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Psiquiatria

Como a internet pode impactar a saúde mental dos adolescentes?

Publicado em 18/09/2024
Revisado em 18/09/2024

Redes sociais podem trazer benefícios e riscos. Saiba que sinais indicam que o uso pode estar afetando a saúde mental dos adolescentes. 

 

As mídias sociais vieram para ficar e as gerações mais novas já estão nascendo – ou pelo menos crescendo – nesse “mundo digital”, acostumadas com o uso de aparelhos eletrônicos como smartphones, tablets e computadores. 

 

A presença de crianças e adolescentes nas redes é cada vez maior

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mais de 80% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos têm perfil nas redes sociais. 

Se o uso exagerado das mídias pode trazer impactos para a saúde da população de forma geral, a discussão é ainda mais importante quando se trata desse público, que ainda está em desenvolvimento. 

A relação entre hiperconectividade e saúde mental foi um dos assuntos discutidos no Congresso Brain, Behavior and Emotions 2024, realizado entre os dias 26 e 29 de junho no Rio de Janeiro (RJ). O evento reuniu especialistas e entusiastas para explorar as mais recentes descobertas e inovações na área de neurociências. 

Segundo Christian Kieling, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apesar da associação entre o uso das mídias sociais e a piora da saúde mental dos jovens, ainda não é possível afirmar que existe uma situação de causalidade.

“A gente vê nos últimos anos um aumento de problemas de saúde mental, pelo menos chegando mais nos consultórios e também alguns dados epidemiológicos mostrando que tem um aumento de sintomas mesmo quando eu faço o levantamento populacional, ou seja, que não é enviesado por a pessoa ter ido buscar atendimento, eu também vejo aumento de sintomas de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes. A curva de aumento de casos é parecida com a curva de aumento da adoção da tecnologia, do smartphone e logo depois de mídias sociais. E a gente tem uma associação, uma correlação, o que é muito diferente de causalidade. Tem muitas coisas que são associadas, mas não são causais”, disse o especialista.

        Veja também: Crianças, adolescentes e o excesso de telas | Coluna

 

Relação entre redes sociais e saúde mental

Essa relação é complexa. O principal problema, segundo o dr. Kieling, é que faltam estudos mais completos sobre o tema. 

“A gente tem uma espécie de caixa preta que a gente não sabe muito sobre o que está acontecendo no uso das redes sociais. A imensa maioria dos estudos que buscou esse tipo de associação são estudos que vão olhar para o tempo de tela, e mais do que isso, tempo de tela relatado. Não é tempo medido objetivamente”, explica.

Isso significa que, ao ser questionada sobre o seu tempo de tela, a pessoa pode ter uma percepção diferente da realidade e dar uma resposta que não é exata.

“Existem alguns estudos menores, mostrando associações temporais, inclusive estudos mostrando que um uso excessivo de telas pode aumentar de duas a três vezes a probabilidade de ter sintomas elevados de depressão e ansiedade ali na frente. Mas a gente ainda tem muito pouco dado. E a principal barreira que nós temos aqui é que as empresas de tecnologia, de mídias sociais, não compartilham os dados”, completa.

Na visão dele, seria interessante a criação de uma legislação que obrigasse as empresas de mídia a compartilhar os dados com pesquisadores para que houvesse uma análise mais objetiva sobre esse impacto das redes. “Porque muito provavelmente o quadro é mais complexo do que simplesmente ‘a mídia social faz mal’. A gente tem dados, inclusive, mostrando que o uso de mídia social pode melhorar a saúde mental de alguns grupos – por exemplo, adolescentes LGBTQIA+ de regiões mais isoladas que percebem nas mídias sociais uma maneira de se conectar com adolescentes que estejam vivendo situações semelhantes”, conta.

De qualquer forma, é preciso ter um olhar atento e um cuidado maior em relação a esse público, justamente porque nessa fase da vida eles estão em pleno desenvolvimento cognitivo e emocional, o que os torna mais vulneráveis. Para o psiquiatra, o principal ponto é: “Hoje nós não temos evidência para dizer que o uso de mídias sociais é algo seguro para os jovens”.

Nesse sentido, toda a sociedade – incluindo governo, famílias e escolas – deve estar envolvida em medidas que visem a proteção de crianças e adolescentes.

“Não posso afirmar porque não tenho esses dados, mas se o algoritmo não está sendo justo em relação à maneira como ele está recrutando esse jovem para usar essa rede, se o algoritmo está se valendo de vulnerabilidades que indivíduos ainda estão tendo no seu desenvolvimento cognitivo para fazer com que eles fiquem mais tempo usando determinados recursos, na minha opinião a gente tem uma situação em que a gente não está protegendo um grupo da população que merece ser protegido. Eu acho que todos concordam que algum tipo de proteção em relação a conteúdos que devem ser expostos para crianças e adolescentes deve ocorrer”, destaca o médico. 

 

Papel dos pais e sinais de alerta

Os pais e responsáveis precisam ter algum nível de controle no sentido de saber o que está acontecendo no uso das redes sociais por parte dos filhos. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que o tempo de tela das crianças e adolescentes seja sempre supervisionado por um adulto.

“É extremamente difícil, a tecnologia avança muito rápido. Cabe a gente ajudar as famílias a fazer esse trabalho com as crianças e adolescentes, e através das escolas a gente poder ter mais investimentos em educação para o uso dessas mídias nas escolas. Eu acredito que hoje aprender a usar um smartphone é tão importante quanto aprender português e matemática”, afirma o dr. Kieling. 

A tecnologia em si não é negativa, mas pode ser usada dessa forma e assim gerar consequências negativas. Por isso, o especialista aponta que é importante voltar aos princípios básicos: conversar com as crianças e adolescentes e entender a perspectiva deles, prestando atenção ao que estão fazendo e sentindo – sem controlar excessivamente, mas tendo ideia de como está sendo esse uso. 

“Eu acho que esse é o grande desafio de ser pai, de ser mãe, poder dar liberdade – porque a gente precisa ter a liberdade até para o desenvolvimento dessa criança – mas ao mesmo tempo a gente ter uma proteção e entender que crianças e adolescentes são seres em desenvolvimento e que precisam de algum tipo de proteção, que vai diminuindo ao longo do tempo, é uma coisa gradual. Alguns jovens talvez precisem de mais cuidado, inclusive entrando 20 anos adentro, assim como outros mais precocemente vão ter condições de ter uma autonomia maior.”

Não existe uma resposta única, mas alguns sinais de alerta podem indicar que as redes sociais podem estar fazendo mal ao adolescente, como: 

  • Relato do próprio adolescente: parece simples, mas o primeiro ponto é de fato conversar com o adolescente e ouvir dele como ele está se sentindo;
  • Isolamento social: na adolescência, a depressão normalmente está relacionada a questões sociais, então, às vezes o adolescente não só se sente sozinho, como ele toma ações para se afastar dos amigos quando está mais deprimido;
  • Queda no rendimento escolar;
  • Diminuição do interesse por atividades que gostava (passa a achar que aquela atividade “perdeu a graça”);
  • Dificuldade em interromper o uso do dispositivo: se o celular não é deixado de lado na hora do refeição, no momento de ir ao banheiro e às vezes até para tomar banho (algumas pessoas deixam vídeos rodando durante o banho), é um sinal de alerta. 

“Esses são, digamos, alguns critérios de triagem para entender que a saúde mental daquela criança ou daquele adolescente pode não estar bem. Isso não vai fazer o diagnóstico de depressão nem de ansiedade, mas são coisas que podem fazer a gente refletir”, esclarece o psiquiatra. 

        Veja também: Saúde mental nas escolas: como os professores podem ajudar seus alunos?

 

Proibição é o caminho?

O livro “A geração ansiosa”, do psicólogo estadunidense Jonathan Haidt, lançado recentemente no Brasil, propõe quatro medidas em relação ao uso da tecnologia por crianças e adolescentes:

  • Nada de celular até os 14 anos;
  • Nada de redes sociais até os 16 anos;
  • Escolas sem celulares;
  • Mais vida offline (substituindo o uso de celulares por uma infância com mais independência e brincadeiras). 

Na visão do dr. Kieling, no entanto, proibir o uso de redes sociais ou celulares não é a melhor solução. “Para mim, [a recomendação] a mais importante de todas é a última, promover mais conexões, porque eu não acho que ‘ah, vamos proibir’, mas vamos fazer o que? Eles vão dar um jeito de se conectar de outra maneira. Eu particularmente não acredito nisso, porque se virar algo proibido, os adolescentes vão querer fazer mais. Eu lido muito com adolescentes e a gente sabe que proibindo às vezes é mais desejado ainda.” 

 

Consumo passivo de conteúdo

Outro ponto levantado pelo escritor Jonathan Haidt é a diferenciação entre mídia social e rede social: antes, as redes eram usadas para as pessoas se conectarem, por exemplo, acompanhando a vida de amigos e conhecidos através das postagens. Ou seja, eram redes sociais mais voltadas para conexão e troca. Atualmente, temos as mídias sociais, que geram um consumo mais passivo do conteúdo. 

“Hoje tem uma mídia social em que o fluxo de informação é quase unidirecional. Tem um algoritmo que é pautado por questões comerciais – apresentar coisas pra gente comprar – e que as pessoas não postam mais. Eu vejo com meus adolescentes, eu pergunto pra eles sobre uso de TikTok, quase ninguém posta, mas consome. Então, é muito parecido com a mídia tradicional se a gente for pensar: um emissor e um receptor. Não tem mais a conexão. A única coisa hoje é que esse direcionamento é personalizado”, afirma o médico.

O problema disso é que as mídias funcionando dessa forma não promovem a interação social, que é muito importante para o desenvolvimento. Essa interação promovida no online não é uma substituta da interação física, no mundo real, mas sim um complemento.

“E principalmente em situações como a gente teve agora da pandemia, ela pode ser um ótimo complemento para conexão entre as pessoas. E ter essa conexão gera inclusive a possibilidade de se frustrar – de postar uma foto e menos pessoas do que eu esperava curtirem a minha foto ou coisas dessas natureza –, mas a criança poder passar por essas frustrações também, mas uma frustração que é em um nível individual, um nível bom, pois eu tenho crianças ou adolescentes ali de igual para igual interagindo. E não ter uma empresa multimilionária com um algoritmo treinado para manter a pessoa fazendo scrolling infinito e uma criança, um adolescente de 13 anos do outro lado tendo que interagir com esse algoritmo gigantesco”, completa.

        Veja também: Como a geração Z lida (ou não) com a frustração?

 

Recomendações da SBP

O tempo de tela ideal para crianças e adolescentes varia de acordo com a idade. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, a orientação é a seguinte:

  • Até 2 anos: evitar completamente à exposição às telas;
  • Entre 2 e 5 anos: até 1 hora por dia;
  • Entre 6 e 10 anos: até 2 horas por dia;
  • Acima de 10 anos: 3 horas por dia.

O Manual de Orientação #MenosTelas #MaisSaúde, elaborado pela SBP, lista algumas orientações em relação ao uso da tecnologia por crianças e adolescentes, como:

  • Seguir as recomendações de horas de tela por faixa etária e manter sempre a supervisão sobre esse uso;
  • Para crianças e adolescentes entre 11 e 18 anos, limitar o tempo de tela e videogames até três horas por dia e evitar que “virem a noite” jogando; 
  • Evitar o uso de telas durante as refeições e desconectar-se uma a duas horas antes de dormir – a recomendação vale para todas as idades; 
  • Oferecer alternativas ao uso de telas, como atividades esportivas, exercícios ao ar livre ou em contato direto com a natureza, sempre com supervisão responsável;
  • Criar regras saudáveis para o uso de aparelhos e aplicativos digitais, além das regras de segurança, senhas e filtros apropriados para toda família, incluindo momentos de desconexão e mais convivência familiar;
  • Não permitir que as crianças e adolescentes fiquem isolados nos quartos com aparelhos eletrônicos ou com uso de webcam, estimulando o uso nos locais comuns da casa;
  • Encontros com desconhecidos online ou off-line devem ser evitados: saber com quem e onde a criança ou adolescente está, o que está jogando ou sobre conteúdos de risco transmitidos (mensagens, vídeos ou webcam) é responsabilidade legal dos pais/cuidadores.

“O fato é que a vida digital das crianças e adolescentes é uma parcela muito importante da vida deles, assim como é da nossa. Mas talvez deles mais ainda. E mais do que isso, eles estão tendo essa experiência em formação. Hoje a gente sabe que as repercussões podem ser muito maiores. Então, eu acho que esse cuidado todo com essas gerações deve ser em relação a isso, mas sem demonizar as redes sociais”, finaliza o dr. Kieling. 

 

*Com colaboração de Beatriz Zolin, que viajou para o evento. 

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