Transplante de órgãos infectados por HIV: como aconteceu e onde foi o erro? - Portal Drauzio Varella
Página Inicial
Saúde pública

Transplante de órgãos infectados por HIV: como aconteceu e onde foi o erro?

Publicado em 17/10/2024
Revisado em 17/10/2024

O caso foi descoberto no dia 10 de setembro após um dos pacientes transplantados procurar o hospital por causa de sintomas neurológicos.

 

Um incidente no Rio de Janeiro chamou atenção das autoridades de saúde e de toda a população brasileira. Seis pacientes foram infectados com HIV após receberem órgãos transplantados de doadores contaminados. Nenhum deles tinha o vírus antes. Diversas instituições, como Ministério da Saúde, Polícia Federal (PF) e Ministério Público do Rio de Janeiro, instauraram procedimentos para investigar o caso.

O episódio levantou dúvidas sobre o Sistema Nacional de Transplantes, um dos melhores do mundo. Segundo as investigações e especialistas consultados pela reportagem, no entanto, o ocorrido foi algo isolado, fruto da irresponsabilidade de um laboratório contratado para prestar serviço. Saiba o que aconteceu exatamente, como tudo foi descoberto, quem são envolvidos e quais são as últimas atualizações sobre o caso. 

 

O que aconteceu?

Seis pacientes do Rio de Janeiro foram infectados com HIV após receberem órgãos transplantados de duas pessoas contaminadas com o vírus. Três pacientes receberam rins e coração de um dos doadores infectados, enquanto outras três pessoas receberam rins e fígado do segundo doador.

De acordo com as investigações, o erro partiu do laboratório PCS Lab Saleme, responsável por fazer o exame nos doadores. Sediado em Nova Iguaçu, o laboratório foi contratado pelo governo do Rio de Janeiro em dezembro de 2023 para atender no programa de transplantes por tempo determinado.

O laboratório declarou em seus laudos que os doadores estavam livres do HIV, o que se revelou falso. Novos exames realizados pelo Hemorio, hemocentro coordenador do Estado do Rio de Janeiro, confirmaram a presença do vírus nas amostras. As investigações agora apontam para a possível atuação de um grupo criminoso especializado na falsificação de laudos. Os exames em questão foram emitidos por Walter Vieira, ginecologista e um dos sócios do laboratório, e outros técnicos. Eles foram presos.

A Anvisa também esteve no laboratório e constatou que a unidade não tinha kits para fazer os exames de sangue. Além disso, segundo o órgão, o PCS não apresentou notas fiscais da compra dos itens, o que também levantou a suspeita de que os resultados teriam sido adulterados. 

Em nota, a defesa do PCS Lab Saleme disse que abriu uma sindicância interna e que há indícios de falha humana nos procedimentos. Os advogados também disseram que não existe nenhum esquema criminoso para forjar resultados. Por fim, afirmaram ainda que vão dar suporte médico e psicológico aos pacientes infectados pelo HIV e para seus familiares.

 

Como o caso foi descoberto?

O caso foi descoberto no dia 10 de setembro após um dos pacientes transplantados procurar o hospital por causa de sintomas neurológicos. Após exames, foi constatado que ele tinha HIV. No entanto, o paciente não tinha o vírus anteriormente. Em outubro, outro paciente transplantado apresentou as mesmas reações. 

Apesar de a história ter vindo à tona no mês passado, o episódio foi revelado ao público só no dia 11 de outubro após uma matéria do Grupo Bandeirantes de Comunicação. O incidente também ganhou repercussão na mídia internacional.

        Veja também: Como é organizado o Sistema Nacional de Transplantes?

 

Como estão as investigações?

A Secretaria estadual de Saúde do Rio iniciou uma investigação que levou a interdição do laboratório e a suspensão dos contratos firmados. Na segunda-feira (14), tanto o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) como a Polícia Federal abriram inquéritos para investigar o caso.

Os acusados serão investigados por crime contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária. 

O Hemorio também está realizando novos testes em 286 outros doadores, cujas amostras de sangue foram analisadas no laboratório entre o final de 2023 e setembro deste ano.

 

O que disseram as autoridades? 

A ministra da saúde, Nísia Trindade, disse nas redes sociais que o governo tomou “todas as medidas necessárias para proteger a saúde e o bem-estar dos pacientes e de seus familiares” e que sua “solidariedade vai, em primeiro lugar, às famílias e pacientes afetados por essa situação”

Falou ainda que a prioridade no momento é que o “Sistema Nacional de Transplantes opere com total segurança e integridade, zelando pela vida daqueles que confiam em nossa rede de saúde”. Em entrevistas a jornalistas, a ministra ainda classificou o caso como um “episódio inadmissível” e disse que o problema “não está no regramento existente”, mas no fato de ele não ter sido cumprido conforme.

 

Caso isolado

O caso no Rio de Janeiro, segundo especialistas, foi isolado e não deve ser interpretado como um erro do sistema de transplantes. O Brasil é o quarto país que mais realiza transplantes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Só em 2023, segundo dados do Ministério da Saúde, foram realizados 28,5 mil procedimentos. 

“Isso nunca havia acontecido antes, pois todas as etapas dos serviços de transplante são realizadas com extremo rigor. Infelizmente, o laboratório secundário (PCS) não seguiu práticas éticas em seus processos. No entanto, posso afirmar que o procedimento é seguro”, afirmou a dra. Patricia Almeida, hepatologista do Hospital Israelita Albert Einstein, com mais de 10 anos de experiência em transplantes.

Patricia falou que esses eventos são negativos porque podem afastar os doadores. “Nós temos uma taxa de recusa das famílias para doarem de 47%, que é muito ruim. Na Europa, para efeito de comparação, a taxa de recusa não chega a 15%. Quando ocorre uma situação como essa, nós, profissionais de transplante, ficamos com o coração apertado, pois conhecemos o número de pessoas que estão esperando e morrendo na fila”, diz. Até abril de 2024, havia 71 mil pessoas na fila dos transplantes, segundo dados do Ministério da Saúde. 

        Veja também: Como funciona o transplante de órgãos pelo SUS?

 

Qual a política de transplantes do país?

O Sistema Nacional de Transplantes, órgão do Ministério da Saúde, é o responsável por gerenciar transplante e a doação de órgãos no Brasil. A regulamentação técnica dos procedimentos está na portaria nº 2.600, de 21 de outubro de 2009. Existe uma cadeia de eventos que precisa ser seguida entre a obtenção de órgão viável e o transplante, segundo os especialistas consultados para esta reportagem.

Quando uma pessoa perde a vida, por exemplo, existe um protocolo médico para constatar a morte encefálica, que precisa ser assegurada por dois médicos no momento do óbito e 12 e 24 horas depois, segundo a dra. Patrícia. Na sequência, profissionais abordam familiares da pessoa e perguntam se o paciente é doador de órgãos. Também pode ser realizada uma pesquisa com a família desse doador para verificar se ele tinha algum comportamento de risco ou não.

A dra. Caroline Daitx, especialista em medicina legal e perícia médica, pós-graduada em gestão da qualidade e segurança do paciente, explica ainda que, caso a doação seja autorizada, vários exames também são realizados. Alguns deles são tipagem sanguínea para garantir que existe a compatibilidade entre o doador e o receptor, testes de compatibilidade HLA, exames específicos para verificar a condição e funcionamento dos órgãos a serem doados, além de testes para diversas doenças, como hepatites, sífilis, toxoplasmose e HIV.

“Lembrando que o HIV é uma contraindicação absoluta para transplante. Então, no caso de existir uma pessoa com HIV, até pode ser realizado o transplante para uma outra pessoa que também tenha HIV, mas de outra forma não”, fala.

Segundo a dra. Carolina, após uma triagem rigorosa, os órgãos são destinados aos pacientes mais compatíveis e que apresentam maior necessidade. São levados em consideração fatores como a gravidade do estado de saúde do receptor, o tempo de espera na fila e a proximidade geográfica entre o doador e o receptor com morte encefálica. “A prioridade é para os casos mais graves, e todo o processo precisa ser ágil para garantir a viabilidade do órgão e o sucesso do transplante”, explica.

 

O que vai mudar nas diretrizes? 

Após o caso, o Ministério da Saúde instaurou uma auditoria para avaliar a situação. Em setembro deste ano, no Fórum Nacional para Revisão do Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes, o órgão já havia começado a discutir a revisão da portaria que regulamenta os procedimentos. Até o momento, no entanto, ainda não há nenhuma definição sobre qualquer mudança. 

Por enquanto, a ministra da Saúde disse apenas que está trabalhando com toda a equipe do governo para tomar todas as “providências necessárias frente à grave situação adversa no estado do Rio de Janeiro envolvendo transplantes de órgãos”. O Ministério da Saúde também reforçou normas e orientações técnicas para aprimorar os procedimentos de identificação de doenças transmissíveis antes da doação.

 

Direitos do paciente transplantado

Washington Fonseca, especialista em Direito Médico, mestre em Direito pela PUC-SP e vice-presidente para as Américas da rede BGI Globale, disse que os pacientes transplantados contaminados com HIV podem entrar com ação pedindo indenização por dano moral contra o laboratório. “Esse processo tem o objetivo de atenuar a dor do paciente ou da família mediante o recebimento de valores pecuniários, mas não elimina [a dor]”, diz, mencionando que o processo duraria uns quatro anos.

O estado, segundo o especialista, também tem responsabilidade objetiva e deve indenizar as famílias e os pacientes. “Certamente [o valor] entraria em precatório. Uma vez transitada em julgada a sentença, teria que ser incluída de acordo com a lei de dívidas orçamentárias no plano de pagamento de precatórios, e a gente não tem como precisar o tempo que isso levaria, porque varia de estado para estado”.

Fonseca fala, ainda, que o paciente transplantado infectado com o vírus tem alguns direitos no Brasil, como o recebimento de medicamentos do SUS gratuitamente, sem qualquer tipo de custo. Em alguns casos, de acordo com o especialista, pacientes com HIV também podem ter isenção de imposto de renda (IR) e redução de IPI na compra de carros. 

        Veja também: 6 perguntas e respostas sobre doação de órgãos

Compartilhe