Lei que autoriza o uso da ozonioterapia como tratamento complementar em todo o território nacional é sancionada. Entidades médicas se opõem. Leia coluna de Mariana Varella.
Deputados, senadores e o presidente da República aprovaram o uso de um tratamento não recomendado pelas principais entidades médicas do Brasil e do mundo.
No dia 4 de agosto, o presidente Lula sancionou a lei 14.468/2023, de autoria do ex-senador Valdir Raupp (RO), que autoriza o uso da ozonioterapia como tratamento complementar em todo o território nacional. O Projeto de Lei já havia sido aprovado pela Câmara e pelo Senado, e muitos especialistas em saúde esperavam que o presidente o vetasse.
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A expectativa não era infundada: durante a pandemia de covid-19, Lula defendeu, inúmeras vezes, a ciência dos desmandos do ex-presidente Bolsonaro. Ao assumir o cargo, no início deste ano, nomeou como ministra da Saúde a prestigiada pesquisadora Nísia Trindade, e desde então a tem defendido do assédio do centrão, que já demonstrou interesse no cargo.
Portanto, era esperado que Lula escutasse o Ministério da Saúde, sua ministra e as sociedades médicas antes de assinar a lei que autoriza o uso da ozonioterapia por qualquer profissional de saúde com curso superior inscrito em seu conselho de fiscalização profissional.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) não autoriza os médicos a usarem a ozonioterapia, a não ser que o façam em caráter experimental, dentro de estudos científicos controlados.
Mais de 20 entidades médicas também lançaram nota reprovando a sanção da lei, entre elas a Academia Nacional de Medicina (ANM), Associação Médica Brasileira (ABN), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC), Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), entre outras.
Há anos a Câmara enfrenta o lobby dos defensores da terapia com ozônio medicinal, mistura de ozônio e oxigênio cuja segurança e eficácia não são comprovadas pela ciência. Basta uma rápida pesquisa na internet para vislumbrar o tamanho do mercado que oferece o pseudo-tratamento nas suas mais variadas formas: por aplicação cutânea, subcutânea, bucal, retal e por meio da auto-hemoterapia, prática que retira o sangue do paciente, mistura-o ao ozônio medicinal e injeta-o novamente no indivíduo.
Profissionais de saúde anunciam nas redes sociais, sem nenhum pudor, a terapia para tratar HIV, câncer, asma, esclerose múltipla, celulite, doenças reumatológicas e imunidade baixa.
O FDA, órgão que aprova os medicamentos e tratamentos nos Estados Unidos, afirma que o ozônio é tóxico para o uso medicinal, e embora reconheça seu efeito germicida, ressalta que ele só é alcançado em doses muito acima das seguras para o uso em seres humanos e animais. Entre os possíveis efeitos adversos do gás citados pelo FDA estão irritação de mucosas e edema pulmonar.
Desde 2018, o SUS oferece, dentro das práticas integrativas e complementares, o tratamento com ozonioterapia, mas apenas para alguns procedimentos odontológicos.
Em 2022, a Anvisa autorizou o uso de equipamentos para aplicação de ozonioterapia para uso odontológico e para a assepsia da pele em tratamentos estéticos. A agência reafirmou seu posicionamento em nota emitida na tarde do dia 7 de agosto, ao dizer que não há equipamentos aprovados para o uso em indicações médicas. Ainda de acordo com a agência, o profissional que utilizar os equipamentos com outros fins que não os aprovados pela agência estaria cometendo infração sanitária.
Assim, além da autorização para o uso de uma terapia que não é nem segura e nem eficaz na maioria dos casos, temos um problema prático. Com a lei, o uso da terapia passa a ser autorizado, desde que seja “aplicada por meio de equipamento de produção de ozônio medicinal devidamente regularizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou órgão que a substitua”. Contudo, a Anvisa diz que os equipamentos já aprovados não podem ser usados para indicações médicas, e o CFM não autoriza os médicos a oferecerem o tratamento, mesmo que seja complementar.
Então o médico que aplicar a ozonioterapia estará cumprindo a lei, mas cometendo simultaneamente infração sanitária e descumprindo as normas do conselho que regulamenta a prática profissional.
E qualquer profissional de saúde pode aplicar o tratamento, sem nenhuma formação específica exigida. Aliás, qual a formação técnica e profissional determinada para que profissionais de saúde possam indicar e aplicar o tratamento?
A lei não esclarece nenhuma dessas dúvidas. No dia 8 de agosto, em entrevista ao jornal “O Globo”, Antônio Teixeira, presidente da Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz) e da Federação Mundial de Ozonioterapia, afirmou: “Existem pesquisas ao redor do mundo sendo feitas em todas as áreas. O que temos comprovação é para a dor crônica, como lombalgia, osteoartrose, e a inflamação. Nós também queremos protocolos embasados em ciência, e para essas finalidades existem sim evidências. O que tem nas redes apresentando curas e milagres com ozonioterapia também somos contra”.
No entanto, a Aboz anuncia em seu site cursos para o uso da ozonioterapia para tratar condições como autismo, síndrome de Down, paralisia cerebral, Alzheimer, covid, hepatites, entre outras. Também é possível encontrar cursos para se especializar na utilização da terapia em estética física e corporal e para o aumento da imunidade.
Em anos cobrindo a área de saúde, desconheço um único tratamento baseado em evidências que sirva para tratar doenças tão diferentes entre si como Alzheimer e hepatite.
Isso não significa, todavia, que estudos futuros não possam demonstrar benefícios da ozonioterapia ou de qualquer outro tratamento. Enquanto isso não ocorre, é lamentável que membros do Legislativo e do Executivo aprovem uma prática que pode colocar em risco a saúde de brasileiros e brasileiras.