Especialistas explicam por que a população de pessoas em situação de rua no Brasil continua aumentando a cada ano.
O número de pessoas em situação de rua não para de crescer no Brasil. Levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG) mostra que, entre dezembro de 2023 e setembro de 2024, cerca de 176 pessoas por dia passaram a viver nessa condição, elevando o total para 309.998 indivíduos. Isso representa um aumento de 20% em relação ao final de 2023 e um salto de oito vezes ao longo da última década.
Essa realidade social pode ser melhor visualizada por meio da prevalência – ou seja, a proporção de pessoas em situação de rua em relação à população total do Brasil. Em 2014, havia 18 indivíduos para cada 100 mil habitantes, enquanto neste ano há 146. Para calcular a prevalência, basta dividir o número de pessoas em situação de rua de determinado ano pelo total de habitantes do mesmo ano e, na sequência, multiplicar o resultado por 100 mil.
O Governo Federal alega que esse cenário se deve à inserção dessas pessoas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda usado para a concessão de benefícios sociais, como o bolsa família. Até agosto deste ano, quase 300 mil famílias nessa condição, segundo o governo, foram incluídas na plataforma.
A pesquisa do OBPopRua realmente extrai dados do programa governamental. No entanto, segundo especialistas que acompanham o assunto, esse está longe de ser o único motivo para o aumento – e basta andar pelas ruas das cidades para perceber o cenário local. Eles alegam que o crescimento é fruto de uma combinação de fatores econômicos, sociais e históricos. Além disso, dizem, também há um aspecto racial envolvido, visto que 70% dos indivíduos em situação de rua são negros.
O estado de São Paulo registra a maior concentração de pessoas em situação de rua do país (43% do total), sendo que somente a capital paulista tem 86.344. Rio de Janeiro (10%) aparece na segunda posição, seguido por Minas Gerais (9%), Bahia (5%) e Distrito Federal (DF).
O que explica a alta?
No final de 2023, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou três dimensões para a realidade vista no Brasil hoje em dia: a exclusão econômica, fruto de insegurança alimentar, falta de emprego e déficit habitacional; a fragilização ou quebra de vínculos sociais, especialmente na família; e os problemas de saúde, principalmente o mental.
A falta de oportunidades de trabalho, de acordo com a pesquisa, leva os indivíduos com dificuldades financeiras a procurar abrigo nas casas de familiares ou amigos. No entanto, se algum conflito ocorre, essas pessoas perdem uma “importante rede de proteção social” e recorrem às ruas. No estudo, problemas com familiares e companheiros (47,3%) foram o principal motivo individual de uma pessoa sair de casa.
“Note-se, a esse respeito, que os efeitos da pandemia foram bastante negativos para os vínculos sociais em geral. Para a população mais pobre nas periferias, que muitas vezes mora em lugares pequenos, sem muito espaço de privacidade, o confinamento foi ainda mais perverso. Isso contribuiu para que os conflitos familiares se convertessem em brigas mais sérias e, por vezes, em situações de violência doméstica”, diz a pesquisa do Ipea, assinada pelo especialista em políticas públicas e gestão governamental da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea, Marco Natalino.
Para André Luiz Freitas Dias, coordenador do OBPopRua e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o desemprego, que priva as pessoas das condições econômicas necessárias para se alimentar ou atender a necessidades básicas, está diretamente relacionado à precarização do mercado de trabalho e à falta de acesso à educação. Ele falou que metade da população em situação de rua não concluiu o ensino fundamental, e 11% das pessoas são analfabetas.
Na capital paulista, por exemplo, das 3.961 crianças e adolescentes registradas no CadÚnico, 26% têm fundamental incompleto, 4% fundamental completo, 3% ensino médio incompleto e 36% não têm instrução. “Essa carência educacional reflete as desigualdades históricas e limita o acesso a melhores oportunidades de trabalho, perpetuando o ciclo de exclusão social”, diz Dias.
A questão habitacional
Para Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) que acompanha de perto a situação de São Paulo, um dos pontos centrais na discussão da população em situação de rua é a falta de moradia. “Hoje, vemos famílias inteiras, mulheres e crianças nas ruas. Isso está diretamente ligado à falta de moradia digna e acessível”, diz.
A especialista, que também é coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), explica que a alta nos preços dos imóveis e dos aluguéis, tanto no mercado formal quanto informal, vem expulsando famílias de baixa renda até das habitações mais precárias, como barracos em favelas. “Boa parte das pessoas está na rua porque não consegue pagar nem o aluguel mais barato”, afirma.
A professora cita que boa parte dos programas de habitação do Brasil, como o Minha Casa Minha Vida, focam apenas em parcelas da população com algum poder de pagamento. “A maioria dos programas habitacionais não contempla as pessoas que não têm como assumir dívidas, mesmo subsidiadas”, diz.
A especialista também chamou atenção para a mercantilização do espaço urbano. Segundo ela, o setor imobiliário virou um ativo financeiro, atraindo capital global e nacional, o que gerou um boom na construção de imóveis de alto padrão, enquanto a população vulnerável foi empurrada para as ruas.
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Abrigo não é solução definitiva para pessoas em situação de rua
A cidade de São Paulo tem 27% das pessoas em situação de rua de todo o Brasil (86.344). Uma das maneiras de a Prefeitura lidar com o cenário é por meio da oferta de abrigos. Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) diz que há cerca de 29 mil vagas em 397 serviços de acolhimento na cidade, onde há a oferta de quatro a cinco refeições diárias, incluindo café da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e, dependendo do serviço, ceia.
Ou seja, o número de pessoas que vivem nas ruas é quase três vezes maior do que a quantidade de vagas disponíveis. A Prefeitura, porém, utiliza como referência os dados do Censo da População em Situação de Rua de 2021, divulgado em 2022, que aponta 31.884 indivíduos nessa condição. O próximo levantamento está previsto para 2025.
Embora existam abrigos emergenciais em cidades como São Paulo, a professora Raquel ressalta que esses espaços não são uma solução definitiva. “Abrigo não é moradia. É um lugar coletivo, sem privacidade, onde a pessoa dorme uma noite e precisa sair de manhã. Além disso, muitas pessoas evitam os abrigos devido às condições precárias, como higiene ruim e proibição de entrada com animais de estimação.”
Levantamento da Prefeitura de São Paulo, feito a pedido da CNN em meio à onda de frio na capital paulista durante o inverno deste ano, mostrou que entre o final de maio e julho deste ano, quase 5% das 24.957 pessoas abordadas nas ruas se recusaram a ir aos abrigos. Os motivos citados foram distância, regras do local e falta de abrigo para animais de estimação ou acompanhante.
Em nota, a SMADS informa que, atualmente, nove serviços de acolhimento da pasta têm espaço de acolhimento para pets, sendo três na zona leste, dois na zona oeste, dois na região central, um na região norte e um na região sul da cidade. Além disso, diz que a rede socioassistencial da prefeitura tem 16 núcleos de convivência, que totalizam mais de 5 mil vagas para pessoas em situação de rua.
Uma questão histórica
De acordo com a pesquisa do OBPopRua e do Ipea, cerca de 70% da população de rua do Brasil é negra. Na prática, significa que a cada 10 pessoas, 7 são pessoas pretas. Em estados como a Bahia, esse percentual chega a 94%. Para André Luiz, essa realidade brasileira tem suas raízes na história de escravidão e no racismo estrutural que permeiam o país.
Segundo o professor, a abolição da escravidão, em 1888, deixou a população negra sem condições mínimas de sobrevivência, perpetuando um ciclo de exclusão que se reflete até hoje. “Após a abolição, grande parte da população negra foi despejada nas ruas das cidades, sem acesso à moradia, trabalho, educação ou qualquer tipo de política pública”, afirma, sinalizando que essa situação não pode ser vista como uma coincidência. “Em nenhum outro país há uma relação tão direta entre a escravidão e a condição de estar em situação de rua como no Brasil”, ressalta.
Impacto na saúde física e mental
Morar na rua impacta tanto a saúde física quanto mental das pessoas. Problemas com álcool e drogas, por exemplo, foram apontados como outro principal motivo para as pessoas saírem de casas de familiares e irem para as ruas. “Em um contexto de aumento do desemprego, da fome, de isolamento social, muitas vezes de conflitos familiares demasiado sérios, os transtornos mentais afloram, e a busca por uma fuga da dura realidade torna-se mais atraente”, diz o estudo do Ipea.
A professora Raquel fala que não é preciso ser especialista da área de saúde para imaginar o que viver na rua significa para a mente e para o corpo desses homens e mulheres. “A pessoa está completamente exposta, sem nenhum tipo de proteção ou privacidade, não apenas em relação ao sol e à chuva, mas também às necessidades básicas. Não há banheiros públicos ou local para tomar banho. É uma rotina de vulnerabilidade que desumaniza”.
Os cidadãos em situação de rua também estão expostos à constante violência. A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100, revelou que as violações mais denunciadas no início de 2024 envolveram maus tratos, abandono e agressão física. No caso da questão psíquica, segundo o órgão, as queixas envolvem tortura e constrangimento. São Paulo lidera o número de denúncias, seguido do Rio de Janeiro.
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Existe solução para as pessoas em situação de rua?
O assunto é complexo, mas pode haver caminhos por meio de políticas públicas mais efetivas, segundo os especialistas consultados pela reportagem. Raquel menciona a necessidade de mudanças profundas nas políticas habitacionais e econômicas. “Precisamos reformar urgentemente as políticas que tratam os imóveis como ativos financeiros. Isso está expulsando pessoas das cidades e agravando a crise habitacional. Não podemos continuar ignorando esse problema.”
A professora também defende a criação de políticas de locação social, que garantam moradias de aluguel subsidiadas. “É uma opção digna, onde o governo cobre parte ou todo o custo, dependendo da renda do morador. Isso permite que as pessoas tenham uma casa sem precisar adquirir uma propriedade.”
O professor André Luiz cita a importância de investimento consistente e direcionado em moradia, trabalho e educação como pilares para enfrentar a questão. Ele alerta para a necessidade de interromper políticas que perpetuam a marginalização dessa população, ressaltando que muitos recursos são direcionados para encarceramento e para instituições como comunidades terapêuticas, em vez de irem para ações preventivas e inclusivas.
“Em 2024, as comunidades terapêuticas receberam aproximadamente R$ 400 milhões, enquanto o orçamento para moradia destinado à população em situação de rua foi de apenas R$ 3,1 milhões para o país inteiro. Isso ilustra como o sistema beneficia mais a perpetuação do problema do que sua solução”, diz.