Quadro é caracterizado pela alternância de períodos de depressão e de euforia. Entenda a doença nesta entrevista sobre transtorno bipolar.
* Edição revista e atualizada.
No passado, o transtorno bipolar era conhecido pelo nome de psicose maníaco-depressiva, uma doença psiquiátrica caracterizada por alternância de períodos de depressão e de hiperexcitabilidade ou mania. Nesta fase, a pessoa apresenta modificações na forma de pensar, agir e sentir e vive num ritmo acelerado, assumindo comportamentos extravagantes como sair comprando compulsivamente tudo o que vê pela frente, ou então investindo em empreendimentos acreditando que renderão lucros vertiginosos, ou envolvendo-se em experiências perigosas sem levar em conta o mal que podem causar.
Veja também: Ouça nosso podcast sobre transtorno bipolar
Sabe-se que os transtornos bipolares estão associados a algumas alterações funcionais do cérebro, que possui áreas fundamentais para o processamento de emoções, motivação e recompensas. É o caso do lobo pré-frontal e da amígdala, uma estrutura central que possibilita o reconhecimento das expressões fisionômicas e das tonalidades da voz. Junto dela, está o hipocampo que é de vital importância para a memória. A proximidade dessas duas áreas explica por que não se perdem as lembranças de grande conteúdo emocional. Por isso, jamais nos esquecemos de acontecimentos que marcaram nossas vidas, como o dia do casamento, do nascimento dos filhos ou do lugar onde estávamos quando o Brasil ganhou o campeonato mundial de futebol.
Outro componente envolvido com os transtornos bipolares é a produção de serotonina no tronco-cerebral (o cérebro arcaico), uma substância imprescindível para o funcionamento harmonioso do cérebro.
DISCUTINDO A NOMENCLATURA
Drauzio – Por que, nos anos 1980, a antiga psicose maníaco-depressiva passou a chamar-se transtorno bipolar?
Valentim Gentil Fº – Analisando separadamente os elementos que compõem esse nome, pode-se dizer que a palavra psicose carrega a conotação de estigma, isto é, de marca infamante, vergonhosa. Maníaco, por sua vez, é um termo técnico derivado do grego e significa loucura. De fato, na fase de hiperexcitabilidade, o indivíduo é o estereótipo do louco, já que suas atitudes destoam, e muito, do padrão normal de seu comportamento. Depressivo era o termo mais brando dos três e que menos impacto causava. Por isso, considerou-se que a expressão psicose maníaco-depressiva era pesada demais para designar uma doença que, de certa forma, não era tão terrível quanto o nome fazia supor. Na verdade, trata-se de um transtorno de humor que oscila entre o polo da euforia, da mania ou da hipomania, do qual faz parte esse comportamento excitado e desorganizado, e o polo da depressão, retomando a pessoa depois o equilíbrio sem grandes prejuízos comportamentais nem na integração das emoções e dos pensamentos.
De qualquer modo, a palavra psicose não era de todo descabida porque, durante a crise, algumas pessoas ficam realmente psicóticas, ou seja, apresentam uma afecção muito grave da psique com alucinações e delírios, o grau extremo desse transtorno de humor. A partir do momento, porém, em que essa afecção grave recebe tratamento eficaz e adequado, o quadro torna-se benigno a tal ponto que é possível conviver com pessoas portadoras de transtorno bipolar de humor sem identificar o problema.
Veja também: Depressão do transtorno bipolar tem tratamento diferente da depressão comum
A mudança de nomenclatura ocorreu, então, para diminuir o estigma e para estabelecer distinção entre esse tipo de transtorno e as depressões unipolares que nunca evoluem para a fase de euforia, de mania ou hipomania. Além disso, essa distinção foi importante para verificar se biologicamente as patologias eram diferentes e, portanto, exigiam condutas especiais de tratamento.
EUFORIA PATOLÓGICA
Drauzio – Todos atravessamos na vida fases de grande euforia e de grandes tristezas. Como diferenciar o quadro normal do patológico?
Valentim Gentil Fº – Em psiquiatria, os termos ainda não atingiram a especificidade necessária. Por exemplo, etimologicamente, a palavra euforia quer dizer humor normal, bom humor. Se o indivíduo está eufórico no carnaval, no dia do aniversário ou porque ganhou um prêmio ou um campeonato, isso nada tem de anormal nem de patológico. O que chama a atenção é a desproporção entre as circunstâncias e as reações, ou seja, o comportamento é desproporcional aos fatos ou inadequado ao ambiente. A pessoa está alegre e eufórica, quando nada ao redor justifica tais sentimentos. Como sua autocrítica está comprometida, age como se estivesse (e não está) sob o efeito do álcool ou de drogas. Seu pensamento fica acelerado e desorganiza-se de tal modo, que os assuntos surgem em tumulto e é difícil acompanhar sua linha de raciocínio.
Drauzio – Dê um exemplo para ficar mais claro.
Valentim Gentil Fº – Existe um filme em que uma das personagens, Mr. Jones, assume o comportamento típico desses pacientes. Nas crises de euforia, os portadores de transtorno bipolar apresentam menor necessidade de sono. Mr. Jones levantava-se às 4h da manhã e, sem se incomodar com o descanso alheio, ligava o rádio bem alto como se as atividades por ele programadas para aquele dia interessassem a todos. Noutros momentos, julgando-se dono de um poder extraordinário, subia no telhado certo de que poderia alçar voo. Nessas crises de agitação, mexia com as pessoas e falava tão depressa que ninguém conseguia acompanhar seu pensamento. Às vezes, apesar da genialidade aparente, expunha-se a riscos desnecessários e descabidos.
Em geral, as famílias logo percebem que alguma coisa mudou e a pessoa também pode notar a diferença. Isso é de extrema importância como sinal de alerta. Na medida em que o próprio indivíduo e os familiares se dão conta dessa liberação exagerada de energia e humor, algumas providências podem ser tomadas para reverter o quadro. Se, porém, o problema passar despercebido ou for negado, as consequências poderão ser desastrosas. O frenesi e desorganização mental, depois de algumas semanas, podem provocar um estado de exaustão perigoso e as pessoas mais idosas correm o risco de descompensação metabólica ou de crises de hipertensão.
É importante repetir que, apesar de bem no início a sensação de euforia, de prazer, de energia, de percepção aguçada, inteligência viva e criatividade ser muito agradável, ela pode representar perigo, chegando a constituir, no passado, uma das causas importantes de mortalidade.
FATORES GENÉTICOS E AMBIENTAIS
Drauzio – Filhos de pessoas com transtorno bipolar apresentam possibilidade maior de desenvolver essa patologia?
Valentim Gentil Fº – Sabe-se, desde a Antiguidade, que a existência de um caso de transtorno bipolar numa família aumenta a possibilidade de que a enfermidade se manifeste em outros membros da mesma família. O desenvolvimento da genética permitiu analisar grande número de gêmeos nos quais a patologia torna-se mais evidente. Gêmeos idênticos, ou monozigóticos, possuem genoma absolutamente igual, mas apenas em 80% dos casos os dois irmãos apresentam quadros de euforia e depressão. Embora a porcentagem seja elevada, 20% não manifestam o problema. Cabe perguntar, então, se fatores extragenéticos interferem nesse resultado. Sim e não. Uma vez que ninguém expressa seu genoma completamente, pode-se deduzir que, apesar da carga genética idêntica, só num dos gêmeos ela encontrou as condições necessárias para o desenvolvimento da patologia que certamente depende da interação de tais fatores com o ambiente. Não se pode deixar de considerar também que, além da predisposição e vulnerabilidade geneticamente determinadas, certas situações contribuem para a eclosão ou precipitação do problema.
Drauzio — Quais os fatores ambientais mais importantes?
Valentim Gentil Fº – As evidências indicam que, nos últimos anos, cresceu a incidência desses quadros. Será que aprendemos a diagnosticá-los melhor? Pouco provável, pois algumas descrições do transtorno bipolar datam de 2.500 anos atrás, época em que os termos mania e melancolia já eram empregados. Por outro lado, descrições de médicos, no início da era cristã, são idênticas às que encontramos hoje nos melhores livros de psiquiatria.
Por que, então, a prevalência de uma doença tão robusta e evidente, tão antiga e bem descrita, está aumentando? Uma das possibilidades é que alguns acontecimentos e atitudes podem precipitar a ocorrência de distúrbios do humor. Hoje, estamos submetidos a uma carga maior de estresse, dormimos menos e consumimos mais substâncias lícitas e ilícitas que interferem no humor. Quer um exemplo? O uso de remédios para emagrecer ou de cafeína é mais frequente e maior agora do que era no passado.
Outro exemplo? O puerpério é uma fase em que é maior o risco de surgirem quadros de depressão e euforia. Para as mulheres, as explicações são muitas: oscilação dos hormônios, parto, nascimento do bebê. Como explicar, porém, a manifestação da doença nos maridos? Certamente, a emoção, a privação do sono, a expectativa, a atmosfera festiva do nascimento desencadeiam a crise, confirmando que a interação de fatores ambientais, constitucionais e genéticos é de extrema importância.
Ninguém deve viver numa redoma, mas, se as pessoas levassem em conta que o sistema nervoso é bastante delicado e precisa ser tratado com respeito, talvez a incidência de casos de transtorno afetivo fosse menor do que é atualmente.
Drauzio – Existe relação clara entre o uso de cafeína e o transtorno bipolar?
Valentim Gentil Fº – O uso excessivo de cafeína pode produzir convulsão e algumas pessoas ingerem, todos os dias, quantidades absurdas dessa substância. Cheguei a conhecer uma que tomava 14 litros de coca-cola num único dia e era difícil distinguir seu comportamento do de um indivíduo com transtorno bipolar.
E para que as pessoas usam cafeína? Para ficarem acordadas, com mais energia e ânimo, mais alerta. Trata-se, então, de um agente externo, consumido como se fosse alimento, que estimula o humor. No que se refere às drogas ilícitas (cocaína, crack, anfetaminas), seu uso aumenta o risco de desenvolver a primeira crise, assim como aumenta a frequência das recorrências, que tendem a tornar-se autônomas, fenômeno já apontado na Antiguidade.
IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO PRECOCE
Drauzio – O diagnóstico de transtorno bipolar em crianças e adolescentes, pouco frequente no passado, cresceu bastante nos últimos tempos. O que justifica essa mudança?
Valentim Gentil Fº – Trabalho com transtorno do humor desde que me formei, há 32 anos, e só me dei conta de que ele pode manifestar-se na infância há cerca de dez anos. Por circunstâncias diversas, os psiquiatras de adultos receberam menor treinamento em psiquiatria infantil, uma área na qual ainda predominam conceitos talvez já superados. Por isso, os casos de transtorno bipolar ficavam mais evidentes na adolescência quando, em geral, era feito o diagnóstico. No entanto, se enfocarmos a história desses adolescentes e ouvirmos seus pais, encontraremos evidências muito precoces de alteração de humor, irritabilidade, distúrbio do sono e hiperatividade. Hoje, está em voga atribuir tais sintomas apenas aos distúrbios de atenção e à hiperatividade (TDAH) e existem programas inteiros dedicados ao reconhecimento e tratamento dessas manifestações. Em muitas crianças, porém, eles podem estar relacionados com o transtorno bipolar, particularmente se a frequência dessa patologia é alta na família.
Essa visão tornou-se tão importante que existe um site (www.bpkids.org) por meio do qual os parentes chamam a atenção de médicos, psicólogos e professores para o comportamento conturbado dessas crianças que mudam de humor várias vezes num mesmo dia.
Drauzio – Nesse ponto, elas são diferentes dos adultos que apresentam ciclos de depressão e hiperatividade mais longos.
Valentim Gentil Fº – É verdade, nos adultos os ciclos são mais longos e chama-se ciclagem rápida quando se repetem quatro vezes num ano, sinal de maior gravidade e complexidade do quadro. Imagine, agora, uma criança que apresente 1500 ciclos por ano, porque mais de quatro ela pode ter facilmente num dia. Essa criança de comportamento imprevisível, inquieta física e mentalmente, não tem distúrbio de atenção, tem transtorno bipolar. Por isso, se não distinguirmos a criança apenas rebelde e desafiadora da que tem um temperamento desfavorável, hostil e irritado, porque é portadora de transtorno de humor bipolar, e quisermos educá-la com severidade exagerada, ela reagirá negativamente. Esse transtorno requer tratamento adequado. Provavelmente, na história da humanidade, muita gente com predisposição para a doença e que manifestou um distúrbio de personalidade muito grave, se tivesse sido atendida de modo conveniente, teria desenvolvido uma forma mais branda da enfermidade.
Oassunto é tão importante que a revista Time destacou o transtorno bipolar na infância como matéria de capa na edição do dia 19 de setembro de 2002.
TRANSTORNO BIPOLAR E CRIATIVIDADE
Drauzio – Edgar Allan Poe, Van Gogh, Schuman, Churchill, grandes homens da história e das artes, tinham transtorno bipolar. Qual a relação entre a criatividade e essa doença?
Valentim Gentil Fº — Interessante que essa relação entre transtorno bipolar de humor –euforia e melancolia – e criatividade já era abordada por Aristóteles que indagava (pelo menos, a pergunta é atribuída a ele) por que tantos homens ilustres da filosofia, da matemática e das artes apresentavam essa característica. De acordo com alguns depoimentos, estados depressivos favorecem a percepção de um universo que em estado normal seria impossível apreender e a euforia estimula a criatividade. No entanto, pesquisas realizadas nos últimos 20 anos, sugerem que essa hipótese não é verdadeira. Elas apontam que, na maioria dos casos, a criatividade é uma característica genética encontrada também nos parentes próximos que não são doentes .
Quem estudou esse tema de forma bastante original foi Kay Jamison, uma psicóloga portadora de transtorno bipolar e uma das personalidades mais conhecidas na área. Em seu livro autobiográfico “Uma mente inquieta”, publicado há alguns anos e traduzido para o português, a autora relata que só se acertou na vida quando se deu conta do que tinha e pôde tomar medidas preventivas e de precaução, como tomar lítio, que evitassem as crises.
Em outro livro, Touched with Fire, ainda não traduzido para o português, ela analisa a biografia de grandes líderes políticos, religiosos, militares, intelectuais e artistas e registra o que falavam e sentiam nos momentos de depressão e de euforia. Um escritor inglês, por exemplo, julgava a depressão não uma inspiração dos deuses, mas uma poeira que recobria o cérebro. Van Gogh, que se matou aos 37 anos com um tiro no peito, atravessava um período de extrema melancolia quando pintou seu último quadro – corvos num campo de trigo. No verão daquele mesmo ano, atravessando uma fase de grande euforia, o tema de um quadro psicodélico é uma fantástica noite estrelada.
Diante das possibilidades de tratamento que existem hoje, teria sido oferecido a Van Gogh, no mínimo, o direito de optar se desejava continuar pintando obras-primas nos estados de euforia e depressão ou se preferia tomar lítio, acalmar as crises e não correr o risco de morrer precocemente.
Drauzio – Que opções você me ofereceria se, na situação de Van Gogh, eu preferisse continuar pintando quadros magníficos, apesar dos inconvenientes das crises, a ser tratado e perder a inspiração?
Valentim Gentil Fº – Eu lhe ofereceria minha amizade e compaixão. Foi o que fez o dr. Gachet, grande pintor e médico de Van Gogh, que só contava com o Digitallis para cuidar do amigo. Dizem até que Van Gogh usou tanto o amarelo em suas obras, porque tomou esse remédio em demasia.
Vale considerar que o dr. Gachet não tinha outra opção de tratamento naquela época e o resultado foi a perda de um grande gênio. Hoje, no entanto, ele poderia propor várias alternativas de tratamento. Será que Van Gogh escolheria continuar pintando no estado psicótico que o levou a cortar uma orelha e a dar um tiro no peito, ou preferiria pintar em estado normal, controlando formas e pincel do jeito maravilhoso que sabia fazer? Para tanto, bastava que concordasse em tomar lítio. Talvez nas primeiras semanas, até acertar a dosagem adequada para seu organismo, seu desempenho em alguma área caísse um pouco, mas o risco de suicídio ficaria sete vezes menor com o tratamento.
POSSIBILIDADES DE TRATAMENTO
Drauzio — Há tratamentos eficazes para o transtorno bipolar atualmente?
Valentim Gentil Fº – Há tratamentos tão eficazes quanto os existentes em qualquer outra área da medicina. Sua aplicação possibilita, em poucas semanas, reverter um quadro grave de euforia. A doença não tem cura, mas as pessoas melhoram, recebem alta e reassumem suas atividades. Se não se expuseram demais e não ficaram estigmatizadas pelo comportamento aberrante, serão acolhidas como alguém que teve um desequilíbrio metabólico qualquer ou uma ausência provocada pela ingestão de drogas. Isso se consegue com medicamentos (neurolépticos, antipsicóticos, estabilizadores do humor) e a retirada de certas substâncias (cafeína, cocaína, anfetaminas) que agravam o quadro. O risco de recaída ou de evoluir para depressão existe e é preciso estar atento ao uso de medicamentos antidepressivos que, embora eficazes, podem precipitar uma virada indesejável para a euforia ou acelerar a frequência das crises.
Em se tratando do lítio, o incrível é que os médicos do Império Romano encaminhavam seus pacientes com mania e melancolia para uma estação de águas ricas em lítio. Mesmo desconhecendo a existência dessa substância, haviam percebido que ali eles reagiam melhor do que noutras termas. Outro ponto importante é que o lítio é uma substância tóxica presente em doses bem baixas no organismo. Usado em doses adequadas, porém, é capaz de reverter os quadros de euforia e evitar as recorrências. Tomando lítio, os pacientes podem levar vida normal e dar asas à criatividade.
Drauzio – A pessoa precisa sempre estar medicada para levar vida normal?
Valentim Gentil Fº – Por quanto tempo a pessoa deve tomar lítio para levar vida normal é discussão constante na literatura. Nos EUA, existe um centro de informações do qual constam 35.000 artigos que tratam da utilização do lítio nos mais diferentes campos, entre eles, a prevenção da recorrência dos transtornos bipolares. Além disso, está provado que a associação do lítio com anticonvulsivantes e antidepressivos previne recaídas. O lastimável, porém, é que apenas uma parcela pequena da população tenha acesso a esse tratamento.
Drauzio – O problema talvez não seja apenas dificuldade de acesso, mas o número insuficiente de profissionais com conhecimento e habilidade para lidar com essas drogas e atender tantos pacientes, não é?
Valentim Gentil Fº – Esse é um problema mundial. Mesmo nos EUA, onde existem mais recursos, os residentes de psiquiatria não aprendem a usar lítio adequadamente. Segundo seus professores americanos, seria necessário que acompanhassem a evolução dos pacientes durante seis meses ou um ano, para inteirar-se das nuances do tratamento porque o lítio é tóxico e, se não for usado direito, não funciona. Como isso não é possível, eles preferem treinar os residentes para usar anticonvulsivantes que, na maioria dos casos, são desnecessários, causam efeitos colaterais e, a longo prazo, não apresentam os bons resultados do lítio. Por paradoxal que pareça, nem mesmo tendo representado uma economia de 150 bilhões de dólares, porque a indicação do lítio no tratamento dos transtornos afetivos evitou internações, violência, suicídios, ele ainda não é usado adequada e regularmente nos EUA.
No Brasil, infelizmente, não existem programas de prevenção com o uso de lítio nem treinamento de residentes a não ser em alguns centros universitários que possuem clínicas especializadas em transtorno bipolar, como o Hospital das Clínicas, a Escola Paulista de Medicina e algumas outras universidades paulistas e brasileiras. Diante da dimensão do problema, existir um programa de prevenção deveria estar a cargo da Saúde Pública.
TRANSTORNO BIPOLAR NA INFÂNCIA
Drauzio – Observando o comportamento dos filhos, como os pais podem identificar sinais de transtorno bipolar?
Valentim Gentil Fº — Se, desde que nasceu, a criança apresenta um temperamento mais eufórico, é cheia de energia e criatividade, mas não perturba ninguém nem a si mesma, isso faz parte de sua personalidade, é normal e não deve ser coibido.
Agora, se ela é instável demais e repentinamente oscila entre a euforia e a depressão, a apatia e a hiperatividade, se nada justifica seu estado de excitação e euforia, a falta de sono, a empolgação e há casos de transtorno bipolar ou mesmo de depressões decorrentes na família, os pais devem procurar ajuda. O problema, porém, é o risco de encontrar apenas quem dê explicações lógicas para o comportamento da criança. A lógica pode explicar muita coisa, mas nem tudo o que é lógico é normal. As professoras e orientadoras explicam o que acontece na escola e a própria dinâmica familiar serve de explicação para o comportamento infantil. Por isso, é sempre recomendado consultar um pediatra, embora infelizmente muitos ainda não estejam preparados para reconhecer os sintomas do transtorno. Na verdade, entre a manifestação dos primeiros sinais e o diagnóstico, às vezes, transcorrem mais de dez anos.
TRANSTORNO BIPOLAR NA ADOLESCÊNCIA
Drauzio – Você disse que as crianças têm múltiplos episódios de depressão e excitação num único dia e que, nos adultos, a doença manifesta-se em ciclos bem mais longos. E na adolescência, o que acontece?
Valentim Gentil Fº — Na adolescência, o quadro clínico costuma surgir a partir dos 15 anos e tem características muito diferentes das que se observam na infância. O pico de incidência, porém, ocorre entre 18 e 25 anos.
É nesse período que, em geral, os jovens estão sob maior estresse, mais inseguros e indefinidos, violentamente bombardeados pelos hormônios. É também nesse período da vida que se expõem mais a comportamentos de risco, a sexualidade explode e as drogas o seduzem. É nesse período, portanto, que fatores ambientais, constitucionais e genéticos interagem favorecendo a eclosão do transtorno bipolar.
Nessa fase, o diagnóstico é mais fácil, porque se trata de um quadro descrito há 2.500 anos. É na infância que a dificuldade se acentua. A tendência é reprimir a criança, tentar educá-la à força ou atribuir a responsabilidade por seu comportamento inadequado aos pais, aos irmãos, à escola ou aos amigos. O caso se complica ainda mais porque não se tem certeza de que tais quadros de transtorno sejam biologicamente equivalentes, isto é, se o aparecimento na infância é simplesmente a manifestação precoce de uma patologia que iria acontecer mais tarde no adolescente ou no adulto, ou se é algo mais intrincado do ponto de vista neurofisiológico.
É importante observar que o transtorno de humor bipolar pode aparecer pela primeira vez em qualquer idade: na criança, no adolescente, no adulto ou no idoso. Nada impede que um indivíduo de 60 anos, muito criativo, energético, envolvido em grandes projetos e intensa atividade, de repente desencadeie o processo por um motivo qualquer. Isso aconteceu com personalidades famosas de nossa história que tiveram o quadro deflagrado, quando eram mais velhas, e só então descobriram que sua energia e dinamismo tinham pontos em comum com a predisposição para a doença. Em vista disso, independentemente da idade, quanto mais rápido ela for diagnosticada, menos irá interferir na estruturação da personalidade das crianças, no caráter do adolescente, nas relações profissionais e familiares do adulto e na imagem do indivíduo com mais idade.
COMPORTAMENTO FAMILIAR
Drauzio – O que deve fazer a família diante de um caso como esses?
Valentim Gentil Fº – Antes de tudo é preciso combater o medo, porque é ele que aparece primeiro. Depois, é tentar não agir agressivamente contra a pessoa na fase de euforia. No começo, ela é até engraçada, de pensamento ágil, criativa. Se os familiares não estiverem inseguros e temerosos, poderão convencê-la a procurar atendimento para um diagnóstico diferencial, a fim de eliminar possíveis causas imediatas da doença. Se a intervenção ocorrer em 48 ou 72 horas, praticamente não haverá prejuízo. O primeiro remédio que se receita hoje é uma visita a sites da internet especializados em informar as pessoas sobre a regulação do humor, porque isso é fundamental na manutenção do tratamento.
Drauzio – Existe, no Brasil, alguma associação de apoio a esses pacientes?
Valentim Gentil Fº – Existe a ABRATA, Associação Brasileira de Transtornos Afetivos, que tem site na internet <ww.abrata.com.br>. Essa associação congrega familiares, amigos e portadores de transtorno do humor, tanto o da depressão quanto o bipolar, e é importante na medida em que procura trocar informações e fornecer elementos inclusive para os profissionais de saúde mental sobre a natureza e tratamento adequado da doença.
Nos Estados Unidos, o órgão equivalente à ABRATA conta com 500 sedes espalhadas pelo país e que prestam serviço semelhante ao da associação brasileira.
SEU FILHO É BIPOLAR?
Não existem testes padronizados para transtorno bipolar, mas esta lista, adaptada do livro “The Bipolar Child”, pode ajudá-lo a reconhecer alguns sinais de alerta. Assinale os comportamentos que seu filho atualmente apresenta ou apresentou no passado. Se você assinalar mais de 20 itens, ele deveria ser examinado por um profissional da área.
Seu filho:
- Fica aflito demais quando separado da família;
- Demonstra ansiedade ou preocupação excessiva;
- Tem dificuldade para levantar-se pela manhã;
- Fica hiperativo e excitável à tarde;
- Tem sono agitado ou dificuldade para conciliar o sono;
- Tem terror noturno ou acorda muitas vezes no meio da noite;
- Não consegue concentrar-se na escola;
- Tem caligrafia pobre;
- Tem dificuldade em organizar tarefas;
- Tem dificuldade em fazer transições;
- Reclama de sentir-se aborrecido;
- Tem muitas ideias ao mesmo tempo;
- É muito intuitivo ou muito criativo;
- Distrai-se facilmente com estímulos externos;
- Tem períodos em que fala excessiva e muito rapidamente;
- É voluntarioso e recusa-se a ser subordinado;
- Manifesta períodos de extrema hiperatividade;
- Tem mudanças de humor bruscas e rápidas;
- Tem estados de humor irritável;
- Tem estados de humor vertiginosamente alegres ou tolos;
- Tem ideias exageradas sobre si mesmo ou suas habilidades;
- Exibe um comportamento sexual inapropriado;
- Sente-se facilmente criticado ou rejeitado;
- Tem pouca iniciativa;
- Tem períodos de pouca energia, ou alheamento, ou se isola;
- Tem períodos de dúvida sobre si mesmo ou de baixa estima;
- Não tolera demoras ou atrasos;
- Persegue obstinadamente suas próprias necessidades;
- Discute com adultos ou é mandão;
- Desafia ou se recusa a cumprir regras;
- Culpa os outros por seus erros;
- Enerva-se facilmente quando as pessoas impõem limites;
- Mente para evitar as consequências de seus atos;
- Tem acessos de raiva ou fúria explosivos e prolongados;
- Tem destruído bens intencionalmente;
- Insulta cruelmente com raiva;
- Calmamente faz ameaças contra outros ou contra si mesmo;
- Já fez claras ameaças de suicídio;
- É fascinado por sangue ou coágulos;
- Já viu ou ouviu alucinações.
POSSIBILIDADES DE TRATAMENTO NA INFÂNCIA
Tratar crianças com transtorno bipolar não é fácil, mas, atualmente, pelo menos é possível. O primeiro passo, em geral, é prescrever medicamentos. Depois vem a psicoterapia individual, a terapia familiar e as mudanças no estilo de vida.
RECURSOS TERAPÊUTICOS
- Lítio: O tradicional esteio, atenua os sintomas através da regulação dos neurotransmissores, mas não funciona para todas as pessoas;
- Medicamentos anticonvulsivantes: Inicialmente usados no tratamento da epilepsia, esses medicamentos ajudam a controlar as crises de mania;
- Antipsicóticos atípicos: Medicamentos utilizados para ajudar os esquizofrênicos a vencerem os delírios podem fazer o mesmo pelos bipolares;
- Antidepressivos: Apresentam o risco de aumentar os ciclos do transtorno bipolar, mas seu uso pode ser necessário como parte da associação de medicamentos;
- Estilo de vida: Rotinas como, por exemplo, a fixação dos horários de dormir e acordar, são fundamentais; o uso de cafeína deve ser restringido e os adolescentes devem evitar o uso de drogas e álcool;
- Psicoterapia individual: Crianças precisam de aconselhamento para ajudá-las a equilibrar o sono, a alimentação, o trabalho e a diversão; precisam também falar sobre problemas em casa e resolver conflitos que possam desencadear as crises;
- Terapia familiar: Os pais devem aprender quando ceder – isto é crucial no início do tratamento – e quando devem ser firmes. Contendas ou disputas familiares devem ser reduzidas ao mínimo. Os irmãos podem servir como olhos e ouvidos confiáveis para uma criança cujas percepções estão confusas.