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Saúde pública

São Paulo reduz novas infecções por HIV em 55% em 7 anos: como isso foi possível?

Publicado em 02/10/2024
Revisado em 01/10/2024

A queda, segundo especialistas, é fruto de uma série de políticas públicas de saúde adotadas pela cidade.

 

A cidade de São Paulo conseguiu reduzir em 55% o número de novas infecções por HIV em sete anos, segundo dados da última versão preliminar do Boletim Epidemiológico de HIV/AIDS e Sífilis, publicado em meados de 2024. Foram 1.705 notificações em 2023, ante 3.761 em 2016, com redução de casos principalmente entre jovens de 15 a 29 anos, faixa etária que normalmente é mais afetada pelo vírus que pode causar a aids

O resultado, segundo especialistas, é fruto de uma série de estratégias públicas de saúde adotadas pelo município, como aumento na testagem do HIV, distribuição de testes e preservativos, promoção de campanhas educativas sobre o vírus e, principalmente, o acesso facilitado a medidas de prevenção, como a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) e a PEP (Profilaxia Pós-Exposição).

A PrEP consiste na ingestão de comprimidos antes da relação sexual, preparando o organismo para se proteger em caso de exposição ao HIV. Já a PEP é um tratamento preventivo que deve ser iniciado no máximo em até três dias (72 horas) após a exposição ao HIV, seja por causa de violência sexual, relação sexual desprotegida ou mesmo acidente ou contato direto com material biológico. A duração do tratamento é de 28 dias. 

 

Expansão do acesso à PrEP e PEP

De acordo com o infectologista José Valdez Ramalho Madruga, coordenador do Comitê de Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a amplificação da PrEP foi um dos principais motivos para a redução de casos. “A expansão da PrEP é uma meta tanto do Programa Estadual de Aids como do Programa Municipal de Aids de São Paulo. Então São Paulo (tanto a cidade como o estado) tem trabalhado muito com a prevenção. Hoje, 40% dos usuários de PrEP no Brasil estão localizados aqui.” 

Em 2023, segundo dados do município, cerca de 29 mil pessoas acessaram a Profilaxia Pré-Exposição, que é gratuita, “com uma razão de 17,5 usuários de PrEP para cada novo caso de HIV diagnosticado”. No período, também foram realizadas 364 atividades nas ruas relacionadas ao tratamento, com 1.618 atendimentos – desses, 1.525 pessoas iniciaram o uso dos medicamentos durante essas ações. 

De acordo com a prefeitura, as populações-chave mais vulneráveis ao vírus, como profissionais do sexo, travestis, homens que fazem sexo com outros homens (HSH), mulheres e homens trans e casais sorodiferentes têm prioridade para a Profilaxia Pré-Exposição.

        Veja também: PrEP e PEP: como funcionam os medicamentos que protegem da infecção por HIV?

 

Locais de distribuição e consulta online

A cidade de SP também criou em 2023 um sistema de consultas online para facilitar o acesso a PrEP e PEP em horários alternativos – o SPrEP (PrEP e PEP online), que funciona de domingo a domingo, das 18h às 22h – e ampliou os locais de distribuição, inclusive no transporte público. “Depois da consulta online, o profissional da saúde libera a receita de PrEP e o usuário pode retirar a PrEP numa máquina de distribuição, iguais às máquinas de refrigerantes que tem em estações de metrô”, explica o dr. Valdez.

Um desses locais é a Estação Prevenção – Jorge Beloqui, dentro da estação República do Metrô, inaugurada em junho de 2023, com horário de funcionamento de terça-feira a domingo, das 17h às 23h. No primeiro ano de funcionamento, segundo dados da prefeitura, ocorreram cerca de 9.200 atendimentos. 

Além do metrô, os tratamentos também podem ser retirados em diversos locais, como Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Pronto-Socorro Municipal (PSM), Pronto Atendimento (PA), Pronto-Socorro (PS), Assistência Médica ambulatorial (AMA), Unidade Básica de Saúde (UBS), Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) e Serviço de Atendimento Especializado (SAE). 

 

Saúde complementar e mais indetectáveis

Para o dr. Valdez, outro fato que também ajudou foi uma medida de 2021 do Governo Federal que implantou a PrEP na saúde complementar. A partir de então, médicos de clínica privada também passaram a prescrever o tratamento para o usuário retirar no SUS. Além disso, ele cita que farmacêuticos e enfermeiros também começaram a prescrever o tratamento. “Quando a gente conseguiu que o Governo Federal liberasse isso, o estado de São Paulo fez vários webinars [aulas online] para divulgar a PrEP”, disse. 

Álvaro Furtado, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI), também acredita que essa medida do Governo Federal foi um ponto positivo na luta contra o vírus. “Foi uma das estratégias que eu acho que foram decisivas no sentido de aumentar a possibilidade de alguém tomar PrEP, porque a pessoa pode ser atendida na saúde privada e pegar (o tratamento no SUS).”

        Veja também: Qual a melhor maneira de prevenir ISTs?

 

Apoio na testagem, diagnóstico e tratamento

Além de PrEP e PEP, a cidade apostou na testagem para o HIV e na distribuição de preservativos e gel lubrificante. Só em 2023, segundo dados da Via Mobilidade, as concessionárias de trens distribuíram mais de 7,5 milhões de preservativos em estações das Linhas 4-Amarela, 5-Lilás, 8-Diamante e 9-Esmeralda, em parceria com a Coordenadoria de IST/Aids da Cidade de São Paulo.

Ainda hoje, o uso da camisinha nas relações sexuais é a forma mais eficaz de prevenção da aids, pois ela cria uma barreira física que impede o contato do HIV, que pode estar no sêmen, fluidos vaginais ou anais e nas mucosas. Já o gel é capaz de reduzir o atrito durante o sexo, diminuindo o risco de cortes nas mucosas genitais e anais, que podem facilitar a entrada do vírus.

“Nessas campanhas de testagem na cidade de São Paulo, sempre tem distribuição de preservativo e de gel lubrificante, além de orientações sobre prevenção de maneira geral. A questão de ter que entrar no Serviço de Saúde hoje não é mais necessária. Se você passar na porta do Centro de Referência e Treinamento (CRT), tem um expositor com preservativo, você pode pegar quando quiser e não precisa pedir para ninguém, é só pegar”, diz o dr. Valdez.

Para o dr. Furtado, o tratamento já oferecido às pessoas com HIV é outro ponto que ajuda a reduzir os casos. “Para acabar com a epidemia de HIV, que é uma infecção que não tem vacina, é preciso também tratar todo mundo que tem o vírus e manter essas pessoas indetectáveis”. De acordo com dados da secretaria municipal de saúde, das 52 mil pessoas que vivem com HIV/aids em São Paulo, 96% delas estão indetectáveis. 

Ter HIV indetectável significa que uma pessoa soropositiva em tratamento com antirretroviral tem um nível de carga viral tão baixo que o vírus não é detectado em exames de sangue. Alguns estudos, principalmente o HPTN 052 1 e Partner 2, publicados em 2016, e o Opposites Attract 3, divulgado em 2017, mostraram que os indivíduos nessa condição não transmitem o vírus.

 

Educação sobre o HIV

Outro ponto que colaborou com a redução de casos, segundo o dr. Furtado,  é o fato de São Paulo apostar alto na comunicação sobre o tratamento preventivo para diferentes públicos. “Tem mais informação, tem mais tecnologia disponível, tem mais centro de atendimento e tem uma cultura de prevenção maior que outros estados”, comenta. 

O mesmo fenômeno de queda de novos casos de HIV foi observado em outras grandes metrópoles ao redor do mundo, como São Francisco, Sydney, Los Angeles e Amsterdã, que organizaram programas de implementação de PrEP muito sólidos, ampliaram a comunicação e conseguiram, assim, uma boa resposta contra a doença, elenca o médico.

“São Paulo realmente concentra a maior parte dos casos de HIV do nosso país, junto com outras grandes capitais como Rio de Janeiro e Salvador, mas São Paulo fez um programa de expansão da PrEP muito forte da medicação preventiva, em que a gente fala sobre o assunto e expande essa ferramenta para as populações, dentro dos locais de atendimento.”

Ele diz que em algumas outras cidades do Brasil, a forma como o HIV é tratado e a resposta dos agentes de saúde podem ser diferentes por causa questões culturais e religiosas, que podem barrar o acesso a tratamentos. “O acolhimento, às vezes, é muito ruim nos serviços fora de grandes centros porque você tem profissionais de opiniões pessoais sobre sexualidade e sobre normas de comportamento.”

        Veja também: Positivo para o HIV: o que fazer depois do diagnóstico

 

Transmissão vertical de HIV eliminada 

Em 2019, o município de São Paulo eliminou a transmissão vertical de HIV – ou seja, de mães soropositivas para filhos recém-nascidos. No ano passado, de acordo com o Boletim Epidemiológico, foram registrados 233 nascidos vivos de mães com o vírus, “cujos casos foram notificados e encerrados com o desfecho da gestação”. 

“A redução dos casos de HIV é multifatorial. Quando nós pensamos nos recém-nascidos,  nas gestantes e no controle da doença, a investigação da doença durante a gravidez é um dos grandes fatores que tem levado os bebês a nascerem sem a doença. Então esse é um ponto com certeza muito valorizado”, explica Marcelo Otsuka, médico infectologista e vice-presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).

Entre 2015 e 2023, a cidade de São Paulo registrou 3.837 pessoas gestantes, em trabalho de parto ou amamentando, com HIV.  Nesse período, o percentual de mães que já sabiam da infecção pelo vírus passou de 61% naquele ano para 69,7% no ano passado. De acordo com o boletim, houve também um aumento no percentual de gestantes usando antirretrovirais – de 90,6% em 2015 para 94,8% em 2023.

“Além disso, houve diminuição do percentual de diagnósticos no parto, de 2,4% (10) em 2015 para 1,7% (6) em 2023, o que pode ser reflexo de uma melhora na qualidade do pré-natal, maior oferta de testagens para um diagnóstico precoce e aumento na distribuição de métodos de prevenção combinada, permitindo que as pessoas se preparem para engravidar no melhor momento e diminua a chance de transmissão do HIV para o bebê’, diz o Boletim Epidemiológico.

 

População negra ainda é a mais afetada

A queda de novos casos ocorre tanto em homens quanto em mulheres, com redução de 57,3% nas ocorrências entre 2016 e 2023 entre o sexo masculino e de 41,6% na série histórica entre o sexo feminino. No entanto, os homens ainda são os mais afetados pelo vírus: a cada quatro novas infecções neles, há uma em mulheres.

A redução ocorreu em todas as categorias de raça/cor – pessoas brancas, pardas, pretas, amarelas e indígenas. No entanto, em 2023, a proporção de novos casos de HIV na população negra (58,4%) foi superior em relação à população branca (38,2%). Na comparação entre os sexos, a desigualdade é maior entre mulheres negras (62,6%) em relação às brancas (34,1%), do que entre homens negros (57,3%) e brancos (39,4%). 

Sobre os casos de aids, situação em que o sistema imunológico da pessoa infectada pelo HIV está severamente comprometido, a redução foi de 49% na taxa de incidência entre 2014 e 2023. As pessoas do sexo masculino continuam sendo as mais afetadas. Dos 1.114 casos notificados em 2023, 79,3% foram em homens e 20,7% entre mulheres. A taxa de detecção da aids também é maior entre pessoas pretas, tanto homens quanto mulheres. 

“Embora esses avanços sejam animadores, ainda enfrentamos disparidades de gênero e étnico-raciais. A redução de casos entre homens é mais acentuada do que entre mulheres, e as diferenças na taxa de detecção entre grupos étnicos persistem, com uma taxa significativamente mais alta entre pessoas negras. A redução das disparidades étnico-raciais continua a ser um desafio crucial”, diz o Boletim Epidemiológico. 

        Veja também: Como prevenir a infecção por HIV em crianças?

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