúspide e alcança o ventrículo direito de onde é bombeado na direção dos pulmões para as trocas gasosas. Depois de oxigenado, transforma-se em sangue arterial e, conduzido através das veias pulmonares até o átrio esquerdo, flui pela valva mitral e chega ao ventrículo esquerdo. Dali é empurrado para a artéria aorta, que se encarrega de distribuí-lo pelo organismo.
Para realizar essa função mecânica de receber e bombear o sangue por meio de contrações (sístoles) e relaxamentos (diástoles), o coração é dotado de um mecanismo absolutamente sincronizado cujo funcionamento depende de um estímulo elétrico gerado por um agrupamento de células que desempenham o papel de um marca-passo natural. Desacertos na origem desse estímulo ou em sua condução pelas câmaras cardíacas são responsáveis pelo aparecimento das arritmias.
RITMO CARDÍACO
Drauzio – Como o coração estabelece o ritmo cardíaco adequado?
Maurício Scanavacca – O coração é constituído por duas bombas (uma do lado direito e outra do lado esquerdo) que possuem um sistema elétrico próprio, responsável pelo ritmo e sincronização da atividade mecânica adequada para cada situação fisiológica. Por exemplo, quando estamos em repouso, adormecidos, a necessidade de oxigênio na circulação é muito pequena. Por isso, o ritmo cardíaco é baixo e a frequência pode não ultrapassar 40, 50 batimentos por minuto. Ao contrário, quando estamos em atividade física normal ou praticando exercícios, o tecido muscular necessita de muito mais oxigênio e a frequência cardíaca aumenta.
Quem regula essa atividade é o sistema elétrico do coração, que possui uma espécie de bateria, ou seja, uma estrutura formada por um pequeno conjunto de células capaz de gerar estímulo elétrico espontaneamente (imagem 2). Chamada de nó sinoatrial ou nó sinusal, ela se localiza no alto do átrio direito, junto da veia cava superior.
O impulso elétrico gerado no nó sinusal propaga-se em ondas sequenciais pelo tecido do átrio direito, que contrai e atinge, uma a uma, as células do átrio esquerdo, que também se contrai. Como essas contrações são sincronizadas, as câmaras superiores reduzem de tamanho e expulsam o sangue para as câmaras inferiores, ou seja, para os ventrículos.
Tudo acontece como se o coração fosse uma casa de dois pavimentos. O estímulo elétrico produzido no pavimento superior, onde se situam os dois átrios, passa para o pavimento inferior (dois ventrículos) por um tronco comum que atravessa o assoalho que isola um andar do outro.
Ao contrário dos átrios, que não possuem nenhum sistema específico de condução do impulso elétrico – a ativação se faz célula muscular por célula muscular -, o estímulo do nó sinusal para atingir as câmaras ventriculares vale-se de um sistema específico, uma espécie de cabo condutor, que atravessa o nódulo atrioventricular localizado no anel entre os átrios e os ventrículos, bifurca-se e vai inervar as duas câmaras do andar inferior. Dentro dos ventrículos, o estímulo elétrico chega rapidamente ao tecido muscular para promover contrações sincronizadas.
Um detalhe importante é que tanto o nó sinusal quanto o nódulo atrioventricular recebem inervação do sistema nervoso autônomo. Esse sistema tem vários receptores espalhados pelo organismo, que percebem a necessidade metabólica de oxigênio na circulação. De acordo com a demanda, o sistema nervoso estimula o nó sinusal para que haja aumento ou diminuição da frequência cardíaca.
Drauzio – No final, é mesmo o cérebro que monitoriza todas as funções do organismo…
Mauricio Scanavacca – Exatamente. Quando a pessoa está em repouso e não precisa de grande volume de sangue, o cérebro regula a intensidade do estímulo para adaptá-lo a uma frequência cardíaca menor. Quando a pessoa está em movimento, regula-o para que haja aumento da frequência. Isso explica por que a frequência do coração pode variar tanto num mesmo dia. Às vezes, ela é muito alta. O coração bate mais depressa e a pessoa pode sentir palpitações. Há momentos, porém, em que a frequência cardíaca é bem baixa. Essa oscilação é fisiológica, normal. No entanto, as pessoas imaginam que o coração bater ora acelerado, ora devagar, pode ser sinal de arritmia cardíaca.
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CAUSAS E SINTOMAS DE ARRITMIAS
Drauzio – O que provoca as arritmias?
Mauricio Scanavacca – As arritmias são provocadas por distúrbios na formação do impulso elétrico que, em vez de formar-se no nó sinusial, tem origem em outras estruturas do coração, e por distúrbios na condução do impulso elétrico através das câmaras cardíacas.
Drauzio – Essa desorganização na condução do impulso elétrico ao percorrer as câmaras cardíacas que sintomas provoca?
Mauricio Scanavacca – Basicamente, os sintomas dependem da inadequação da frequência cardíaca. Como já disse, a oscilação pode ser grande, mas será considerada normal, se ao aumento ou redução corresponder uma perfeita adequação dos vasos para receber o fluxo sanguíneo necessário. No entanto, se ficar inapropriadamente muito baixa, o volume de sangue também se torna baixo e o sintoma é a fadiga.
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Já a queda do nível de consciência e, eventualmente, os desmaios podem ser manifestação de frequência cardíaca muito baixa ou muito rápida. Em ambos os casos, a eficiência da bomba cai e o fluxo de sangue fica reduzido. Portanto, sintomas de baixo fluxo sistêmico cerebral podem ocorrer tanto nas frequências muito baixas quanto nas muito elevadas.
Outro sintoma importante é a percepção de que o coração está batendo num ritmo inadequado. Ou ele falha e o batimento fica descompassado, o que provoca palpitações, ou dispara e provoca taquicardias.
Entretanto, é preciso lembrar que existe uma manifestação extremamente grave das arritmias cardíacas, que é a parada cardíaca. Quando o distúrbio do ritmo do coração é muito acentuado e grave, a atividade do coração pode ser tão rápida e desorganizada, que a eficiência mecânica do coração desaparece e ocorre a fibrilação. Quando ela acomete os dois ventrículos, a atividade elétrica existe, mas não é sincronizada. Por isso, não há contração muscular efetiva, nem fluxo sistêmico. É como se o coração tivesse parado. Essa situação extrema que pode levar à morte súbita, muitas vezes, se manifesta em pessoas jovens e esportistas.
DIAGNÓSTICO DE ARRITMIAS
Drauzio – Quando o médico recebe uma pessoa que se queixa de palpitações, falta de ar e de que o coração, às vezes, parece bater na boca, como faz para esclarecer o diagnóstico a fim de definir o tratamento adequado?
Mauricio Scanavacca – É importante as pessoas saberem que as arritmias tanto podem ser benignas, como indicar uma situação grave, porque são anúncio de uma doença pré-existente no coração ou porque a própria arritmia representa risco para o paciente.
Por isso, quando a pessoa perceber que seu coração está batendo de forma inadequada, deve procurar um clínico ou um cardiologista para avaliação. Ele irá levantar a história, fará um exame clínico e pedirá um eletrocardiograma. Caso perceba alguma alteração que mereça ser investigada mais a fundo, certamente encaminhará o paciente para um especialista em arritmias.
Drauzio – Que outros exames podem ser indicados para facilitar o diagnóstico das arritmias?
Mauricio Scanavacca – Dependendo da situação, há uma série de exames que podem ser indicados. Às vezes, a avaliação clínica e o eletrocardiograma mostram ser desnecessária uma investigação adicional. Outras vezes, a presença de uma alteração exige a continuidade da investigação. Não basta saber se a causa da arritmia é uma doença no coração ou no sistema condutor do impulso elétrico. É preciso investigar se o paciente é portador de doença isquêmica do coração, de insuficiência coronariana, se já teve um infarto ou corre o risco de sofrer uma isquemia.
Miocardites e miocardiopatias, por exemplo, podem provocar reações inflamatórias no coração. Quando o tecido muscular é agredido, pode ser substituído por uma cicatriz. Ela bloqueia a condução do estímulo elétrico e propicia curtos-circuitos que provocam arritmias, extrassístoles (falhas no batimento) e taquicardias.
O outro passo da investigação é estudar especificamente a arritmia. Para tanto, os exames mais utilizados são o ecocardiograma (um ultrassom do coração que permite determinar seu tamanho, espessura das paredes, condições das cavidades e função cardíaca efetiva), o teste de esforço para verificar se existe insuficiência coronariana e como o coração se comporta em relação ao ritmo durante a atividade física, e um exame que monitoriza os batimentos do coração durante 24 horas. Conhecido como Holter-24horas, utiliza um gravador simples que registra o eletrocardiograma da pessoa durante suas atividades rotineiras. Depois, o médico analisa os dados do eletrocardiograma e correlaciona-os com os sintomas descritos pela pessoa enquanto usava o aparelho, o que torna possível saber se eles foram provocados por algum distúrbio rítmico ou não.
TRATAMENTO DAS ARRITMIAS
Drauzio – Quais são os tipos de arritmia que exigem tratamento especial?
Maurício Scanavacca – Existem dois tipos de alterações do ritmo cardíaco que requerem tratamento. O primeiro é a síndrome bradicárdica em que existe distúrbio na formação ou na condução do impulso elétrico, de tal forma que a frequência cardíaca é sempre inapropriadamente baixa. Quando está bem estabelecido que essa condição é transitória e reversível (muitas vezes foi provocada por uso de medicamentos), não merece tratamento definitivo. Porém, quando não existe possibilidade de recuperação, a única forma de restaurar a frequência cardíaca adequada é colocar um marca-passo, ou seja, um microcomputador que tem a capacidade de formar os impulsos elétricos e estimular as câmaras cardíacas.
Outro tipo de arritmia que requer tratamento é caracterizado pela ocorrência de curtos-circuitos no coração, o que aumenta o número de batimentos. Esses episódios podem ser isolados (extrassístoles), ou representar crises de taquicardia. O coração dispara, as pessoas sentem palpitações, sensação de desconforto e, às vezes, sintomas pré-sincopais.
Para esses casos, existem duas alternativas de tratamento. A primeira são os medicamentos utilizados basicamente para isolar os circuitos e evitar que as extrassístoles ou as taquicardias se manifestem. É um tratamento paliativo que a pessoa segue como forma de amenizar as crises.
O tratamento definitivo das taquiarritmias é cirúrgico e chama-se ablação por cateter. Uma vez identificado o local em que ocorre o distúrbio de formação do impulso, faz-se uma cauterização. Antigamente, essa cirurgia era realizada com o tórax aberto. Hoje, a intervenção cirúrgica é minimamente invasiva. Através de cateteres, localiza-se o foco e faz-se a cauterização.
Drauzio – Você acha que chegamos a um ponto em que os medicamentos e as cirurgias ablativas permitem ao portador de arritmias levar vida normal?
Mauricio Scanavacca – Desde a década de 1980, acompanho o grupo de arritmias do Incor que se dedica ao desenvolvimento de técnicas para tratar as arritmias e, no momento, me sinto confortável com o que é oferecido aos pacientes.
No caso das arritmias malignas que podem provocar a morte dos pacientes, o uso do desfribrilador externo é de fundamental importância para o tratamento rápido das crises agudas, uma vez que o atendimento precoce impede que o hipofluxo cerebral se instale e provoque lesões neurológicas irreversíveis. Recentemente, as campanhas para a instalação de desfibriladores externos se intensificaram para proporcionar atendimento rápido aos portadores de arritmias.
Há indivíduos, porém, em que o risco de desenvolver quadros graves de arritmia é maior. Esses não podem esperar que o socorro chegue com o desfribilador. Mesmo que tomem medicamentos antiarrítmicos que diminuem a probabilidade de ocorrência do evento, mas não a eliminam, precisam contar com os desfibriladores automáticos implantados. No Brasil, o Sistema Único de Saúde oferece esses aparelhos, que monitorizam continuadamente o ritmo do coração e, quando o evento se estabelece, são eficazes para reverter o processo.
Por fim, a ablação por cateteres, uma forma menos agressiva de tratamento curativo, foi de fundamental importância para a qualidade de vida dos portadores de uma gama muito grande de arritmias.
Vídeo: Dr. Drauzio explica o que é fibrilação atrial, um tipo mais grave de arritmia