O Projeto Genoma teve tal impacto na comunidade científica, que é difícil fazer previsões sobre seu potencial. Leia nesta entrevista sobre o genoma humano como está avançando essa discussão.
Cada um de nós é formado a partir das informações contidas nos genes que herdamos de nossos pais. Esses genes nada mais são do que pequenas estruturas químicas, ou seja, moléculas que reúnem quatro bases que se repetem em sequência. Essas quatro unidades ligadas umas às outras são responsáveis por tudo o que somos, por todas as proteínas do nosso corpo, estruturas que nos mantêm em pé e nos conferem características como altura, cor dos olhos e da pele, tipo sanguíneo, formato da molécula de insulina que o pâncreas produz.
Em 1990, teve início um grande esforço internacional com o objetivo de mapear e sequenciar todos os genes que constituem os seres humanos. O registro da posição de cada gene nos 23 pares de cromossomos e a determinação da ordem de ocorrência dos neucleotídeos que compõem cada um deles foi uma conquista que certamente causará grande impacto na prevenção e tratamento de muitas moléstias que afligem os homens desde os primórdios da humanidade.
INVESTIMENTO PÚBLICO E PRIVADO
Drauzio – O Projeto Genoma Humano (PGH) foi previsto para durar 15 anos, portanto terminaria em 2005, um cronograma que muitos consideravam inviável na prática. No entanto, ele terminou em 2003. O que permitiu que fosse concluído nesse tempo recorde?
Lygia da Veiga Pereira – Gosto muito de comparar o Genoma Humano a uma receita que a natureza segue para formar o ser humano e fazê-lo funcionar. Com a tecnologia dos anos 1990, caracterizar os elementos dessa receita era uma tarefa quase impossível. No entanto, as perspectivas mudaram quando investiram pesado no desenvolvimento de novas tecnologias e insistiu-se na discussão de questões éticas, sociais e legais, pois era previsível que a disponibilidade da sequência do Genoma Humano – da receita de como fazer um ser humano – iria causar enorme impacto.
A entrada de uma empresa privada com o propósito de sequenciar o genoma mais depressa do que o faria o setor público e a intenção de cobrar pelo acesso de cientistas ao sequenciamento foi fator importante para acelerar o processo. Essa competição e a soma dos esforços desses dois grupos, o público e o privado, mesmo que em paralelo, fez com que o sequenciamento saísse mais rápido do que fora previsto.
Drauzio – A empresa privada que fez o sequenciamento do Genoma Humano conseguiu atingir seus objetivos?
Lygia da Veiga Pereira – Eles não tiveram muito sucesso nessa empreitada, na medida em que geraram e estavam vendendo um produto ao qual qualquer um de nós tem acesso de graça na internet. Diante disso, a empresa ficou meio perdida, trocou de presidente, mas não se pode esquecer que desempenhou papel importante no sequenciamento do genoma humano.
Drauzio – Na época, a empresa era conduzida por Craig Venter, um homem muito ativo e de grande força.
Lygia da Veiga Pereira – Craig Venter é o tipo de pessoa que faz diferença na história, porque propõe ideias novas, às vezes polêmicas, mas que mexem com a comunidade e fazem as coisas acontecerem.
CONQUISTAS
Drauzio – O impacto provocado pelo Projeto Genoma foi de tal ordem que não conseguimos sequer projetar as repercussões que terá no futuro. Na sua opinião, esse esforço internacional para sequenciar os genes humanos pode trazer que resultados?
Lygia da Veiga Pereira – Ele vai nos permitir conhecer a fundo a biologia humana, o funcionamento do ser humano. Conhecer isso nos mínimos detalhes vai ter impacto na melhora da qualidade de vida e na saúde. Embora muita coisa ainda esteja no campo da promessa, há aplicações imediatas do conhecimento do genoma humano no estudo das doenças genéticas, uma vez que esse conhecimento permite identificar os genes que causam essas doenças e fazer diagnóstico pré-sintomático, ou até mesmo pré-natal, porque estará escrito no genoma que há um defeito na instrução daquela receita da natureza. Conhecendo exatamente qual é o gene defeituoso, qual proteína está faltando, será possível desenvolver uma terapia específica para a doença que se instalou.
Gosto de dar o exemplo da hemofilia. Há muitos anos se sabe que a hemofilia é um defeito de coagulação do sangue, mas não se sabia exatamente qual era. Os pacientes eram tratados com transfusão de sangue que continha a proteína ausente, mas que podia estar infectado pelo HIV ou pelo vírus da hepatite C, por exemplo. Descobrir qual é o gene e que está faltando o fator 8 ou o fator 9 de coagulação permite construir exatamente essa proteína em laboratório e infundi-la no paciente, uma forma de terapia eficaz para essa doença genética.
Drauzio – Você deu exemplo da hemofilia. Que outras doenças que podem utilizar-se do estudo do genoma?
Lygia da Veiga Pereira – Existe a fibrose cística, uma doença frequente dentro do universo das doenças genéticas. Depois de muita pesquisa, o gene responsável foi identificado em 1989. Trata-se de uma proteína situada na membrana das células, um canal de íons que está defeituoso. Embora seja um grande passo descobrir o gene associado a uma doença, até hoje não se conseguiu desenvolver uma terapia mais eficiente para a fibrose cística. Já para a doença de Gauchet, doença provocada pela ausência de uma enzima, foram desenvolvidas terapias e o paciente recebe injeções da enzima que lhe falta e supre suas necessidades.
As pessoas que dizem – “Já que as doenças genéticas são tão raras, que benefícios trará o sequenciamento do genoma humano para a população em geral?” -, precisam lembrar que os genes não determinam só as doenças genéticas. Determinam tudo na gente.
Drauzio – Determinam quem nós somos…
Lygia da Veiga Pereira – Exatamente. Para um corte cicatrizar, genes estão sendo ligados e desligados a fim de que as células se multipliquem. Dependendo da evolução desse processo, a cicatrização será normal, ou haverá formação de queloides ou até mesmo os tecidos não se cicatrizarão. Quando nos lembramos ou esquecemos de alguma coisa, genes também estão sendo ligados e desligados. À medida que formos conhecendo os fatores dos genes envolvidos em cada um desses processos normais que acontecem com todo o mundo, poderemos alterá-los para melhorar a qualidade da vida humana.
Dou aula para o segundo ano de medicina e sinto, às vezes, que os alunos não conseguem avaliar a extensão da influência da genética. “Vou ser cirurgião. Para que preciso saber genética, se para resolver os problemas estarei usando o bisturi?” é a pergunta que alguns me fazem e eu lhes digo que, daqui a alguns anos, certamente teremos descoberto, por exemplo, o gene que faz com que a cicatrização seja perfeita ou, então, forme um queloide e que existirá uma pomadinha para garantir o sucesso do resultado.
Na verdade, chegará o dia em que vamos lembrar da era pré-genoma como lembramos da medicina medieval. Quebrar um osso e passar meses engessado será uma conduta ultrapassada que deixará a todos pasmos, porque bastará pincelar um fator de crescimento ósseo para o osso soldar em duas semanas. Utilizar um roto-rooter para desentupir uma veia será sinônimo de tratamento primário, porque existirão medicamentos para impedir que coágulos se formem ou para dissolvê-los.
Tudo isso são previsões, são promessas para o futuro. O livro do genoma humano está aberto e é preciso entender profundamente cada um dos fatores para transformar essas promessas em realidade.
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BIODIVERSIDADE HUMANA
Drauzio – O conhecimento do genoma humano permite a identificação do que chamamos de biodiversidade humana. Entendemos facilmente que nossos rostos sejam diferentes e únicos, pois não há duas pessoas idênticas. O que vale para a aparência externa vale também para os processos bioquímicos. Provavelmente, não existirão duas moléculas de insulina idênticas nem duas que consigam metabolizar da mesma forma o açúcar.
Lygia da Veiga Pereira – Essa variabilidade do ser humano está criando uma área nova na genética, a farmacogenética. Hoje, a única forma de o médico saber como o paciente reagirá a determinado medicamento, é prescrevê-lo e observar os efeitos. Só depois de algum tempo, será possível dizer se a resposta foi boa ou não. O que se espera para daqui a algum tempo é pegar uma gotinha de sangue do paciente e, baseado em seu genoma, escolher o melhor remédio para seu caso
Conhecer as pequenas variações do genoma de cada indivíduo possibilitará criar uma medicina muito mais individualizada e eficiente. Por exemplo: será possível determinar a proteína que determinado câncer produz e saber qual quimioterápico funcionará melhor, exatamente o contrário do que ainda acontece, quando se testa o quimioterápico para ver se funciona ou não naquela pessoa, com o inconveniente de estar perdendo tempo precioso ou expondo o doente a efeitos colaterais que poderiam ser evitados.
MEDICINA PREVENTIVA
Drauzio – Você não acha que vai haver uma revolução na medicina preventiva que se resume, hoje, basicamente em vacinas e engenharia sanitária? Se tirarmos um fragmento do cordão umbilical da criança quando nasce para sequenciar o seu genoma, poderemos saber quais serão os riscos maiores de saúde a que estará exposta.
Lygia da Veiga Pereira – A medicina preventiva baseada na nossa genética é uma área fantástica e instigante na fase pós-genoma. Retirar um pouquinho de sangue de um adulto ou do bebê ao nascer e sequenciar-lhes o genoma pode demonstrar que a pessoa tem tendência a desenvolver hipertensão ou asma, doenças bastante comuns e não raras como a hemofilia e a fibrose cística. Saber que existe uma tendência genética, permite alterar o estilo de vida de forma a evitar ou adiar o desenvolvimento da doença. Conhecendo sua predisposição genética para hipertensão, por exemplo, a pessoa pode alimentar-se adequadamente, fazer exercícios, comer menos sal e não fumar sob nenhum pretexto.
GENÉTICA E COMPORTAMENTO
Drauzio – Quando surgiu o Projeto Genoma, o medo era que, com o conhecimento da estrutura dos genes, pudéssemos interferir no comportamento humano e criar hordas de pessoas obedientes e despersonalizadas. Como você vê essa possibilidade de intervenção no comportamento por meio da genética?
Lygia da Veiga Pereira – Hoje, tomo muito cuidado em dizer que não imagino que isso possa acontecer. Muitas coisas que acreditávamos impossíveis estão aí, provando nosso engano. No entanto, acho que tal hipótese está longe de concretizar-se, apesar do interesse no estudo dos genes por causa das doenças de comportamento.
É preciso tomar cuidado, porém, para não se deixar levar pela pretensão de controlar ou prever o comportamento das pessoas. A genética não é uma bola de cristal. Ao olhar o DNA de uma pessoa, classificá-la como agressiva ou deprimida, é um risco muito grande. O comportamento resulta de uma interação muito forte entre meio ambiente e genética. Existem genes que influenciam certos comportamentos, mas as pessoas não são escravas deles e muito podem fazer para atenuar sua influência. Em termos de usá-los para criar seres dóceis que obedecem sem discutir, acho que é uma possibilidade remota, porque se dominássemos o conhecimento a esse ponto, já teríamos descoberto como curar muitas doenças genéticas.
Drauzio – Experiências com animais de laboratório mostraram que por trás de determinado comportamento está uma constelação de genes e é praticamente impossível prever como cada um interage com os outros. Além disso, não se pode desprezar a influência do ambiente, você não acha?
Lygia da Veiga Pereira – O aspecto genético é constituído por uma rede complexa de fatores que interagem uns com os outros e não sei se é possível descobrir qual deles é o principal. São dezenas, quem sabe centenas de genes, que interagem e modulam o comportamento.
SEQUENCIAMENTO DE VÁRIAS ESPÉCIES
Drauzio – Os genes de todos os seres vivos têm a mesma estrutura química. Na bactéria mais reles, passando por todo o reino animal e vegetal, a estrutura química é exatamente a mesma. Na verdade, todos descendemos de um mesmo ancestral. A pesquisa do Genoma Humano permitiu o sequenciamento do genoma de vários organismos. Hoje temos o sequenciamento do tomate, do arroz, da cana-de-açúcar, do boi e o Brasil tem-se destacado nessa área, como prova o sequenciamento do genoma da bactéria Xillela fastidiosa responsável pela praga do amarelinho, por exemplo. Qual vai ser o impacto no futuro dessa explosão de sequenciamentos?
Lygia da Veiga Pereira – O sequenciamento do genoma de várias espécies diferentes nos ajuda também a compreender o Genoma Humano. Aprendemos muito da genética humana ao estudar a genética da bactéria ou da drosófila (mosquinha das frutas), porque temos genes que são primos distantes dos genes desses organismos. Descobrimos genes envolvidos em alguns tipos de câncer humano analisando genes já conhecidos na bactéria. Como você vê, estudando um organismo muito mais simples do que o ser humano, como é a bactéria, pode-se aprender muito sobre o genoma humano. Por isso, quanto mais genomas tivermos em mão, melhor será o entendimento da função de cada um dos genes humanos.
TRANSGÊNICOS
Drauzio – A manipulação dos genes no homem está sujeita a discussões éticas intermináveis. Nos animais e vegetais, ela está disponível e podemos ter alimentos transgênicos, assunto cercado de polêmica politizada demais para o gosto de qualquer cientista. Qual é sua opinião a respeito disso?
Lygia da Veiga Pereira – As pessoas têm medo crônico do novo. Acho interessante quando os ambientalistas se colocam numa posição xiita contra os transgênicos. Para eles, os transgênicos são culpados até que se prove ao contrário. É claro que precisa ter precaução, mas tudo tem limite, que parece não existir quando o assunto é transgênicos, embora até hoje não tenha sido demonstrado nenhum efeito adverso dos alimentos transgênicos no ser humano ou no meio ambiente.
Drauzio – Você poderia explicar essa última frase?
Lygia da Veiga Pereira – É importante as pessoas saberem que não existe nenhum trabalho científico sério documentando um efeito adverso dos alimentos transgênicos. O argumento é que eles podem fazer mal à saúde. Tem gente que é alérgica a amendoim; quando come, fecha a glote, mas nem por isso amendoim é prejudicial à saúde. O mesmo pode acontecer com os alimentos transgênicos. Não discuto que é preciso testá-los, experimentá-los antes de os colocá-los à disposição das pessoas. A partir de determinado ponto, porém, teremos de admitir que são seguros.
E tem mais: as pessoas não podem esquecer que há bilhões de indivíduos no mundo para alimentar. Com a tecnologia de que dispomos hoje para produzir alimentos, teremos de escolher o terço da população que deixaremos morrer de fome.
Como será possível produzir mais comida? Podemos aumentar a área de plantio, desmatando, acabando com as florestas, o que é considerado ruim pelos ambientalistas. A outra opção é aumentar a produtividade da área já cultivada. Isso pode ser feito aplicando agrotóxicos, dos quais conhecemos os efeitos adversos, ou com os transgênicos. Não entendo essa posição radical contra os transgênicos enquanto comemos tomates pulverizados com substâncias tóxicas.
É preciso abrir nossas cabeça e confiar que os cientistas não são malucos que querem criar comida Frankenstein. Eles estão procurando um caminho para obter alimentos mais nutritivos, e plantas que resistam às pragas e produzam mais. De certa forma, os agrotóxicos aumentaram a produtividade da terra, mas pagamos um preço alto por isso.
PREVISÕES PARA O FUTURO
Drauzio – Como você vê o futuro depois do sequenciamento do genoma humano?
Lygia da Veiga Pereira – Vejo com muito otimismo. Acho que só temos a ganhar com o conhecimento da nossa biologia, do nosso genoma. O importante é que as pessoas sejam bem informadas. Toda nova tecnologia ou conhecimento podem ser utilizados construtiva ou destrutivamente. O exame feito no bebezinho ao nascer não pode servir para negar-lhe uma apólice de seguro por causa de sua tendência genética para desenvolver certas doenças, nem negar a matrícula numa escola para uma criança porque ela tem o gene da agressividade.
Essas questões precisam ser discutidas para que se possa tirar o melhor proveito do conhecimento do genoma humano. Para isso, os cientistas devem traduzir claramente o que está acontecendo para a população participar do debate.
Drauzio – No Brasil, essa discussão sobre os genes está sendo bem encaminhada?
Lygia da Veiga Pereira – O Brasil começou a destacar-se muito nessa área com o sequenciamento do genoma de uma bactéria e do genoma do câncer e isso levantou o assunto para ser discutido pelas pessoas. Dentro do meio científico, a preocupação é comunicar bem o que está sendo feito à população. A grande arma contra o mau uso do conhecimento é ter uma população bem informada. As pessoas precisam entender o que é o genoma, o que são promessas e o que é realidade possível no momento.