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Saúde pública

Programa do Ministério da Saúde contra dengue mistura ciência, armadilhas e mosquitos modificados

Iniciativa nacional tenta frear avanço da doença com ações integradas entre governo, municípios e população – mas há críticas.
Publicado em 06/08/2025
Revisado em 06/08/2025

Iniciativa nacional tenta frear avanço da doença com ações integradas entre governo, municípios e população – mas há críticas.

Em 2024, o Brasil intensificou a luta contra a dengue depois que o número de casos ultrapassou a marca de 6,4 milhões e o de mortes superou as da covid. No combate ao mosquito infectado com o vírus, o governo federal recorreu a armadilhas, borrifação de inseticidas e até a introdução de bactérias nos insetos – tudo dentro do Plano de Contingência Nacional para Dengue, Chikungunya e Zika, lançado no fim do ano passado.  

Em março deste ano, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista publicada no site da pasta, declara que a luta contra o vetor e a doença tem sido primeiramente baseada em ouvir a ciência. “A partir dessa escuta, estamos analisando e aprimorando as ações de controle da dengue no Brasil, em parceria com estados e municípios”, falou. 

O plano é baseado em seis eixos: prevenção, vigilância, controle vetorial, organização da rede assistencial e manejo clínico, preparação e resposta às emergências, e comunicação e participação comunitária. “É muito bem escrito e estruturado, com várias etapas essenciais para o controle de dengue e de outras arboviroses”, diz Joziana Muniz de Paiva Barçante, professora associada na Universidade Federal de Lavras (UFLA) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Biomédica (Nupeb) e do Setor de Prevenção de Endemias da mesma instituição.

No entanto, de acordo com a pesquisadora, há dúvidas sobre a viabilidade do plano. Além disso, ela afirma à reportagem que, até o momento, os resultados ao longo do ano não indicam a redução consistente no número de casos em relação a outros anos – com exceção de 2024, que foi atípico.

Veja a seguir algumas das ações, saiba como elas funcionam e os resultados alcançados. 

Vacinação QDENGA® no SUS

Uma das diretrizes do plano é “incentivar, apoiar e fortalecer ações e estratégias para ampliação da cobertura vacinal”. No fim de 2023, o Ministério da Saúde lançou a vacinação com a QDENGA® (vacina tetravalente com o vírus vivo atenuado), tornando o Brasil o primeiro país a oferecer o imunizante pelo SUS.

Apesar de ser um marco, a cobertura ainda é insuficiente para impactar os números de forma imediata. “A gente ainda tem um efeito muito pequeno em relação a ela no perfil epidemiológico de dengue no Brasil”, diz Joziana.

O epidemiologista David Soeiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Única, tem opinião semelhante. Ele fala que a vacinação não substitui as táticas tradicionais de controle vetorial e vigilância epidemiológica, devendo ser integrada a essas práticas para maximizar o impacto no controle da doença. 

“A estratégia deve combinar ações de vigilância epidemiológica, laboratorial, assistencial (manejo clínico adequado) e de controle de vetores, incluindo ações como a eliminação de criadouros do Aedes aegypti, a vigilância entomológica ativa, o monitoramento da circulação viral por sorotipo e a educação em saúde, uma vez que a vacina apresenta limitações como proteção moderada ou ainda limitada para alguns sorotipos”, declara.

Manejo clínico sindrômico 

O manejo clínico sindrômico na dengue é uma abordagem usada para diagnosticar e tratar os pacientes com base nos sinais e sintomas apresentados. O termo “sindrômico”, que vem de síndrome, se refere ao conjunto de sinais e sintomas que aparecem juntos e caracterizam uma condição.

No caso da dengue, os profissionais de saúde observam se o paciente apresenta manifestações clínicas compatíveis com a doença, como febre, náuseas, dor de cabeça, vômitos, diarreia, gastrite, entre outras. Na sequência, classificam o paciente de acordo com o risco, conforme estabelecido no manual Dengue – Diagnóstico e Manejo Clínico – Adulto e Criança – do Ministério da Saúde.

“O manejo sindrômico dos casos positivos é fundamental porque, na maioria das situações, as mortes por dengue podem ser evitadas. Isso requer, primeiro, que o paciente reconheça os sintomas e sinais de alerta da forma grave da doença. Segundo, que busque atendimento médico imediatamente ao identificar esses sinais e, terceiro, que encontre uma unidade de saúde adequadamente preparada para fornecer o tratamento oportuno”, explica Joziana.

Veja também: Como identificar a dengue grave?

Ovitrampas

As ovitrampas são armadilhas que atraem as fêmeas para depositarem seus ovos. Basicamente, são recipientes de plástico na cor preta, de boca larga, com cerca de 15 cm por 2,5 cm, instalados no entorno das casas, à altura máxima de até 150 cm e abrigados da chuva. Normalmente, são distribuídas no território com raio de 300 ou 400 metros de distância entre uma e outra. Esses dados estão em nota técnica da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, do Ministério da Saúde. 

Alguns dias depois da instalação, agentes de endemia recolhem os ovos, antes que nasçam, e os levam para os laboratórios. O objetivo é monitorar a densidade das populações de vetores e direcionar ações de controle vetorial em áreas urbanas. “O monitoramento dos vetores por ovitrampas oferece dados com implementação simples e acessível para os municípios”, disse Soeiro.

Método Wolbachia

Esse método consiste na introdução artificial de uma bactéria chamada Wolbachia no Aedes aegypti. Esse microrganismo tem a capacidade de impedir que os vírus da dengue e outras arboviroses, como zika e chikungunya, se desenvolvam dentro do vetor, contribuindo, assim, para diminuir a transmissão dessas doenças. Isso ocorre, segundo a professora Joziana, porque a bactéria compete com o vírus pelos mesmos recursos intracelulares.

“Ela (bactéria) chega primeiro naquele ambiente intracelular e consome aqueles recursos intracelulares. Isso acaba sendo desfavorável à replicação viral, reduzindo a capacidade do vírus de se multiplicar e, consequentemente, desse inseto infectar uma pessoa e transmitir o vírus”, explica a professora.

Os mosquitos com Wolbachia são liberados para que se reproduzam com os Aedes aegypti, de modo a estabelecer, aos poucos, uma nova população. No Brasil, alguns municípios já adotaram a estratégia, como parte de Belo Horizonte (MG), Niterói (RJ), Petrolina (PE), Campo Grande (MS), Joinville (SC), Foz do Iguaçu (PR), Natal (RN), Presidente Prudente (SP) e Uberlândia (MG), onde a soltura dos mosquitos é monitorada.

No último mês de julho, foi inaugurada em Curitiba (PR) a maior biofábrica de Wolbachia do mundo, fruto da parceria entre a Fiocruz, a Wolbito do Brasil, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) e o World Mosquito Program (WMP). A expectativa é que o local produza 100 milhões de ovos de mosquito – que carregam a bactéria – por semana.

A professora Joziana considera o método promissor, com potencial positivo a médio e longo prazo, mas ressalta que ele requer monitoramento constante. O professor Soeiro afirma que as evidências atuais reconhecem o potencial da estratégia, embora ainda sejam fracas as comprovações de sua efetividade em ensaios clínicos randomizados. “A expansão do uso do método no País representa a oportunidade de avaliá-la de forma mais abrangente em diferentes contextos epidemiológicos.”

Veja também: Bactéria Wolbachia inibe transmissão de dengue e outras arboviroses

Inseto estéril 

O objetivo dessa técnica é liberar mosquitos machos estéreis da espécie Aedes aegypti para cruzarem com fêmeas selvagens, que passam a botar ovos inférteis, reduzindo a população de insetos transmissores do vírus. Sua utilização, segundo o professor Soeiro, é recomendada para territórios com grande quantidade de vetores dessa espécie. “Pode ser interessante em locais cuja população de mosquitos demonstra perfil de resistência acentuada a inseticidas ou áreas urbanas onde a aplicação de inseticidas não é permitida, como áreas de proteção ambiental, ou ainda em áreas com restrição de aplicação de inseticidas por nebulização espacial, também conhecido como ‘fumacê’.” 

Exemplo do uso dessa técnica ocorreu em Recife. Entre 2020 e 2021, a prefeitura soltou entre 250 mil e 350 mil mosquitos no ambiente, o que resultou na redução de 19% na população de mosquitos, segundo matéria publicada em 2021 pela agência oficial de notícias das Nações Unidas. “O método já foi usado com sucesso nos Estados Unidos para erradicar a mosca Cochliomyia hominivorax (causadora de bicheira) e no Brasil no combate à mosca-da-fruta”, lembra a professora Joziana.

A expansão desse procedimento, porém, é desafiadora por causa da complexidade da produção e do transporte dos mosquitos estéreis, de acordo com o professor Soeiro.

Estações Disseminadoras de Larvicidas (EDLs) 

As Estações Disseminadoras de Larvicidas (EDLs) consistem em recipientes com tecido impregnado com larvicida em pó (inseticida que mata as larvas dos mosquitos) e com espaço para colocar água, atraindo os Aedes aegypti. “Quando o mosquito da dengue entra na armadilha, atraído pela água para depositar os seus ovos, ele entra em contato com o larvicida. Ao voar para outros criadouros, ele contamina esses locais, disseminando o larvicida, impedindo que as larvas se desenvolvam e novos mosquitos nasçam”, explica o professor Soeiro.

A professora Joziana esclarece que essa técnica se aproveita do comportamento da fêmea do mosquito, que realiza a postura de 50 a 100 ovos por ciclo ovariano (ciclo reprodutivo, chamado de gonadotrófico) e tem entre 5 a 8 ciclos ao longo de sua vida, que dura cerca de 30 a 45 dias ou mais, dependendo do ambiente.

“Isso significa que uma única fêmea visita vários criadouros (locais de reprodução) durante sua vida, podendo passar por até oito ciclos e, consequentemente, diferentes criadouros. Se um desses locais for uma Estação Disseminadora de Larvicida (armadilha com produto que mata as larvas), ela pousará na água contendo esse composto. Ao visitar outro criadouro natural, transportará o larvicida consigo, contaminando esse novo local.”

Veja também: O que diferencia a chikungunya da dengue e da zika?

Borrifação residual intradomiciliar

É basicamente a aplicação de inseticida em superfícies onde os mosquitos possam pousar para eliminar principalmente as fêmeas adultas. De acordo com a Secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente, esse método “tem como objetivo promover maior proteção à população contra o Aedes nos ambientes internos de imóveis de grande circulação de pessoas”. Normalmente, é aplicado em imóveis especiais, lares de idosos, residência de recicladores, rodoviárias, universidades, escolas e unidades básicas de saúde.

E os resultados?

À primeira vista, pode parecer que o Plano de Contingência Nacional está dando muito certo. Afinal, o Brasil registrou 1.530.971 casos prováveis de dengue entre janeiro e julho deste ano, queda de 75% na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados do Painel de Monitoramento das Arboviroses, do Ministério da Saúde. No entanto, “2024 foi atípico e não pode servir como padrão”, lembra a professora Joziana. No ano passado, o número disparou devido à intensificação de novos sorotipos, causada por mudanças climáticas, conforme declarou em janeiro a então ministra da Saúde, Nísia Trindade, que deixou o cargo em fevereiro.

O número de casos até julho já ultrapassa o de 2022 (1,3 milhão) e o de 2023 (1,6 milhão). “Se o ritmo continuar, superaremos os anos anteriores, mostrando que não houve redução efetiva”, diz Joziana. Para a pesquisadora, uma das razões é que, embora o plano seja robusto, muitas das medidas propostas não são viáveis em municípios com recursos limitados. Um dos pontos críticos é a falta de equipes para cobrir todas as frentes. Outro problema é a vigilância viral – saber qual tipo de sorotipo circula em cada região –, o que exige uma estrutura que o país ainda não tem. “Hoje a gente não consegue, em termos práticos, fazer isso em termos de Brasil como um todo.”

Talvez o maior desafio, de acordo com a pesquisadora, seja o engajamento da população. A participação de todos é essencial porque, segundo dados do próprio Ministério da Saúde, 70% dos focos do Aedes aegypti estão dentro das casas. “Você não consegue controlar a dengue sem o engajamento da população, sem essa participação comunitária e senso de responsabilidade compartilhada.”

O professor Soeiro tem opinião semelhante. Ele fala que existe o reconhecimento de que o Aedes aegypti é um mosquito “doméstico”, em estreita associação com o homem, principalmente em áreas urbanas. “Se há consenso dentre as estratégias de controle da dengue é que, se o morador não tiver compreensão do problema e não se engajar, dando o apoio necessário, não teremos sucesso no combate. Precisamos convencê-lo disso e pedir seu apoio.”

Veja também: Como a dengue foi de doença erradicada para endêmica no Brasil

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